Artigo de Fernando Gabeira
Li em alguma parte que Lula aconselhou Dilma a abraçar o
urso. Era no contexto da relação com o PMDB, portanto abraçar o amigo urso. Mas
a imagem do urso me trouxe lembranças da adolescência, quando esperava, na
banca da Rua Halfeld, a chegada da revista “Senhor”. Um banquete literário e
visual, porque a revista era diagramada por um dos gênios das artes gráficas
brasileiras: Bea Feitler.
Foi através da revista que travei contato com “O urso”, de
William Faulkner. Era um animal formidável, com um ferimento na pata, provocado
por uma armadilha. Todos o temiam, mas desejavam encontrá-lo. Lembro-me de que
um dos índios que ajudavam os caçadores dizia que até os cachorros se
preparavam para um dia encontrar o urso. Sabiam, como os humanos, da
importância do acontecimento.
O urso que Dilma precisa encarar é a realidade sombria que
seu governo trouxe ao país e sua incapacidade pessoal de achar o caminho. Esse
urso não creio que ela abrace. Mas continuará rondando seu acampamento.
No princípio da semana passada, conversava com um grupo de
amigos em Niterói sobre a crise política e econômica. Quando saí, o motorista me
esperava nervoso: dois homens armados o sequestraram e roubaram tudo que havia
no carro. No caminho de volta ao Rio dei aquele soco na testa: tinha falado
muito das duas crises e apenas mencionado a que mais me preocupa — a crise
social.
O fim de semana tinha sido marcado por arrastões na Zona Sul
do Rio e os debates que sempre surgem nesses períodos. Queria lembrar que assim
como as coisas mudam dependendo da luz que as banha, esses fatos têm de ser
examinados no contexto mais amplo de um país em recessão, com queda no PIB e a
perda de R$ 1 trilhão no valor de mercado das empresas nacionais.
Tanto o desemprego como o aumento da violência urbana são
indicadores bastante evidentes. No cotidiano da estrada, vejo alguns mais
sutis: aumenta o número de andarilhos e, agora, os encontro mesmo em rodovias
secundárias.
Embora Dilma não queira abraçar o urso, as pessoas que
trabalham estão tendo de encarar a crise, nas ruas ou diante da televisão, com
o fluxo das notícias negativas. Muitos de nós enfrentam duras realidades
cotidianas, buscando proteger os entes queridos. Mas ainda não decidíamos
encarar o urso ombro a ombro e despachar um governo que se impôs pela
delinquência. Um governo assim não cai de maduro. Haverá tensão, violência
verbal, grandes transtornos.
Mao Tse Tung dizia que a revolução não é um piquenique. No
caso do comunismo, foi mais uma sucessão de massacres. A derrubada do governo
petista é algo muito mais suave do que uma revolução. Mas também não é um
simples clique no computador. Será preciso fazer mais, ou então nos conformamos
apenas com os ritmos e os prazos da Operação Lava-Jato.
Desdobrada logicamente, a Lava-Jato vai derrubá-los. Um
tesoureiro do partido do governo foi condenado a 15 anos de prisão. Recebeu
milhões em propina. Será que guardou tudo na sua mochila? Ou destinou a um
partido que financiou a campanha de Dilma? É impossível uma investigação séria
parar no tesoureiro. Mesmo se o Supremo derrotar a Operação Lava-Jato, como
parece ser sua intenção, ele não devolverá credibilidade aos bandidos que
governam o país.
A fórmula brasileira é mais sutil que a da Venezuela. Os
ministros não se identificam tanto com o governo. São medíocres o bastante para
saber que, sem o PT, jamais estariam sentados ali. Mas por quanto tempo essa
obviedade dos crimes do petismo deixará de ser o ponto central dos cálculos
políticos no Brasil? Não há futuro com o PT.
O tempo em que permanece no poder é um tempo de “no future”,
como diziam os punks em Berlim. A palavra punk ganhou uma nova dimensão na
nossa linguagem cotidiana; é algo bizarro e desagradável. E, no momento, a cena
nacional é punk.
Na praia de Niterói, antes tão pacata, percebi os limites de
apenas falar da cúpula, quando a crise, a 20 metros da minha cadeira,
surpreendia com um revólver na cabeça. É preciso fazer mais. Mas é arriscado
empregar mal a energia. Neste momento, as tarefas são garantir a sobrevivência
cotidiana e combater um sistema criminoso.
Os políticos profissionais que podem fundir essas duas
tarefas têm sido muito ausentes. Verdade é que já apresentaram o pedido de
impeachment. Mas ainda não discutem que país será o Brasil, após a queda do
lulopetismo.
A rejeição maciça a um governo talvez seja suficiente para
derrubá-lo. Mas, se surgirem algumas ideias claras sobre o futuro, o processo
fica mais rápido.
Vivi muitas crises no Brasil, em quase todas com a certeza,
às vezes ilusória, de que as influenciava com minha ação. Esta é mais
tentacular, pantanosa. Estou vendo a morte de um projeto que há pouco mais de
uma década parecia o novo. Os prazos se encurtaram dramaticamente. Ou nós nos
atrasamos muito. De qualquer forma, é preciso correr. Se ficar, o bicho pega.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 27/09
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