Andrei Roman, El País
O apoio ao golpe de Nicolás Maduro é a página mais
vergonhosa da história do PT
Desde o impeachment da Dilma Rousseff, o PT vem reafirmando
sistematicamente o discurso do golpe. Confesso que é um discurso que até ontem
não tinha levantado em mim uma forte emoção. Concordei desde o começo em
aceitar o termo como uma figura de estilo: ao final das contas, Dilma caiu
“apunhalada” nas costas por antigos aliados, os crimes imputados a ela sendo
somente um pretexto para tirá-la do cargo. Do mesmo jeito que alguém pode usar
a palavra “apunhalar,” é então possível falar em um golpe. Mas preferi fazer
abstração do argumento mais audacioso que o impeachment causou uma quebra no
processo democrático. Apesar do combate legítimo em torno da
constitucionalidade do processo, construído com inteligência e elegância por
José Eduardo Cardozo, o impeachment da Dilma não nos levou para a instauração
de uma ditadura. Os votos que levaram a atual configuração do Congresso, por
mais corrupto e imoral que ele provou-se ser, não vieram de extraterrestres. Há
portanto um óbvio exagero na insistência no discurso do golpe. Considerei desde
o começo que é um daqueles exageros naturais no combate ideológico e fiz
questão de não me meter neste debate em público ou em privado. Acreditei que,
ao agir dessa forma, o PT está exercitando o seu papel legítimo, como o partido
de maior expressão popular da história brasileira, de articular um discurso,
sempre bem-vindo, na defesa da democracia.
Meu estado de apatia em relação à questão do golpe acabou
subitamente quando fui confrontado com a notícia que, no contexto de um
encontro do Foro de São Paulo na Nicarágua, o PT acabou se posicionando
oficialmente a favor da iniciativa de Nicolás Maduro de reescrever a
Constituição da Venezuela. Minha reação passou por algumas fases. Primeiro a
interrogação: “Ué, passaram um ano gritando contra um golpe legislativo no
Brasil e agora apoiam o golpe armado na Venezuela?” Depois, um sentimento de
dúvida: “Será que não é uma notícia falsa?”. Difícil ser, dada a boa reputação
do jornalista que tinha escrito a matéria. Mas nesses dias nunca se sabe. Em
seguida, depois de verificar a veracidade das informações, a interrogação
final: “Será que querem implodir tudo?”
Faço questão de transcrever o discurso oficial da senadora
Gleisi Hoffmann no dito encontro, já que cada palavra me parece uma pedra
jogada num vidro de cristal: “Agradeço aos companheiros da Frente Sandinista de
Libertação Nacional por proporcionar este encontro. Saudamos os triunfos
eleitorais mais recentes do Daniel Ortega na Nicarágua e Lenin Moreno no
Equador, que demonstraram claramente que é possível enfrentar as novas táticas
eleitorais e golpistas da direita. O PT manifesta também o seu apoio e
solidariedade ao PSUV, seus aliados, e ao presidente Nicolás Maduro, frente à
violenta ofensiva da direita pelo poder na Venezuela. Temos a expectativa de
que a Assembleia Constituinte possa contribuir para uma consolidação cada vez
maior da revolução bolivariana e que as divergências políticas se resolvam de
forma pacífica.”
É até difícil saber onde começar. O real triunfo de Daniel
Ortega na Nicarágua, se alguém pode chamar isso de triunfo, foi aquele de
conseguir que uma Corte Constitucional completamente subserviente aos seus
desejos banisse o principal opositor da eleição presidencial. O regime de
Daniel Ortega tem muito mais em comum com a ditadura de Anastasio Somoza, do
que com o movimento sandinista que liderou na sua juventude: a sua mulher já
ocupa o cargo de vice-presidente da república e os seus cinco filhos e dois
netos são as únicas lideranças no horizonte hoje em dia. Nenhum dos antigos
dirigentes sandinistas apoiam hoje em dia o Ortega. Qual seria o modelo que a
Gleisi Hoffman vê na Nicarágua para “enfrentar as novas táticas eleitorais e
golpistas da direita”? Transformar o Brasil numa república das bananas, sem separação
entre os Poderes e liderada por uma única família de oligarcas travestidos de
revolucionários?
Seria divertido se não fosse extremamente trágico. No caso
da Venezuela, assistimos à uma catástrofe humanitária de proporções cada vez
maiores. Em quatro Estados do país, a desnutrição infantil já atinge quase 20%
das crianças com menos cinco anos de idade. O país tem a segunda maior taxa de
homicídios do mundo. O índice de assassinatos em Caracas é 14 vezes maior que o
de São Paulo, não que São Paulo fosse exatamente uma cidade segura. E para cada
100 assassinatos, somente nove suspeitos são presos. A inflação projetada para
este ano é de 2.200%. Em 2016 a economia do país se contraiu 19% e o ritmo de
queda deve acelerar ainda mais este ano. Centenas de milhares estão saindo do
país, e cada vez mais estão chegando também ao Brasil. Devo continuar com mais
números ainda? Depois de duas décadas no poder, é este o legado que o chavismo
deixa para a Venezuela: fome, pobreza extrema, desespero e morte. E não foi por
culpa do Tio Sam, como alguns defensores do regime gostariam de argumentar. Sem
as exportações de petróleo ao EUA, a fonte mais estável de recursos para o
país, o que será que restaria de uma economia completamente destruída?
Neste contexto, Nicolás Maduro propõe tirar a única riqueza
que ainda resta ao povo venezuelano: a liberdade de decidir o seu futuro.
Maduro já virou a página da democracia. Para se manter no poder, é evidente que
a única opção do presidente consta na força bruta. Para que o ônus dessa tarefa
infame não caiba exclusivamente nos ombros da polícia e do Exército, o regime
vem patrocinando com armas e dinheiro gangues de bairros pobres, aumentando
ainda mais a violência e o caos. Se trata de uma aliança repressiva
surpreendentemente forte entre os militares e os grupos criminosos, alimentada
com petrodólares cada vez mais escassos. Nenhum líder democrático teria a
ousadia de convocar um referendo constitucional dadas as condições em que a
Venezuela se encontra hoje. A convocação de uma Assembleia Constituinte formada
exclusivamente por apoiadores do regime não é nada mais que uma tentativa
grotesca de disfarçar a transição do país de um regime autoritário com alguns
vestígios de competição política (o que os cientistas políticos costumam chamar
de autoritarismo competitivo) para uma ditadura plena. Como é possível que o
PT, com o seu legado histórico para a transição e consolidação democrática do
Brasil, possa prestar apoio à tamanha barbaridade?
Estamos assistindo ao redor do mundo ao surgimento do
autoritarismo messiânico. Desde a Venezuela de Nicolás Maduro até a Hungria de
Orban, desde os Estados Unidos de Trump até as Filipinas de Duterte, da Rússia
do Putin até a Turquia de Erdogan, a aderência ao populismo e ao discurso
autoritário está crescendo em ritmo galopante. Irmãos no assalto contra a
democracia, Maduro não deve representar a esquerda, assim como o Orban não deve
representar a direita. Que o Brasil não é imune a essa onda já está muito
claro. É só abrir o seu Facebook ou consultar a última pesquisa de opinião.
Ao condenar Maduro, é importante lembrar que a direita da
Venezuela tem seus próprios cadáveres no armário. O chavismo se ergeu nos
escombros de uma partidocracia que por décadas trabalhou em prol das elites e
ignorou os interesses da nação como um todo. Em vez de investir a gigante
receita das exportações de petróleo na educação e no crescimento sustentável do
país, os governos das décadas de 70 e 80 cuidaram de seus próprios bolsos e
institucionalizaram o clientelismo. Quando a nação elegeu democraticamente Hugo
Chávez, foi essa mesma elite quem organizou e eventualmente abortou um golpe
armado para tirá-lo do poder. São essas as raízes da popularidade do chavismo,
são esses os motivos que permitiram que o país fosse levado para o precipício
pelo populismo fanático praticado pelo PSUV. Ao contrário dos políticos
tradicionais, Hugo Chávez respeitou sua promessa de olhar para os mais pobres e
por mais de uma década as condições de vida desse segmento da população
melhoraram dramaticamente. Mas quando as políticas econômicas e sociais do
chavismo começaram a se provar insustentáveis, em vez de proteger o jogo
democrático e o seu legado social, Chávez mudou a Constituição e usou do
Judiciário para conter as chances eleitorais da oposição. E quando nem isso
funcionou mais, o seu sucessor partiu para a força bruta.
A colunista Eliane Brum argumentou uma vez, com a sua
característica e brilhante lucidez, que a mais maldita das heranças do PT “pode
ser não a multidão que ocupou as ruas em 15 de março, mas aquela que já não
sairia de casa para defendê-lo em dia nenhum.” Acredito que o perigo pode ser
ainda maior. Depois de ter abandonado valores e princípios em nome da
governabilidade, depois de ter sacrificado boa parte dos avanços sociais tão
preciosos que definiram os mandatos de Lula com a irresponsabilidade econômica
da gestão de Dilma, depois de ter se envolvido em escândalos de corrupção que
derreteram a posição do partido como uma força moralizadora na política
brasileira, o PT chega agora a arriscar o seu maior legado: um modelo de fazer
política e de governar à esquerda inteiramente comprometido com a democracia.
Não é pouca coisa. Se trata de um ponto de referência para o
nosso continente e para o nosso tempo histórico. Numa América Latina obcecada
por décadas com o perigo de uma revolução comunista e a instalação de um
sistema totalitário, o maior êxito do PT foi aquele de provar não somente as
credenciais democráticas da esquerda, mas também a capacidade da esquerda de
fazer um bom governo e de cumprir as suas promessas de forma pragmática,
ponderada e responsável. Sob o comando do Celso Amorim, o Governo Lula também
demonstrou que é possível reforçar as forças progressistas no mundo afora com
uma diplomacia inteligente, baseada em princípios e soft power, não num
discurso militante que fecha qualquer porta ao diálogo. É dessa esquerda que
precisamos no século 21. De fato, a história nos ensina que é dessa esquerda
que a América Latina sempre precisou, mas raramente encontrou. Uma esquerda
inteligente. Uma esquerda reflexiva, que tem a coragem de fazer a sua
autocrítica. Uma esquerda que sempre busca questionar e atualizar as suas
ideias para reforçar a luta pela democracia, não uma esquerda que apela ao
discurso inflamado da guerra de classes para justificar o autoritarismo.
Como sugeri anteriormente, em vez de apostar numa dogma
ultrapassado, num discurso sectário, e no vitimismo, o PT poderia e deveria
fazer uma profunda autocrítica e tentar voltar aos seus valores fundamentais.
Mas quem fará essa autocrítica? A Gleisi Hoffmann? O Lindbergh Farias? A queda
moral do PT já não é mais um fenômeno tão recente para que possa ser revertido
de forma ágil. Em 2010, quando o diretório nacional do partido decidiu apoiar a
reeleição de Roseana Sarney, o PT ainda tinha um Domingos Dutra, que por uma
semana protestou contra a decisão com uma greve de fome no plenário do
Congresso. Não adiantou. Hoje em dia, o PT não precisa mais se preocupar com
esse tipo de resistência interna, já que conseguiu afastar os seus quadros mais
dignos.
Os recursos pessoais de carisma e popularidade do Lula,
mesmo aumentados pelos ocasionais abusos ou omissões do Judiciário, são
insuficientes para preservar o PT na frente da persistência nos mesmos erros.
Antes de passar a esquecer seu compromisso com a democracia na América Latina,
o PT destruiu sua democracia interna dentro do partido. A escolha da Gleisi
Hoffmann como presidente do PT segue o mesmo padrão que levou à escolha da
Dilma para a presidência. Basta falar que ambos os casos partiram de uma
decisão pessoal do Lula e não de o resultado de um consenso amplo. Hoffmann é
uma figura altamente impopular e as seu envolvimento notório na Lava Jato está
ligado a um probatório que, ao contrário do Lula, parece extremamente sólido.
Depois de sua fala abominável na Nicarágua, temos também uma perspectiva sobre
o apreço da Gleisi Hoffmann pela democracia.
O estado atual do PT e da esquerda brasileira como um todo
deixa o país completamente desprotegido frente ao fortalecimento das forças
mais retrógradas da sociedade. Independentemente do conflito de ideias,
independentemente do desprezo pelos inimigos políticos, é preciso resistir à
tentação do autoritarismo e desconstruir o discurso demagógico de ambos os
lados. A não ser que você queira viver na Venezuela.
Andrei Roman é doutorando em ciência política, cofundador da
plataforma de transparência Atlas Político, e cofundador do Catalyst News.
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