quarta-feira, 5 de abril de 2017

DIÁRIO DA CADEIA

Um livro de “conteúdo sarcástico, ardil e afrontoso”, cuja capa “retrata as grades de uma cela” e que, ao omitir a identidade do verdadeiro escritor, mas estampar como autor o pseudônimo Eduardo Cunha, não permite que o leitor tome conhecimento de quem é o real responsável pelo texto. Tudo isso apoiado por uma “estratégia comercial ardil e inescrupulosa dos réus, através da qual, aproveitando-se da expectativa pública de um livro que Eduardo Cunha noticiou estar a produzir sobre o impeachment, proferem, em seu nome, com redação em primeira pessoa, as mais variadas suposições e opiniões sobre a política nacional, escarnecendo sua imagem”.
Foram esses alguns dos argumentos utilizados pelos advogados do ex-deputado Eduardo Cunha para recorrer à justiça e impedir que a editora Record comercializasse o livro “Diário da Cadeia – Com Trechos da Obra Inédita Impeachment”, assinado por “Eduardo Cunha (Pseudônimo)” – assim que consta na capa e nas minúcias da obra. O primeiro parecer, concedido pela juíza Ledir Dias de Araújo, foi favorável a Cunha e estipulou que a editora seria multada em R$400 mil por dia caso a publicação fosse distribuída ou comercializada, isso antes mesmo dele começar a chegar às mãos dos leitores.
No processo, a defesa de Cunha, para fortalecer o argumento da confusão entre o pseudônimo e o ex-político, também aponta que “o próprio editor do livro tem publicado em seu perfil da rede social Facebook fotos do livro com vinculação à figura de Eduardo Cunha e os dizeres ´viemos para confundir´”. O editor da Record, no caso, é Carlos Andreazza, que enxerga toda a ação como um caso de “censura prévia de um livro de ficção”.
“[A proibição da venda do livro é] algo inimaginável, sobretudo depois da decisão histórica, e de caráter abrangente, do Supremo [favorável à publicação de biografias não autorizadas pelos biografados]. Nenhum editor quer publicar livros imunes à Justiça, mas que os livros circulem e sejam lidos, criticados, submetidos ao público. É a única maneira de alguém se sentir desonrado, aliás. Ninguém pode pleitear que um livro seja proibido de circular antes de haver sido lido. Ninguém pode se sentir ofendido por livro que não leu. Isso é censura prévia. E foi o que ocorreu com ‘Diário da Cadeia’. Estamos proibidos de vender uma obra de arte que ninguém leu. Sobre a ação, estamos trabalhando no recurso com o qual pretendemos derrubar a liminar”, diz o editor em entrevista ao Página Cinco.
Já Ticiano Figueiredo, advogado de Eduardo Cunha no caso, afirmou ao blog que “muito embora a gente não tenha lido o livro, ele [Andreazza] divulgou vários trechos. Ele colocou no Facebook dele que veio para confundir, então, é inequívoco a intenção dele e há rumores que os personagens no livro que ele chama de ficção são os mesmos personagens da vida real. Se esses rumores se confirmarem, é uma prova que se trata de uma fraude, na verdade”.
Figueiredo também se posicionou sobre a acusação de censura. “O argumento de censura é covarde. A decisão do STF é muito clara: uma coisa é alguém escrever uma biografia não autorizada de Fulano, outra é alguém se aproveitar da situação, como ele tentou se aproveitar, e escrever como se Eduardo Cunha fizesse sua própria biografia. Pra ser muito sincero, se ele [Andreazza] está dizendo que é censura, nosso argumento para ter entrado com ação está correto, porque se trata de uma autobiografia falsa, não de uma biografia não autorizada. O que se fez foi tentar confundir toda a população, políticos e até o judiciário para atrapalhar a defesa do Eduardo. Isso não foi feito de boa fé. Falar em censura é usar um argumento covarde para tentar validar uma fraude”.
Ao analisar o caso, o advogado Dinovan Oliveira, sócio do escritório MFB Advogados e membro da Comissão de Direito às Artes da OAB de São Paulo, avalia que a obra não deveria sofrer sanções prévias, como ocorreu até aqui. “Me parece que nos casos em que o Poder Judiciário ainda não conhece o inteiro teor de determinada obra e, mesmo assim, delibera por proibir sua circulação, está se materializando postura contrária ao que dispõe o artigo 220 da Constituição e, a depender do olhar, censura. O sistema constitucional brasileiro resguarda a livre manifestação da atividade intelectual. Ao consagrar a inviolabilidade da honra, da imagem e da vida privada, prevê como sanção apenas a posterior indenização pelos danos causados, nunca a proibição de circulação disso ou daquilo. Aliás, a interpretação que pode ser extraída dela é completamente diferente. Ela rechaça todos os eventuais freios que possam embaraçar essa liberdade”.
E o que há no livro?
 Voltando a Andreazza, sobre o processo citar que a publicação do livro seria uma decisão comercial “ardil e inescrupulosa”, o editor enxerga nisso um reflexo do modo como o censo comum encara a arte no país: algo com o qual não se pode ganhar dinheiro. “Eles falarão a mesma coisa quando publicarmos a biografia não autorizada de Cunha – porque a publicaremos, como já foi noticiado. Reforço a informação de que os advogados de Eduardo Cunha entraram com a ação sem conhecer o objeto – o livro – que desejavam censurar. Como afirmar que a obra prejudica a imagem do político sem conhecer-lhe o conteúdo? É uma posição muito limitada, a deles, de julgar opções comerciais de uma empresa com a história e a reputação da Record. Não lidamos com ardil e falta de escrúpulos. Não é algo que conheçamos”.
Mas, afinal, o que temos no livro? A ficha catalográfica não faz qualquer tipo de referência a biografias, autobiografias ou outro gênero não ficcional e o aponta somente como um “Romance brasileiro”. Sim, pelas páginas da obra o nome de Eduardo Cunha não é o único que soa familiar ao leitor, ali também há personagens como Sergio Moro, Kim Kataguiri, Mario Sergio Conti, Janaína Pascoal, Sergio Cabral e, claro, Dilma Rousseff e Michel Temer. Como o título promete, o enredo satiriza os dias de Cunha na cadeia, bem como trechos do livro que ele estaria escrevendo – em determinado momento, o personagem descobre que publicaram um livro no qual um pseudônimo utiliza seu nome, inclusive.
A mente por trás desse pseudônimo, todavia, permanece desconhecida. “A ideia [de fazer o livro] foi do autor, um importante escritor brasileiro, projeto que compramos, ainda sem linha escrita, certos de que se trataria de um marco para a literatura brasileira. E é exatamente do que se trata. O autor escreveu uma obra de ficção sem precedentes no mundo. Por contrato, porém, não posso revelar-lhe o nome”, diz o editor, que ainda lembra que na narrativa há um personagem chamado Carlos Andreazza. “Aquele tipo ridículo nada tem a ver comigo. Como poderia me ofender? Nem mesmo a orelha que Carlos Andreazza assina foi escrita pelo Carlos Andreazza que sou. É texto do Andreazza personagem”.
Segundo o editor, o imbróglio judicial, algo presumível ao mexer com um nome como o de Eduardo Cunha, faz parte do jogo. “Quem bota na frente, arrisca, ousa, quem tenta remexer a maré de comodismo, corre riscos mesmo. Quem tem medo de problemas eventuais não deve publicar autor brasileiro. Ocorre que, diante de um livro como este ‘Diário da Cadeia’, projeto sólido, com fundamentos na melhor ficção de vanguarda, simplesmente não há alternativa: é da vocação da Record investir radicalmente na literatura do Brasil. Eu estaria muito mais abalado se não tivesse feito o livro do que diante dessa ação”.
Em todo caso, se Eduardo Cunha quiser publicar o livro que anunciou há alguns meses, a Record parece estar de portas abertas. Perguntei para Andreazza se ele publicaria o livro prometido pelo ex-deputado. A resposta foi sucinta: “sim”.
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