Do Blog Página Cinco, UOL
Um livro de “conteúdo sarcástico, ardil e afrontoso”, cuja
capa “retrata as grades de uma cela” e que, ao omitir a identidade do
verdadeiro escritor, mas estampar como autor o pseudônimo Eduardo Cunha, não
permite que o leitor tome conhecimento de quem é o real responsável pelo texto.
Tudo isso apoiado por uma “estratégia comercial ardil e inescrupulosa dos réus,
através da qual, aproveitando-se da expectativa pública de um livro que Eduardo
Cunha noticiou estar a produzir sobre o impeachment, proferem, em seu nome, com
redação em primeira pessoa, as mais variadas suposições e opiniões sobre a
política nacional, escarnecendo sua imagem”.
Foram esses alguns dos argumentos utilizados pelos advogados
do ex-deputado Eduardo Cunha para recorrer à justiça e impedir que a editora
Record comercializasse o livro “Diário da Cadeia – Com Trechos da Obra Inédita
Impeachment”, assinado por “Eduardo Cunha (Pseudônimo)” – assim que consta na
capa e nas minúcias da obra. O primeiro parecer, concedido pela juíza Ledir
Dias de Araújo, foi favorável a Cunha e estipulou que a editora seria multada
em R$400 mil por dia caso a publicação fosse distribuída ou comercializada,
isso antes mesmo dele começar a chegar às mãos dos leitores.
No processo, a defesa de Cunha, para fortalecer o argumento
da confusão entre o pseudônimo e o ex-político, também aponta que “o próprio
editor do livro tem publicado em seu perfil da rede social Facebook fotos do
livro com vinculação à figura de Eduardo Cunha e os dizeres ´viemos para
confundir´”. O editor da Record, no caso, é Carlos Andreazza, que enxerga toda
a ação como um caso de “censura prévia de um livro de ficção”.
“[A proibição da venda do livro é] algo inimaginável,
sobretudo depois da decisão histórica, e de caráter abrangente, do Supremo
[favorável à publicação de biografias não autorizadas pelos biografados].
Nenhum editor quer publicar livros imunes à Justiça, mas que os livros circulem
e sejam lidos, criticados, submetidos ao público. É a única maneira de alguém
se sentir desonrado, aliás. Ninguém pode pleitear que um livro seja proibido de
circular antes de haver sido lido. Ninguém pode se sentir ofendido por livro
que não leu. Isso é censura prévia. E foi o que ocorreu com ‘Diário da Cadeia’.
Estamos proibidos de vender uma obra de arte que ninguém leu. Sobre a ação,
estamos trabalhando no recurso com o qual pretendemos derrubar a liminar”, diz
o editor em entrevista ao Página Cinco.
Já Ticiano Figueiredo, advogado de Eduardo Cunha no caso,
afirmou ao blog que “muito embora a gente não tenha lido o livro, ele
[Andreazza] divulgou vários trechos. Ele colocou no Facebook dele que veio para
confundir, então, é inequívoco a intenção dele e há rumores que os personagens
no livro que ele chama de ficção são os mesmos personagens da vida real. Se
esses rumores se confirmarem, é uma prova que se trata de uma fraude, na verdade”.
Figueiredo também se posicionou sobre a acusação de censura.
“O argumento de censura é covarde. A decisão do STF é muito clara: uma coisa é
alguém escrever uma biografia não autorizada de Fulano, outra é alguém se
aproveitar da situação, como ele tentou se aproveitar, e escrever como se
Eduardo Cunha fizesse sua própria biografia. Pra ser muito sincero, se ele
[Andreazza] está dizendo que é censura, nosso argumento para ter entrado com
ação está correto, porque se trata de uma autobiografia falsa, não de uma
biografia não autorizada. O que se fez foi tentar confundir toda a população,
políticos e até o judiciário para atrapalhar a defesa do Eduardo. Isso não foi
feito de boa fé. Falar em censura é usar um argumento covarde para tentar validar
uma fraude”.
Ao analisar o caso, o advogado Dinovan Oliveira, sócio do
escritório MFB Advogados e membro da Comissão de Direito às Artes da OAB de São
Paulo, avalia que a obra não deveria sofrer sanções prévias, como ocorreu até
aqui. “Me parece que nos casos em que o Poder Judiciário ainda não conhece o
inteiro teor de determinada obra e, mesmo assim, delibera por proibir sua
circulação, está se materializando postura contrária ao que dispõe o artigo 220
da Constituição e, a depender do olhar, censura. O sistema constitucional
brasileiro resguarda a livre manifestação da atividade intelectual. Ao
consagrar a inviolabilidade da honra, da imagem e da vida privada, prevê como
sanção apenas a posterior indenização pelos danos causados, nunca a proibição
de circulação disso ou daquilo. Aliás, a interpretação que pode ser extraída
dela é completamente diferente. Ela rechaça todos os eventuais freios que
possam embaraçar essa liberdade”.
E o que há no livro?
Voltando a Andreazza,
sobre o processo citar que a publicação do livro seria uma decisão comercial
“ardil e inescrupulosa”, o editor enxerga nisso um reflexo do modo como o censo
comum encara a arte no país: algo com o qual não se pode ganhar dinheiro. “Eles
falarão a mesma coisa quando publicarmos a biografia não autorizada de Cunha –
porque a publicaremos, como já foi noticiado. Reforço a informação de que os
advogados de Eduardo Cunha entraram com a ação sem conhecer o objeto – o livro
– que desejavam censurar. Como afirmar que a obra prejudica a imagem do
político sem conhecer-lhe o conteúdo? É uma posição muito limitada, a deles, de
julgar opções comerciais de uma empresa com a história e a reputação da Record.
Não lidamos com ardil e falta de escrúpulos. Não é algo que conheçamos”.
Mas, afinal, o que temos no livro? A ficha catalográfica não
faz qualquer tipo de referência a biografias, autobiografias ou outro gênero
não ficcional e o aponta somente como um “Romance brasileiro”. Sim, pelas
páginas da obra o nome de Eduardo Cunha não é o único que soa familiar ao
leitor, ali também há personagens como Sergio Moro, Kim Kataguiri, Mario Sergio
Conti, Janaína Pascoal, Sergio Cabral e, claro, Dilma Rousseff e Michel Temer.
Como o título promete, o enredo satiriza os dias de Cunha na cadeia, bem como
trechos do livro que ele estaria escrevendo – em determinado momento, o
personagem descobre que publicaram um livro no qual um pseudônimo utiliza seu
nome, inclusive.
A mente por trás desse pseudônimo, todavia, permanece
desconhecida. “A ideia [de fazer o livro] foi do autor, um importante escritor
brasileiro, projeto que compramos, ainda sem linha escrita, certos de que se
trataria de um marco para a literatura brasileira. E é exatamente do que se
trata. O autor escreveu uma obra de ficção sem precedentes no mundo. Por
contrato, porém, não posso revelar-lhe o nome”, diz o editor, que ainda lembra
que na narrativa há um personagem chamado Carlos Andreazza. “Aquele tipo
ridículo nada tem a ver comigo. Como poderia me ofender? Nem mesmo a orelha que
Carlos Andreazza assina foi escrita pelo Carlos Andreazza que sou. É texto do
Andreazza personagem”.
Segundo o editor, o imbróglio judicial, algo presumível ao
mexer com um nome como o de Eduardo Cunha, faz parte do jogo. “Quem bota na
frente, arrisca, ousa, quem tenta remexer a maré de comodismo, corre riscos
mesmo. Quem tem medo de problemas eventuais não deve publicar autor brasileiro.
Ocorre que, diante de um livro como este ‘Diário da Cadeia’, projeto sólido,
com fundamentos na melhor ficção de vanguarda, simplesmente não há alternativa:
é da vocação da Record investir radicalmente na literatura do Brasil. Eu
estaria muito mais abalado se não tivesse feito o livro do que diante dessa
ação”.
Em todo caso, se Eduardo Cunha quiser publicar o livro que
anunciou há alguns meses, a Record parece estar de portas abertas. Perguntei
para Andreazza se ele publicaria o livro prometido pelo ex-deputado. A resposta
foi sucinta: “sim”.
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