Mario Vargas Llosa, EL PAÍS
O terrorismo sempre fascinou Albert Camus, que, além de uma
obra de teatro sobre o tema, dedicou bom número de páginas de seu ensaio sobre
o absurdo, O Mito de Sísifo, a refletir sobre este insensato costume dos seres
humanos de achar que assassinando os adversários políticos ou religiosos se
resolvem os problemas. A verdade é que salvo casos excepcionais, em que o
extermínio de um sátrapa atenuou ou pôs fim a um regime despótico –os dedos de
uma das mãos dão e sobram para contá-los- esses crimes costumam piorar as
coisas que querem melhorar, multiplicando as repressões, perseguições e abusos.
Mas é verdade que, em alguns raríssimos casos, como o dos narodniki russos
citados por Camus, que pagavam com sua vida a morte dos que eles matavam pela
“causa”, havia, em alguns dos terroristas que se sacrificavam atentando contra
um verdugo ou um explorador, certa grandeza moral.
Não é o caso, com certeza, de quem, como acaba de ocorrer em
Cambrils e nas Ramblas de Barcelona, investe ao volante de uma van contra
indefesos transeuntes –crianças, idosos, pedintes, jovens, turistas, moradores-
tentando atropelar, ferir e mutilar o maior número de pessoas. O que querem
conseguir, demonstrar, com semelhantes operações de selvageria pura, de
crueldade inaudita, como fazer explodir uma bomba num show, num café ou numa
danceteria? As vítimas costumam ser, na maioria dos casos, pessoas comuns,
muitas delas com preocupações econômicas, problemas familiares, tragédias, ou
jovens desempregados, angustiados por um futuro incerto neste mundo em que
conseguir um posto de trabalho se tornou um privilégio. Trata-se de demonstrar
o desprezo que nutrem por uma cultura que, de seu ponto de vista, está
moralmente aviltada porque é obscena, sensual e corrompe as mulheres
outorgando-lhes os mesmos direitos que aos homens? Só que isso não tem sentido,
porque a verdade é que o podre Ocidente atrai, como o mel faz com as abelhas,
milhões de muçulmanos que estão dispostos a morrer afogados para entrar neste
suposto inferno.
Também não parece muito convincente que os terroristas do
Estado Islâmico ou da Al-Qaeda sejam homens desesperados pela marginalização e
discriminação de que padecem nas cidades europeias. A verdade é que bom número
dos terroristas nasceu nelas e lá recebeu sua educação, e se integrou mais ou
menos às sociedades nas quais seus pais ou avós escolheram viver. Sua
frustração não pode ser pior que a dos milhões de homens e mulheres que vivem
na pobreza (alguns na miséria) e não se dedicam por isso a estripar seus
próximos.
A explicação está pura e simplesmente no fanatismo, aquela
forma de cegueira ideológica e depravação moral que fez correr tanto sangue e
injustiça ao longo da história. É verdade que nenhuma religião nem ideologia
extremista se livrou dessa forma extrema de obsessão que faz algumas pessoas
acreditarem que têm direito de matar seus semelhantes para lhes impor seus
próprios costumes, crenças e convicções.
O terrorismo islâmico é hoje o pior inimigo da civilização.
Está por trás dos piores crimes dos últimos anos na Europa, esses cometidos às
cegas, sem alvos específicos, a granel, em que se tenta ferir e matar não
pessoas específicas, mas o maior número de pessoas anônimas, porque, para
aquela obnubilada e perversa mentalidade todos os que não são os meus –essa
pequena tribo na qual me sinto seguro e solidário- são culpados e devem ser
aniquilados.
Nunca vencerão a guerra que declararam, é óbvio. A mesma
cegueira mental que mostram em seus atos os condena a ser uma minoria que pouco
a pouco –como todos os terrorismos da história- irá sendo derrotada pela
civilização com a qual querem acabar. Mas é claro que ainda podem provocar
muito dano e que continuarão morrendo inocentes em toda a Europa, como os 14
cadáveres (e os 120 feridos) das Ramblas de Barcelona e sendo semeado o horror
e o desespero em incontáveis famílias.
Talvez o maior perigo desses crimes monstruosos seja que o
melhor que o Ocidente tem –sua democracia, sua liberdade, sua legalidade, a
igualdade de direitos para homens e mulheres, seu respeito pelas minorias
religiosas, políticas e sexuais- se veja de pronto empobrecido no combate
contra este inimigo insidioso e ignóbil, que não mostra a cara, que está
encistado na sociedade e, claro, alimenta os preconceitos sociais, religiosos e
raciais de todos e leva os governos democráticos, impulsionados pelo medo e
pela cólera que os pressionam, a fazer concessões cada vez mais amplas nos
direitos humanos em busca da eficácia. Na América Latina aconteceu; a febre
revolucionária dos anos sessenta e setenta fortaleceu (e às vezes criou) as
ditaduras militares, e, em vez de trazer o paraíso à Terra, pariu o comandante
Chávez e o socialismo do século XXI na Venezuela da morte lenta de nossos dias.
Para mim, as Ramblas de Barcelona são um lugar mítico. Nos
cinco anos em que vivi nessa querida cidade, duas ou três vezes por semana
íamos passear por elas, comprar o Le Monde e livros proibidos em seus quiosques
abertos até depois da meia-noite, e, por exemplo, os irmãos Goytisolo conheciam
melhor que ninguém os segredos escabrosos do bairro chinês, que estava a suas
margens, e Jaime Gil de Biedma, que depois de jantar no Amaya sempre conseguia
escapulir e desaparecer em algum desses becos escuros. Mas, talvez, o maior
conhecedor do mundo das Ramblas barcelonesas fosse um madrilenho que aparecia
nessa cidade com pontualidade astral: Juan García Hortelano, uma das melhores
pessoas que conheci. Ele me levou uma noite para ver numa vitrine que só se
iluminava ao escurecer uma grotesca coleção de preservativos com cristas de
galo, capelos e tiaras pontifícias. O mais pitoresco de todos era Carlos
Barral, editor, poeta e estilista, que, rodando sua capa negra, sua bengala
medieval e com seu eterno cigarro nos lábios, recitava aos gritos, depois de
uns gins, o poeta Bocángel. Aqueles anos eram os dos últimos suspiros da
ditadura franquista. Barcelona começou a se libertar da censura e do regime
antes que o restante da Espanha. Essa era a sensação que tínhamos passeando
pelas Ramblas, que já aquilo era Europa, porque ali reinava a liberdade de
palavra, e também de obra, porque todos os amigos que estavam lá atuavam,
falavam e escreviam como se a Espanha já fosse um país livre e aberto, onde
todas as línguas e culturas estavam representadas na dissimilar fauna que povoava
esse caminho pelo qual, conforme se baixava, cheirava-se (e às vezes até se
ouvia) a presença do mar. Lá sonhávamos: a libertação era iminente, e a cultura
seria a grande protagonista da Espanha nova que já estava surgindo em
Barcelona.
Era exatamente esse símbolo o que os terroristas islâmicos
queriam destruir derramando o sangue dessas dezenas de inocentes que aquela van
apocalíptica –a nova moda- foi deixando espalhados nas Ramblas? Esse recanto de
modernidade e liberdade, de fraterna coexistência de todas as raças, idiomas,
crenças e costumes, esse espaço onde ninguém é estrangeiro, porque todos o são,
e onde os quiosques, cafés, lojas, mercados e vendas diversas têm mercadorias e
serviços para todos os gostos do mundo? Claro que não conseguirão. A matança
dos inocentes foi uma poda, e as velhas Ramblas continuarão atraindo a mesma
variada humanidade, como antes e como hoje, quando o aquelarre [sabá]
terrorista for apenas uma lembrança apagada dos velhos, e as novas gerações se
perguntarem do que falam, o que e como foi aquilo.
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