Da ISTOÉ
Nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal foi pródigo
em emitir sinais trocados. Enquanto integrantes da corte ensaiavam um perigoso
flerte com a política, a intromissão em decisões do Legislativo e Judiciário
parecia virar regra – comportamento esse adotado na contramão da esperada
harmonia dos Poderes pregada pelo iluminista do século XVII Barão de
Montesquieu. Na última semana, o Supremo protagonizou uma importante inflexão.
Ventilada a hipótese de alteração na regra de execução penal, o tribunal, enfim,
investiu-se de sua função essencial de corte constitucional – responsável por
aplicar a Constituição e assegurar o equilíbrio da Justiça. Numa escalada sem
precedentes contra a impunidade, a presidente do STF, Carmén Lúcia, amplificou
o tom do discurso e criou, com a contribuição de magistrados, juristas e
integrantes do Judiciário, uma espécie de cordão de isolamento a fim de evitar
qualquer possibilidade de mudança na norma que estabelece a prisão após
condenação em segunda instância. A ministra foi contundente. Primeiro, disse
que usar o caso envolvendo Lula, condenado a 12 anos e um mês de prisão pelo
TRF-4, para revisar a norma seria “apequenar” o STF. Horas depois, Cármen
afirmou, de maneira peremptória, que o tema não entraria na pauta de discussões
do tribunal. “O Supremo não se submete a pressões para fazer pautas. A questão
foi decidida em 2016 e não há perspectiva de voltar a esse assunto. Não há
pauta sobre isso neste momento. Portanto, não há o que se cogitar”. Na
quinta-feira 1, a presidente do STF elevou ainda mais os decibéis ao cunhar a
mais dura declaração contra os que insistem em desrespeitar o Judiciário e a se
insurgir contra suas decisões, fazendo a apologia da desobediência civil – um
crime, por óbvio: “Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão judicial
pela qual se aplica o direito. Pode-se buscar reformar a decisão judicial pelos
meios legais e nos juízes competentes. O que é inadmissível e inaceitável é
desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la”, sapecou ela.
PADRÃO DIGNO DE LOUVOR
No calor da decisão do TRF-4, dotada de impecável rigor
técnico, a Justiça demonstra encontrar um novo e louvável padrão de atuação: o
que não se curva às conveniências políticas de quem quer que seja. Se algo de
outra natureza ocorresse, o STF corria sério risco de se transformar numa casa
de benemerência para o ex-presidente petista e políticos em geral. Não foi o
que aconteceu, nem acontecerá. A firmeza e a lisura de propósitos de Cármen
Lúcia, assentada no rigoroso cumprimento da lei, geraram uma onda de
solidariedade em diversos setores do Judiciário. A procuradora-geral da
República, Raquel Dodge, foi taxativa em entrevista na quarta-feira 31: “Nossa
agenda mais recente deve incluir a luta pelo fim da impunidade no Brasil. Para
isto, é necessário e o farei, defendendo o Supremo Tribunal Federal, e o início
da execução da pena quando esgotado o duplo grau de jurisdição”, afirmou. No
dia seguinte, a procuradora-geral reforçou a declaração, desta vez numa
referência à pena de inelegibilidade de réus condenados em segunda instância:
“O Ministério Público Eleitoral está pronto para fazer com que a Lei da Ficha
Limpa prevaleça”. O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil
(Ajufe), Roberto Velloso, endossou a postura de Cármen Lúcia. Para ele, a
execução da pena após condenação em segunda instância representa um avanço na
estrutura judicial brasileira. “Reavaliar isso será um retrocesso”, disse. José
Robalinho Cavalcante, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da
República (ANPR), manteve o tom ao dizer que não há razão jurídica para o STF
rediscutir a questão. “Não há perseguição nenhuma. O Brasil possui um
Judiciário técnico e isento”. Sem recorrer a mesuras, a professora de processo
penal do Instituto de Direito Público (IDP-SP), Fernanda de Almeida Carneiro,
deu tintas finais ao tema: “O STF deve manter a prisão após os embargos. Não
sobra mais nada. Lula terá que cumprir a pena”. Segundo apurou ISTOÉ, a
ministra Cármen Lúcia também contou com o apoio de integrantes da Forças
Armadas. Antes de levar sua manifestação adiante, Cármen também procurou saber
o que pensava a caserna, no que ouviu. “Queremos que Lula seja julgado dentro
da legalidade. Da estrita legalidade”.
A PALAVRA DE CÁRMEN LÚCIA
“Usar o caso envolvendo Lula, condenado a 12 anos e um mês
de prisão pelo TRF-4, para revisar a norma seria apequenar o STF”
“O Supremo não se submete a pressões para fazer pautas. A
questão foi decidida em 2016 e não há perspectiva de voltar a esse assunto. Não
há pauta sobre isso”
“Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão judicial. O
que é inadmissível e inaceitável é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la”
MINISTROS EM SINTONIA
Filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga,
Sócrates aconselhava os magistrados a ouvir cortesmente, responder sabiamente,
considerar sobriamente e decidir imparcialmente. No âmbito da polis grega,
entendia-se o juiz como um integrante do Judiciário presente e próximo à
sociedade. Pela sentença de Sócrates, percebe-se que não se exigia do
magistrado uma distância das pessoas e do clamor popular. É o que se observa
agora. Ao firmar jurisprudência, ainda em 2016, no sentido de que, após a
condenação penal em segunda instância, é possível dar início ao cumprimento da
pena, o STF restabeleceu o entendimento de que não é necessário esgotar todos
os recursos para que o réu possa ser preso. A decisão do Supremo foi um passo
importante para combater a morosidade da Justiça, responsável por alimentar a
sensação de impunidade no País – além de ter aumentado consideravelmente a
eficácia da ação do Ministério Público, da Polícia Federal e da Justiça no
combate aos crimes de colarinho branco.
Nos últimos dias, os ministros não só mostraram que não irão
recuar, como aumentaram o coro em favor da não revisão da sessão original. A
ministra Rosa Weber, por exemplo, havia votado contra a prisão após condenação
em segunda instância, mas tem defendido a manutenção do placar inicial. Outro
que havia apoiado o trânsito em julgado somente após a sentença nas três instâncias,
o ministro Marco Aurélio Mello adiantou na semana passada que não vai cobrar da
presidente Cármen Lúcia a inclusão do tema novamente na pauta. Para ele, é jogo
jogado. O ministro Alexandre de Moraes não participou da primeira votação, mas
também se soma à corrente favorável à manutenção da prisão em segunda
instância. Até o ministro Gilmar Mendes que chegou a insinuar uma mudança de
opinião, calibrou o discurso: “No caso da condenação pelo colegiado em segundo
grau a decisão está tomada. E a hipótese de enquadramento da situação jurídica
de Lula na Lei da Ficha Limpa é de clareza aritmética”, afirmou na quinta-feira
1.
O PT, como já era de se esperar, segue na toada de afrontas
ao Judiciário. A depender do partido, seria criada uma excepcionalíssima norma
que poderia ser batizada de “Regra Lula”, para ajustar a lei aos interesses do
líder maior da legenda. Os porta-vozes dos ataques à Justiça foram os de
sempre. Enrolado em processos da Lava Jato, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ)
chegou ao desplante de afirmar que “apequenar o Supremo” é “aceitar a política
de intimidação e constrangimento”, segundo ele, adotada não pelo PT, mas por
“magistrados de instâncias inferiores”, referindo-se ao juiz Sérgio Moro,
responsável pela condenação de Lula em primeira instância no caso do triplex do
Guarujá. O petista ainda usou palavras mais duras para criticar a presidente do
Supremo: “Cala boca voltou? Censura ou prendo e arrebento voltaram também? É
estarrecedor que o STF condicione o julgamento de um réu a declarações de
terceiros”. Na mesma linha do pupilo, o próprio Lula também dirigiu sua
artilharia ao Poder Judiciário. Sem papas na língua, disse que “eles
construíram um cartel para dar uma sentença unânime”. Já o deputado petista
Carlos Zarattini esbravejou sem qualquer escrúpulo de delicadeza contra a
presidente de um poder: “Cármen Lúcia é inepta”.
A choradeira do PT não surpreende. O que soaria inconcebível
é se o tribunal se dobrasse às pressões do partido. Seria como se o Supremo
assinasse a ficha de filiação petista, legenda que diuturnamente esculhamba o
Judiciário, classificando-o de “acovardado”, como já o fez Lula, e prega a
“desobediência civil”. Estaria, dessa forma, consumado o processo de
desmoralização do tribunal. Revisar a prisão em segunda instância agora seria
um duro golpe no enfrentamento à corrupção e no combate à impunidade que tanto
reinou no Brasil. Puro casuísmo para livrar Lula da cadeia. Nas precisas
palavras de Claudio Lamachia, presidente da OAB, “Justiça é Justiça e política
é política” e “a independência do Judiciário é pilar do Estado Democrático de
Direito.” Assim sendo, o intento do PT, felizmente, não irá prosperar. Com
Cármen Lúcia à frente, o STF não abrirá mão de sua principal atribuição
constitucional, a de guardião da República.
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