Artigo de Fernando Gabeira
Costumo comprar um suco de laranja chamado Do Bem, na
padaria da esquina. Não levei o nome a sério porque, nesta altura da vida,
suspeito que o bem e o mal coexistem e se entrelaçam. Apenas comprava. A caixa
era cheia de histórias. E o slogan: feito por jovens cansados da mesmice. Tanta
novidade num suco de laranja e descubro agora que o suco Do Bem mentia ao
informar que suas laranjas vinham direto da fazenda do seu Francisco no
interior de São Paulo. Elas vêm dos grandes fornecedores. Da marca às
historinhas, era tudo uma conversa de marketing. E isso me lembrou a atmosfera
geral no País.
A própria campanha política foi uma narração dos
marqueteiros: progressistas contra reacionários, desprendidos reformadores
sociais contra uma elite obtusa. Muitos dos vencedores não acreditam nessa
história. Sabem que o bem e o mal se entrelaçam e, passada a campanha, é
preciso aproximar-se um pouco mais da realidade.
O PT contou sua história: decidiu, a partir de agora,
expulsar os corruptos do partido, dando-lhes o direito de defesa. Em tese,
assino embaixo. Mas há algumas laranjas do seu Francisco nesse enredo. No penúltimo
escândalo, o do mensalão, os condenados foram saudados por muitos militantes
como guerreiros do povo brasileiro. Uma nota completa voltaria ao tema, ou para
dizer que se equivocou ou para confirmar a cínica tese de que não houve
corrupção da base aliada. Nesse caso, sugiro a fórmula de Homer Simpson: seu
único crime foi violar a lei.
O escândalo do petrolão segue seu curso. Esta semana foi
denunciado mais um intermediário da propina. Um antigo assessor de Nei
Suassuna, que foi senador pelo PMDB. Questionado sobre a atividade do
ex-assessor, disse não acreditar que estivesse relacionado com o escândalo da
Petrobrás: era algo em altas esferas, muito alto para ele. Pode ser verdade ou
mais uma historinha, ao menos admite que se o assessor tivesse mais estatura,
no universo das propinas, assaltaria também a estatal. E que na corrupção existe
o topo de linha e uma segundona cujos times não jogam no campo da Petrobrás.
Uma outra narração é essa de cortar os gastos. O novo
ministro da Fazenda é especialista nisso e trouxe grande otimismo ao mercado.
Houve gente comemorando o crescimento de 0,1%. Os sinais são ambivalentes, pois
o governo, ao mesmo tempo que fala em cortar, pode estar querendo também
arrecadar mais. Fala-se na volta da Cide e da CPMF, que, ao lado dos aumentos
da gasolina e da energia, iria sobrecarregar a sociedade. Talvez Dilma esteja
muito ocupada com a formação do novo Ministério. Um novo presidente eleito leva
vantagem nessa performance: ainda não é o presidente, não precisa responder às
questões que não param de acontecer.
Nesta semana em que o mundo discutiu as mudanças climáticas
no Peru, creio que duas preocupações deveriam ocupar algum espaço na agenda do
governo. As divergências entre Minas, Rio e São Paulo em torno do uso do Rio
Paraíba do Sul serão mediadas pelo ministro Luiz Fux. No meu entender, isso é
tarefa para a Presidência, que deve ter a visão global de nossos recursos
hídricos.
O petrolão suscita outro tema para além do suborno. Dilma
está longe de considerá-lo, pois dedica seu tempo agora ao loteamento dos
cargos, plantando as sementes do próximo escândalo. Trata-se da influência das
empreiteiras no planejamento energético do Brasil. Elas querem construir e a
construção ostensiva interessa ao governo, assim como as fortunas doadas à
campanha eleitoral. Esse mecanismo inibe os investimentos em eficiência energética.
Afasta-nos de um movimento forte no mundo a julgar pelo relatório da ONU.
Um dos polos nessa busca pela sustentabilidade é a produção
descentralizada de energia, o outro é a eficiência energética. Nada disso
interessa às empreiteiras, logo, nada disso interessa também aos políticos.
Especialista em energia, a presidente é muito distante. O ministro Lobão, de
certa forma, já não está entre nós. A crise hídrica atravessa mandatos. Ela diz
respeito não só à água, como à matriz energética brasileira. É mais complicada
do que construir barragens e hidrelétricas.
Nesses temas um dirigente máximo não pode vir com as
laranjas do seu Santana. Estamos diante de um imprevisível ano novo. O governo
vai só economizar ou nos fará gastar mais? Até onde não conflitam o propósito
de economizar com a compra de deputados, a montagem de 39 ministérios? Quem
garante que os corruptos do mensalão não se transfigurem, de novo, em
guerreiros do povo brasileiro? Guerreiros com guerreiros fazem zigue, zigue,
zá: tudo pode acontecer.
Mas o sistema de cumplicidade entre governo e empreiteiras,
o universo de estatais aparelhadas, todo esse mundo de concreto armado é um
bloqueio político e econômico. Ele pode ruir. Pode também não acontecer nada.
Neste caso, vão precisar de muitas historinhas, algo como mil e uma noites,
para nos consolar.
Não há consolo para os desempregados da Iesa, empresa
envolvida no escândalo do petrolão. Passei o fim de semana em Charqueada, a 80
km de Porto Alegre. A cidade decretou calamidade pública pois vai perder 6 mil
empregos, contando os indiretos. Filmei equipamentos orçados em US$ 600 milhões
expostos ao sol, paralisados. Mas não eram os milhões que me interessavam, e
sim como o escândalo repercutiu na vida das pessoas. Num comício, sábado, o prefeito
afirmou: eles vieram com o aval da Petrobrás, prometeram investir R$ 900
milhões, como iríamos saber que era uma picaretagem?
O Ministério do Trabalho está presente em Charqueada para
reduzir os danos. Mas que historinha contar a uma cidade que depositou seus
sonhos no projeto, abriu novas lojas e restaurantes e descobre que a licitação
foi fraudada e o dinheiro se perdeu em propinas e campanhas políticas?
Em Charqueadas, um dos centros da região carbonífera do Rio
Grande do Sul, o governo está queimado.
Artigo publicado no Estado de São Paulo em 05/12/2014
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