Artigo de Fernando Gabeira
Ao som do tiroteio no morro Pavão-Pavãozinho, reflito sobre
o momento político cujo ponto alto na semana foi a votação da PEC que
estabelece um teto para os gastos do estado. Sempre houve tiroteio por aqui. Na
primeira viagem que fiz ao Haiti ouvi tiros à noite. Pensei: estão fazendo tudo
para me sentir em casa. E dormi em paz. Mas o tiroteio dessa semana parece
marcar o fim de uma época e o começo de tempos bem mais difíceis. A ruína do
projeto do PMDB no Rio acabou levando consigo algo que o sustentava, eleitoralmente:
a política de segurança.
Tempos difíceis pela frente. A decisão de criar um teto para
os gastos é correta. No entanto, há argumentos da oposição que merecem um
exame. Acompanhei os debates e concordo com a tese de que a demanda com saúde e
educação deve aumentar nos próximos anos. Como encará-las com recursos
decrescentes?
Alguns setores da esquerda propõem questionar a dívida
pública. Acredito que isso apenas vai nos levar a uma crise maior. Todos os
caminhos da esquerda radical nos farão cruzar a fronteira com a Venezuela e nos
fundir com o fracasso bolivariano.
O acerto de determinar um teto pode ser problemático
adiante, se o governo se contentar com isso. Não me refiro apenas à reforma da
previdência como um rumo de continuidade. Não teremos recursos para atender às
demandas. O que fazer? O governo afirma que o dinheiro virá com o crescimento
econômico, mais investimento, empregos e, consequentemente, mais arrecadação.
Isso leva algum tempo. No meu entender, em vez de simplesmente sentir-se
vitorioso com a votação do teto, o governo deveria preparar um choque de
gestão. É a única maneira de fazer com que a escassez não torne mais difícil a
vida das pessoas vulneráveis.
Por onde começar? Nem todo o aparato do governo é
irremediavelmente incompetente. Existem algumas ilhas de excelência que
deveriam ser estudadas, não para que sejam universalizadas artificialmente, mas
como fonte de inspiração. Eu faria algumas perguntas simples. Por que a rede
Sarah de hospitais funciona? O que é possível aprender com ela e aplicar em
outros setores da saúde? Por que funciona a distribuição de água durante a
longa seca no Nordeste, organizada pelo Exército Brasileiro? O que é possível
aprender da experiência?
O choque da gestão é tão ou mais importante do que acabar
com a roubalheira. O cenário que o governo nos apresenta deve ser avaliado com
calma para que não surjam falsas expectativas. O governo quer fazer crescer a
economia para voltar a gastar. E possivelmente a roubar, porque uma grande
parte dele esteve associada ao PT no assalto aos cofres públicos. Portanto a
questão é essa: como voltar a crescer de forma sustentável, em termos
econômicos, e, ao mesmo tempo, evitar a roubalheira?
A corrupção está sendo combatida pela Lava-Jato e outras
operações. As medidas para combatê-las, com o aval de mais de dois milhões de
eleitores, estão na mesa dos parlamentares para serem transformadas em lei. Mas
o problema da eficácia passa ao largo das considerações políticas. O próprio
Congresso é um exemplo de desperdício. Inúmeras vezes defendi a tese de que a
redução de mais da metade dos gastos não influenciaria o resultado do trabalho.
Sei que pode parecer mesquinho o que vou dizer. Mas o próprio processo de
articulação política para reduzir os gastos foi dispendioso. O presidente
ofereceu almoço e jantar para quase 300 parlamentares. Ninguém pensou em pagar
a própria comida porque, afinal, estavam todos salvando a pátria. É esse
raciocínio que dificulta a reforma. O trabalho de todos é importante, poucos se
dispõem a buscar uma racionalidade que os tire da zona de conforto.
Os brasileiros, sobretudo os mais pobres, serão de alguma
forma tocados pelas medidas de austeridade. Não creio que apenas o crescimento
econômico resolverá, magicamente, os problemas acumulados. Será preciso domar o
monstro irracional que se tornou o estado brasileiro. Há quem ache que defender
os mais vulneráveis se resume a pedir mais dinheiro. De um modo geral, são as
pessoas cujos salários e benefícios dependem de mais verba. O desafio agora é
gastar bem, fazer com que cada centavo tenha o maior efeito benéfico na vida
das pessoas.
A esquerda que caiu não está preparada para essa nova fase.
Ela não só acha que os salvadores da pátria merecem comida grátis. Ela acha que
os defensores dos pobres podem encher a cueca de dólares. Muito se fala do
buraco em que a esquerda se meteu. Acabaram os partidos? Não importa. As ideias
de que as pessoas mais vulneráveis têm de ser consideradas não desaparecem.
Acabam ressurgindo no próprio bloco dominante.
Não foi apenas a corrupção que nos levou ao fundo do poço.
Foram também o populismo de esquerda e a formidável incompetência brasileira.
Suas características mais patéticas se expressam na engrenagem do estado. Não
sei até que ponto o próprio mundo das empresas foi contaminado e isso virou um
traço nacional.
A racionalidade não se obtém em jantares e almoços no
palácio. Tem de ser um pão nosso de cada dia.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 16/10/2016
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