Passei uma semana no centro de São Paulo, antes da queda do
prédio de 24 andares no Largo do Paiçandu. Meu foco era a Cracolândia, mas não
deixei de registrar a grande presença de moradores de rua, cerca de 25 mil na
cidade, e os prédios ocupados pelos movimentos de sem-teto.
Um deles me impressionou. Tinha 20 andares, a pintura
encardida e cortinas rosa, vermelhas, verdes, algumas improvisadas com papelão.
A imagem me levou a alguns minutos de contemplação.
Um funcionário da Secretaria de Habitação me informou que
havia negociações em curso para comprá-lo e achar uma saída, antes que as
coisas ficassem mais graves. Um prédio com as mesmas características pegou fogo
e desabou. Havia negociações em curso.
Como entendo pouco do tema, procurei saber algo mais com os
atores envolvidos. Supunha que divergências ideológicas estivessem travando
soluções de consenso. Saí de São Paulo com uma sensação de que o problema é tão
complexo que o ideal seria definir pontos de convergência e tentar algumas
soluções, inclusive para a Cracolândia.
Não deixa de ser ingênuo desejar que as pessoas deixem a
rigidez ideológica na porta e discutam de uma forma madura medidas pragmáticas.
Os que se apoiam na ideologia e dependem do conflito para mobilizar precisam
experimentar também pequenas realizações para descobrir que não se cresce só
brigando, mas também fazendo acordos.
Existem setores que vão resistir. Na Cracolândia, por
exemplo, o crime organizado está presente e quer manter as coisas como estão.
Como explicar a invasão e o saque aos prédios populares que eram a vitrine do
governo Alckmin naquela região?
Os moradores do prédio no Largo do Paiçandu pagavam entre R$
200 e R$ 500 de aluguel. O movimento político que administrava a invasão tem
interesses materiais no status quo. Pelo que pude observar, examinando
propostas do governo e dos intelectuais de esquerda que fizeram o projeto de
renovação dos Campos Elísios, algumas casas populares estavam nos planos de
ambas as partes.
Apesar do grande desastre no Largo Paiçandu, o que senti nas
ruas de São Paulo é que os moradores de rua estavam vivendo um momento
favorável, se é possível dizer isso. Foram dias de sol e o verão abriu lugares
menos hostis. Eu os vi na lateral da Prefeitura e do outro lado da rua. São
muitas as ONGs e igrejas que procuram alimentá-los. No inverno as coisas ficam
mais difíceis – 25 mil pessoas ao relento equivalem à população de muitas
cidades do interior. Como agasalhá-los ou mesmo prevenir doenças e morte? A
isso se soma o fato de que mais de 1 milhão de pessoas vivem em condições
precárias de habitação.
Ao observar o que se passa na Cracolândia e no centro, outro
ângulo me preocupou: a segurança biológica. Vivemos tempos difíceis e o próprio
Bill Gates ao lado de um grupo de cientistas advertiu sobre o perigo das
epidemias, que podem ser devastadoras. É preciso incluir essa dimensão no
planejamento urbano, evitar a vulnerabilidade de parte da população porque, em
tese, o destino de todos está em jogo.
Minha viagem a São Paulo foi uma introdução à gravidade do
problema. Ele não acontece por acaso: milhares de pessoas deixam suas cidades
em busca de uma chance na metrópole.
Mas São Paulo é maior que esse problema. Isso não significa
que não se viva aqui um dos grandes dramas nacionais. O prédio desabado, por
exemplo, era do governo federal.
Os candidatos a presidente poderiam fazer uma visita ao
centro de São Paulo. Mesmo que isso não os motive, pelo menos conheceriam um
importante aspecto do país que pretendem governar.
Mencionei a Cracolândia e o centro num artigo na semana
passada, desejando aprender com as soluções e torcendo por elas. Concluí que se
a sensação de urgência não prevalecer sobre a rigidez da visão ideológica,
corremos o risco de tornar o Brasil ingovernável.
A queda de um edifício de 24 andares no centro da maior e
mais rica cidade do Brasil é algo forte demais para ser um episódio perdido no
tempo. Para mim, o lugar é uma espécie de marco zero. Não só o terror devasta,
mas também anos de indecisão e descaminhos.
Soluções amplas para problemas dessa dimensão precisam de
dinheiro. Se puder vir de todas as fontes, melhor. O governo federal tem uma
secretaria de drogas. Não é possível que não tenha uma política para a
Cracolândia, onde o drama se mostra sem máscara.
Uma renovação desse território é tão desafiadora que até o
seu êxito pode criar novos problemas: uma política bem-sucedida com a população
de rua, em tese, pode atrair mais gente para a metrópole.
Casas populares numa área economicamente forte podem
originar o que os ingleses chamam de gentrificação. Elas se valorizam, os
moradores as vendem para gente de mais poder aquisitivo. Mas é melhor tratar
com eles do que com o fracasso. Na verdade, as coisas estão mudando na região,
mas num ritmo ainda lento.
Um hospital será construído na Cracolândia, o Pérola
Byington. A base policial montada no Largo Coração de Jesus é elogiada pelos
moradores. Embora os soldados não cheguem até o chamado fluxo, a concentração
de usuários de crack, eles garantem uma segurança no entorno.
Três postos do governo acolhem usuários e moradores de rua
em espaços onde podem comer, tomar banho, dormir, obter documentos e até fazer
terapia musical. Comparando imagens que fiz agora com as do passado, cheguei à
conclusão de que houve uma redução, um progresso territorial que afastou de uma
praça e alguns outros pontos a concentração de usuários.
Tomara que a queda do edifício ajude também a apressar os
passos dados, desatar longas negociações. Por que tragédias num lugar que pode
ser um dos mais atraentes da metrópole?
Artigo publicado no Estadão em 04/05/2018
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