terça-feira, 22 de agosto de 2017

SANGUE DERRAMADO

Mario Vargas Llosa, EL PAÍS
O terrorismo sempre fascinou Albert Camus, que, além de uma obra de teatro sobre o tema, dedicou bom número de páginas de seu ensaio sobre o absurdo, O Mito de Sísifo, a refletir sobre este insensato costume dos seres humanos de achar que assassinando os adversários políticos ou religiosos se resolvem os problemas. A verdade é que salvo casos excepcionais, em que o extermínio de um sátrapa atenuou ou pôs fim a um regime despótico –os dedos de uma das mãos dão e sobram para contá-los- esses crimes costumam piorar as coisas que querem melhorar, multiplicando as repressões, perseguições e abusos. Mas é verdade que, em alguns raríssimos casos, como o dos narodniki russos citados por Camus, que pagavam com sua vida a morte dos que eles matavam pela “causa”, havia, em alguns dos terroristas que se sacrificavam atentando contra um verdugo ou um explorador, certa grandeza moral.
Não é o caso, com certeza, de quem, como acaba de ocorrer em Cambrils e nas Ramblas de Barcelona, investe ao volante de uma van contra indefesos transeuntes –crianças, idosos, pedintes, jovens, turistas, moradores- tentando atropelar, ferir e mutilar o maior número de pessoas. O que querem conseguir, demonstrar, com semelhantes operações de selvageria pura, de crueldade inaudita, como fazer explodir uma bomba num show, num café ou numa danceteria? As vítimas costumam ser, na maioria dos casos, pessoas comuns, muitas delas com preocupações econômicas, problemas familiares, tragédias, ou jovens desempregados, angustiados por um futuro incerto neste mundo em que conseguir um posto de trabalho se tornou um privilégio. Trata-se de demonstrar o desprezo que nutrem por uma cultura que, de seu ponto de vista, está moralmente aviltada porque é obscena, sensual e corrompe as mulheres outorgando-lhes os mesmos direitos que aos homens? Só que isso não tem sentido, porque a verdade é que o podre Ocidente atrai, como o mel faz com as abelhas, milhões de muçulmanos que estão dispostos a morrer afogados para entrar neste suposto inferno.
Também não parece muito convincente que os terroristas do Estado Islâmico ou da Al-Qaeda sejam homens desesperados pela marginalização e discriminação de que padecem nas cidades europeias. A verdade é que bom número dos terroristas nasceu nelas e lá recebeu sua educação, e se integrou mais ou menos às sociedades nas quais seus pais ou avós escolheram viver. Sua frustração não pode ser pior que a dos milhões de homens e mulheres que vivem na pobreza (alguns na miséria) e não se dedicam por isso a estripar seus próximos.
A explicação está pura e simplesmente no fanatismo, aquela forma de cegueira ideológica e depravação moral que fez correr tanto sangue e injustiça ao longo da história. É verdade que nenhuma religião nem ideologia extremista se livrou dessa forma extrema de obsessão que faz algumas pessoas acreditarem que têm direito de matar seus semelhantes para lhes impor seus próprios costumes, crenças e convicções.
O terrorismo islâmico é hoje o pior inimigo da civilização. Está por trás dos piores crimes dos últimos anos na Europa, esses cometidos às cegas, sem alvos específicos, a granel, em que se tenta ferir e matar não pessoas específicas, mas o maior número de pessoas anônimas, porque, para aquela obnubilada e perversa mentalidade todos os que não são os meus –essa pequena tribo na qual me sinto seguro e solidário- são culpados e devem ser aniquilados.
Nunca vencerão a guerra que declararam, é óbvio. A mesma cegueira mental que mostram em seus atos os condena a ser uma minoria que pouco a pouco –como todos os terrorismos da história- irá sendo derrotada pela civilização com a qual querem acabar. Mas é claro que ainda podem provocar muito dano e que continuarão morrendo inocentes em toda a Europa, como os 14 cadáveres (e os 120 feridos) das Ramblas de Barcelona e sendo semeado o horror e o desespero em incontáveis famílias.
Talvez o maior perigo desses crimes monstruosos seja que o melhor que o Ocidente tem –sua democracia, sua liberdade, sua legalidade, a igualdade de direitos para homens e mulheres, seu respeito pelas minorias religiosas, políticas e sexuais- se veja de pronto empobrecido no combate contra este inimigo insidioso e ignóbil, que não mostra a cara, que está encistado na sociedade e, claro, alimenta os preconceitos sociais, religiosos e raciais de todos e leva os governos democráticos, impulsionados pelo medo e pela cólera que os pressionam, a fazer concessões cada vez mais amplas nos direitos humanos em busca da eficácia. Na América Latina aconteceu; a febre revolucionária dos anos sessenta e setenta fortaleceu (e às vezes criou) as ditaduras militares, e, em vez de trazer o paraíso à Terra, pariu o comandante Chávez e o socialismo do século XXI na Venezuela da morte lenta de nossos dias.
Para mim, as Ramblas de Barcelona são um lugar mítico. Nos cinco anos em que vivi nessa querida cidade, duas ou três vezes por semana íamos passear por elas, comprar o Le Monde e livros proibidos em seus quiosques abertos até depois da meia-noite, e, por exemplo, os irmãos Goytisolo conheciam melhor que ninguém os segredos escabrosos do bairro chinês, que estava a suas margens, e Jaime Gil de Biedma, que depois de jantar no Amaya sempre conseguia escapulir e desaparecer em algum desses becos escuros. Mas, talvez, o maior conhecedor do mundo das Ramblas barcelonesas fosse um madrilenho que aparecia nessa cidade com pontualidade astral: Juan García Hortelano, uma das melhores pessoas que conheci. Ele me levou uma noite para ver numa vitrine que só se iluminava ao escurecer uma grotesca coleção de preservativos com cristas de galo, capelos e tiaras pontifícias. O mais pitoresco de todos era Carlos Barral, editor, poeta e estilista, que, rodando sua capa negra, sua bengala medieval e com seu eterno cigarro nos lábios, recitava aos gritos, depois de uns gins, o poeta Bocángel. Aqueles anos eram os dos últimos suspiros da ditadura franquista. Barcelona começou a se libertar da censura e do regime antes que o restante da Espanha. Essa era a sensação que tínhamos passeando pelas Ramblas, que já aquilo era Europa, porque ali reinava a liberdade de palavra, e também de obra, porque todos os amigos que estavam lá atuavam, falavam e escreviam como se a Espanha já fosse um país livre e aberto, onde todas as línguas e culturas estavam representadas na dissimilar fauna que povoava esse caminho pelo qual, conforme se baixava, cheirava-se (e às vezes até se ouvia) a presença do mar. Lá sonhávamos: a libertação era iminente, e a cultura seria a grande protagonista da Espanha nova que já estava surgindo em Barcelona.
Era exatamente esse símbolo o que os terroristas islâmicos queriam destruir derramando o sangue dessas dezenas de inocentes que aquela van apocalíptica –a nova moda- foi deixando espalhados nas Ramblas? Esse recanto de modernidade e liberdade, de fraterna coexistência de todas as raças, idiomas, crenças e costumes, esse espaço onde ninguém é estrangeiro, porque todos o são, e onde os quiosques, cafés, lojas, mercados e vendas diversas têm mercadorias e serviços para todos os gostos do mundo? Claro que não conseguirão. A matança dos inocentes foi uma poda, e as velhas Ramblas continuarão atraindo a mesma variada humanidade, como antes e como hoje, quando o aquelarre [sabá] terrorista for apenas uma lembrança apagada dos velhos, e as novas gerações se perguntarem do que falam, o que e como foi aquilo.
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