Da Época
Nas últimas semanas, decisões da União Europeia e dos
Estados Unidos deram a exata dimensão da força que ganhou no mundo o mosquito
Aedes aegypti, um pequeno inseto que mede menos de 5 mm, pode ser reconhecido
pelo seu corpo listrado em preto e branco e leva em sua picada o vírus zika,
associado aos casos de microcefalia em recém-nascidos. A Europa fez um alerta
recomendando vigilância de seus estados-membros diante da proliferação de casos
da infecção no Brasil. Entre outras medidas, o bloco recomenda que países não
permitam a doação de sangue por pessoas que passaram pelas áreas afetadas. Já o
Centro de Controle de Doenças americano (CDC, na sigla em inglês) foi além e
sugeriu, na sexta-feira 15, que grávidas que planejem visitar locais da América
Latina com surtos de zika adiem a viagem. Para o Brasil, mais do que um duro
recado, as notificações mostram como a incapacidade do governo em debelar uma
epidemia que há anos é uma realidade em nossas terras transformou o Aedes em um
supermosquito que ultrapassou fronteiras. Agora, somos os responsáveis pelo
avanço da doença no mundo.
Diante dessa vergonhosa situação, que ameaça toda a
população e compromete as futuras gerações, vide as centenas de bebês nascendo
com microcefalia, o País enfrenta também mais um revés econômico, às vésperas
do Carnaval e de sediar o maior evento esportivo do planeta, a Olimpíada, em
agosto, no Rio de Janeiro. Muita gente está desistindo de vir para cá,
principalmente as mulheres grávidas. Caso da brasileira Ana Paula Lima de
Oliveira, 31 anos, moradora de Dublin, na Irlanda. Com 14 semanas de gestação e
passagem comprada para 19 de fevereiro para Natal (RN), ela viria com o esposo
e o filho de 2 anos. “Penso em cancelar, principalmente depois que soube que
nos Estados Unidos os médicos desaconselham mulheres gestantes a ir ao Brasil”,
diz. “Meu marido está bem inseguro, por ele já teríamos desistido.”
Não é novidade que o Aedes represente um grande perigo, mas
as autoridades e a população negligenciaram o risco por décadas no passado. Ano
após ano, o País registra aumentos recordes de dengue, com 2015 alcançando o
patamar mais alto da série histórica: 1,6 milhão de casos. Hoje, o vírus
transmitido pelo mosquito que causa mais medo é o zika, cuja infecção em
grávidas pode fazer com que bebês nasçam com o cérebro menor do que o normal.
Chamado de microcefalia, o mal causa deficiências motoras e mentais nas
crianças atingidas. No verão, quando o calor e as chuvas se intensificam,
cria-se a condição ideal para o Aedes, e as transmissões se multiplicam. Sempre
foi assim, mas poucas medidas efetivas foram feitas para melhorar o quadro.
“Para barrar esse avanço, precisamos do desenvolvimento de novas tecnologias e
da adoção de ações continuadas, que não parem no frio”, afirma o infectologista
Francisco Ivanildo de Oliveira Júnior, supervisor médico do ambulatório do
Hospital Emílio Ribas, de São Paulo (SP). “Temos que declarar guerra ao
mosquito.”
O que se esperava com os anos de experiência é que o Brasil
estivesse minimamente preparado para o combate, agora que a situação se
agravou. Infelizmente, não foi o que se viu. As ações colocadas em prática
martelam fórmulas gastas e burocráticas. Infectologista e ex-diretor da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Marcos Boulos considera que
as campanhas feitas até hoje para combater a dengue não tiveram impacto na
população. Prova disso é que, segundo levantamentos, nos últimos nove anos os
criadouros continuam nos mesmos lugares: 80% estão dentro das casas. “Não
conseguimos atingir as pessoas”, diz ele, que está à frente da Coordenadoria de
Controle de Doenças da Secretaria de Saúde de São Paulo. “Temos que fazer
campanhas mais individuais, não adianta somente a presença do Exército, é
preciso recrutar voluntários das comunidades”, diz. Para piorar ainda mais o quadro,
o ministro da Saúde, Marcelo Castro, que é médico e deputado pelo PMDB do
Piauí, fez feio ao mostrar profundo desconhecimento sobre o zika e a realidade
científica dos nossos dias. Disse, por exemplo, “torcer” para que mulheres
peguem o vírus antes da idade fértil e que “sexo é para amador, engravidar é
para profissional”. As gafes e a incapacidade de resolver o problema fizeram o
Palácio do Planalto começar a transferir responsabilidades da pasta para outros
setores da administração nacional, como a Casa Civil e a Defesa Civil.
E, infelizmente, o cenário só deve piorar daqui para frente.
Recém-nascidos com microcefalia já estão lotando os hospitais da região
Nordeste. Cerca de 80% viverão com convulsões, mas podem apresentar níveis de
comprometimento muito diferentes no futuro, dependendo do tratamento ao qual
tiverem acesso – que inclui neurologistas, oftalmologistas, fonoaudiólogos e
fisioterapeutas, entre outros profissionais. A maioria dos especialistas
consultados por ISTOÉ não acredita que o sistema de saúde dê conta do recado.
“Alguns bebês devem morrer mais rápido, mas os que forem tratados podem viver
muitos anos, pois um cérebro agredido, se estimulado precocemente, se
recupera”, diz Maria Ângela Rocha, do setor de infectologia pediátrica do
Hospital Universitário Oswaldo Cruz, em Recife (PE). “Se o SUS não se
organizar, crianças de famílias ricas vão ter respostas melhores do que as de
famílias mais pobres.”
Outro horizonte sombrio é o das pesquisas em ciência básica,
que poderiam oferecer portas de saída através da criação de vacinas e
medicamentos. No entanto, falta investimento e sobra burocracia para os
cientistas brasileiros buscarem o conhecimento necessário para vencer o zika
(leia entrevista ao lado). “É importante que o combate ao mosquito seja feito,
mas como política de redução de danos, já que nossas cidades são extremamente
adequadas ao Aedes”, afirma o médico Artur Timerman, presidente da Sociedade
Brasileira de Dengue e Arboviroses. “Como a zona urbana é caótica, conta com
saneamento precário e coleta de lixo inadequada, focar energias no mosquito é
como enxugar gelo.” O desenvolvimento de vacinas demorará no mínimo de três a
cinco anos, de acordo com o diretor do Instituto Butantan, que desenvolve a
tecnologia mas ainda está na fase de testes com roedores. Apesar de
investimentos pontuais feitos pelo governo durante a crise, laboratórios que
deveriam estar operando a todo vapor estão sucateados e recebendo cada vez
menos verbas para financiar seus estudos. “Não há no País uma cultura de se
produzir grandes projetos em vigilância de saúde”, diz Boulos. “O que temos por
enquanto são pesquisas muito básicas.” Com isso, os índices da doença tendem a
disparar, atingindo entre 50 e 100 mil casos em cinco anos, de acordo com
Timerman.
O descaso no passado, no presente e no futuro, somados à
incapacidade de a população de cuidar de seu próprio quintal, forneceram as
condições ideais para que o Brasil se tornasse um paraíso para o Aedes. O risco
representado pelo inseto é altíssimo por se tratar de uma espécie de
supermosquito capaz de transmitir várias doenças em diferentes ambientes,
incluindo dengue, zika e chikungunya. Para piorar, ele é um animal cosmopolita
que consegue habitar praticamente toda a faixa tropical da Terra, onde vive
quase metade da população mundial. Até meados de 2015, os vírus passados pelo
Aedes que causavam mais preocupação eram a dengue e o chikungunya, que podem
ser fatais para os infectados. O zika era o primo pobre da família. Como em 80%
dos casos não provoca sintomas, foi considerado inofensivo e não causou alarde
à comunidade médica nem ao Ministério da Saúde ao ser identificado no Brasil,
em maio.
Meses depois, em novembro, diante da explosão de casos de
microcefalia no Nordeste, região mais afetada pelo zika, o vírus virou a
principal hipótese pela má formação dos bebês e também foi associado à Sindrome
de Guillan Barré (doença auto-imune que ataca o sistema nervoso). Desde então,
as pesquisas avançaram e na útlima semana o Instituto Carlos Chagas, da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Paraná, revelou que ele é capaz de
atravessar a placenta durante a gestação. A análise foi feita com material de uma
mulher do Nordeste que sofreu um aborto após relatar sintomas da infecção.
Desde que se tornou o inimigo público número um do Brasil, cientistas de todo o
País têm avançado para colocar um ponto final na trajetória do Aedes e do zika,
mas as pesquisas avançariam mais rápido caso as condições fossem mais
favoráveis. Por exemplo, poderiam dar um empurrão nos experimentos com
mosquitos transgênicos sendo feitos no interior paulista e descobrir de uma vez
por todas se leite materno, sêmen e sangue são difusores do vírus, como se
suspeita (confira outros estudos em desenvolvimento na entrevista ao lado).
Soma-se ao prejuízo incalculável representado pelas vidas perdidas
e pelas famílias destroçadas a perda financeira representada por mais uma
mancha na imagem do País em ano de Jogos Olímpicos. Como Ana Paula, a mãe que
pensa em cancelar a viagem ao Brasil neste verão, outros mudarão seus planos
após os alertas das regiões mais influentes do mundo. Aliado ao carnaval, que
costuma reunir multidões de foliões em áreas dominadas pelo Aedes, como as
capitais do Nordeste, o Rio de Janeiro e demais cidades litorâneas, o evento
esportivo tem o potencial de espalhar a doença para os confins do Brasil e do
mundo. “O zika se tornou um produto tipo exportação do Brasil”, diz o
farmacêutico Gúbio Soares, da Universidade Federal da Bahia, um dos primeiros a
identificar o vírus. “Ele pode contaminar turistas que venham para cá ou se
espalhar por brasileiros no exterior.”
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