segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

MAÑANA

Artigo de Fernando Gabeira
No noroeste fluminense, com o termômetro marcando 44 graus, relembro as conversas de rua, depois que voltei de Manaus. Um homem me disse sobre a crise do sistema carcerário:
— A conta está chegando.
— Outras contas também vão chegar — respondi.
No caso do sistema penitenciário, o governo Temer decidiu tomar algumas medidas de emergência e certamente vai empurrar o problema com a barriga, como fizeram todos os presidentes. Mañana. Uma das contas que sempre chegam no verão é a dengue. Desta vez, o vírus da chicungunha vem escrito na fatura. Tenho razões para temê-lo. Falei com muitas pessoas no bairro Industrial de Aracaju, infestado pela chicungunha. Os relatos eram terríveis: dores nas articulações que se prolongam por meses.
Como a crise no sistema penitenciário, fomos empurrando o mosquito com a barriga e agora nos parece também um problema insolúvel. Mañana. Navego pelo Rio Pomba e o calor é tão intenso que às vezes desejo que o barco vire. Em 2008 estive aqui numa grande enchente que arrasou um hospital de Santo Antônio de Pádua. Doentes que dependiam de hemodiálise, por exemplo, tiveram que ser retirados para Minas, de helicóptero.
Pelo menos para isso serviam os helicópteros mineiros que agora levam o governador Pimentel para buscar o filho depois de uma festa de réveillon. Quando o Rio Pomba transbordou, ficou evidente que era preciso fazer alguma coisa. E surgiu um plano grandioso, tocado pela Odebrecht, coisa de R$ 600 milhões. Hoje, constato que a obra não vingou, pelo menos nesta região que visito. Em Santo Antônio de Pádua nada aconteceu. E esse projeto escapou à própria Lava-Jato, creio. Talvez tenha passado pelo mesmo esquema de corrupção que passaram outros da Odebrecht.
O prefeito de Santo Antônio de Pádua, Josias Quintal, entregou os destinos da cidade para Deus, no primeiro decreto assinado após sua posse. Eu recomendaria incluir o e-mail de São Pedro nessa mensagem. O Rio Pomba continua potencialmente capaz de causar grandes estragos. As obras ficaram para mañana. E me pergunto se a recusa em prevenir não é apenas um traço cultural. É também uma pobre leitura do presente. Num mundo em que a natureza nos surpreende com eventos extremos, guerras, terrorismo, demagogos detendo um extraordinário poder, é preciso sempre analisar, prevenir, mesmo reconhecendo as limitações de nossa tarefa.
Ha alguns anos, a ONU promoveu um debate sobre diplomacia preventiva. Ao ler o conjunto de textos, conclui aquilo sobrava também para o jornalismo. É uma dimensão nova que talvez precisasse incorporar sistematicamente.
Previsões, mesmo quando alarmistas, não arrebatam tanto quanto a descrição das tragédias. Algo que pode acontecer, dependendo de certas variáveis, não tem o mesmo peso do que acontece e está se desenrolando diante dos nossos olhos. Não é necessário alarmar, muito menos aborrecer. Apenas reportar: ao que me parece, com os dados que tenho, a coisa vai desandar. Não faço comparações com outras culturas como a anglo-saxônica ou a alemã. Apenas suspeito que a partir de uma certa complexidade econômica, as culturas tendem a convergir em muitos aspectos, como esse da prevenção. Isso é muito claro no nível pessoal. No meu caso, por exemplo, empurro com a barriga um grande número de pequenos problemas.
Mas aprendo muito com os motoristas de taxi. Muitos deles falam com orgulho de seu carro e, em seguida, descrevem os cuidados que têm com ele: trocam as peças com regularidade e, a qualquer sinal, fazem os reparos necessários. É uma preocupação econômica com seu instrumento de trabalho. Eles sabem que custaria muito mais caro empurrar com a barriga. Curioso que o massacre de Manaus tenha surgido na passagem de ano, momento em que, no universo pessoal, todos fazemos promessas de resolver alguns problemas que já figuraram em nossos desejos, nos anos anteriores. O susto talvez faça o governo adotar uma racionalidade econômica. No momento, ele deveria, por exemplo, calcular os gastos com a emergência, deslocamento de ministros, da forca nacional, agentes penitenciários e perceber como custa caro empurrar com a barriga.
Manãna? Mañana é a chicungunha, outra novela com o mesmo enredo. Navegando no Rio Pomba, nesses dias de mais de 40 graus, deslocando-me ao ar livre mais pesado que de hábito, as vezes me pergunto se o clima não influencia a tendência de empurrar com a barriga. Mas o que fazer? A complexidade social e econômica nos conduz para certos hábitos que existem nos países mais frios. Sem contar com a tendência planetária que é esquentar
São as nossas circunstâncias históricas, é nelas que temos de achar uma saída.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 15/01/2017
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