Artigo de Fernando Gabeira
Tenho alguns escrúpulos, escrevendo sobre o Rio. Faz pouco
tempo que disputei duas eleições com o grupo no poder. Temo parecer parcial, ou
complacente, com medo de ser parcial. Mas vivo aqui. A situação se complicou.
Estamos no ano de um grande evento internacional. As Olimpíadas foram
conquistadas num momento de euforia com o crescimento. A ideia era projetar o Brasil
como um poderoso país emergente.
As chances de vitória nas eleições de 2010 eram quase nulas.
Aproveitei para tocar em alguns temas essenciais. Um deles, a precariedade de
nosso sistema de saúde pública. Entrei em muitos hospitais, as vezes sem autorização.
Expus uma situação dramática. Na época, as UPAS surgiram como uma alternativa.
Só restava lembrar que não eram uma solução para todo o problema, como por
exemplo as pessoas jogadas em macas, esperando meses por uma operação. Nem
resolviam, por exemplo, a grande falta de neurocirurgiões tão necessárias em
vítimas de acidentes.
Outro tema essencial dizia: fugir da dependência do
petróleo. A experiência dos que confiaram era desalentadora. O caminho teria
sido usar os royalties para criar alternativas. Vieram juntos, praticamente, a
crise econômica e o escândalo na Petrobras. A crise atinge a todos da mesma
maneira. Mas o declínio da Petrobras e dos negócios na sua órbita atinge
diretamente o Rio. Para não falar de outro dado desfavorável: a queda do preço
internacional do petróleo. Chegamos assim ao ano das Olimpíadas, acossados pela
crise e empobrecidos com o declínio da Petrobras.
O grupo no poder contou sempre com seus aliados no Planalto.
É a algo perverso mas é real no Brasil: o governo sempre ajuda mais quem o
apoia. Mas o governo também entrou em parafuso. Seu poder de ajudar os amigos
decaiu. Só em novembro, produziu um déficit de R$ 21,3 bilhões. Não terá mais
fôlego. O Brasil optou pelas Olimpíadas disposto a mostrar o seu vigor como
país, queria que todos vissem o despertar de uma força mundial. Aconteceu um
desencontro. O tempo passou, e o momento de nos mostrarmos ao mundo coincide
com a maior crise das últimas décadas.
Vale uma discussão franca entre eles, os que estão no poder,
sobre como realizar uma Olimpíada não com as fantasias do passado, mas com a
dura realidade de agora. É uma discussão que interessa a todos. O sofrimento
das pessoas que buscam emergências ou cirurgias é intolerável. O sistema de
saúde pública está em colapso.
O Instituto Estadual do Cérebro, dirigido pelo Dr. Paulo
Niemeyer, não pode fechar. É essencial aos habitantes do Rio e importante até
para milhares de atletas que vêm competir. Como conciliar tantas necessidades?
As Olimpíadas são uma questão nacional. Quando está em jogo a imagem do país,
todos podem perder ou ganhar. Quando circulam notícias negativas sobre o Brasil
nem sempre se faz distinção entre governo e povo: é o país.
A Baía de Guanabara está sendo criticada por atletas
estrangeiros. Mais um caso antigo. Desde 1980 faço programas do tipo SOS Baia.
Em 92, houve um alento do Banco Mundial. E a Baía continua suja, apesar da Copa
do Mundo. E agora, torna-se mais visível ainda nos testes olímpicos.
A essa altura, as Olimpíadas são irreversíveis. Podem até
trazer oxigênio para a combalida economia do Rio. Mas precisam ser discutidas e
repensadas nas novas circunstâncias.Não existe o precedente de um país que faça
as Olimpíadas numa crise como a do Brasil. No entanto, o país conseguiu
realizar a Rio 92 com um presidente já cambaleante. Collor caiu em seguida. Se
acontecer algo com Dilma, os observadores estrangeiros vão concluir que
derrubamos presidentes, mas sempre com uma monumental festa de despedida.
Os Jogos Olímpicos têm uma dinâmica e uma engrenagem
próprias e são medidos, principalmente, pela eficácia de sua realização.
Inebriados em seus sonhos de poder, os que os trouxeram para cá, não contavam
com as trapaças do tempo e, na verdade, nos legam um delicado problema para
2016.
O ano se acabou com as pessoas sofrendo nas portas fechadas
das emergências. Tocou o alarme. O Brasil não pode ser o favorito na modalidade
salto maior que as pernas. Outro dia, filmei um cartaz que vi no chão de um
pátio dos bombeiros em Lençóis: “não se esqueça de ligar o fio terra”. É um um
voto de ano novo. Se o mundo político e o governo se deslocam do chão, os
choques são inevitáveis. Alguns passam da carga máxima suportável, como foi o
caso no Rio.
Não será um ano fácil. Viveremos grandes tensões, sobretudo
porque quem está no poder quer continuar tocando o barco, apesar dos visíveis
sinais de fracasso. Para viver esse tempo é preciso acreditar que não criamos
problemas insolúveis, em termos históricos. Há saídas. Não estão no governo,
mas na sociedade. Pelo menos, viveremos um ano em que o verbo superar será
conjugado até a exaustão pelos atletas mundiais. Nem todos sabem que o país em
que os jogos se realizam também precisa superar-se. Tomara que nos inspirem.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 03/01/2016
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