Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo
No mesmo dia, Jair Bolsonaro desautorizou seus dois principais ministros. O presidente exigiu que Sérgio Moro (Justiça) revisse o convite para que Ilona Szabó ocupasse uma suplência do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, pelo fato de ela ser crítica às suas políticas para a área e ter feito campanha contra sua eleição em 2018.
Em café com jornalistas, admitiu a possibilidade de que seja revista a idade mínima de aposentadoria de mulheres na reforma da Previdência (de 62 anos para 60) antes mesmo de o texto começar a tramitar nas comissões da Câmara, desidratando um dos pontos nevrálgicos da proposta apresentada uma semana antes por Paulo Guedes (Economia).
Moro e Guedes são os dois pilares mais sólidos do governo Bolsonaro e detêm as pautas mais importantes para o sucesso da administração. Não é a primeira vez que Bolsonaro arbitra questões contra os dois. Moro perdeu a queda de braço nas regras do decreto que flexibilizou a posse de armas.
Guedes teve de engolir pressão dos ruralistas pela manutenção de regras protegendo produtores de leite na importação de leite em pó. E já havia sido derrotado na ideia de que a idade mínima para homens e mulheres fosse a mesma. Onde está a carta branca que Bolsonaro disse que daria a ambos quando os convenceu a deixarem suas confortáveis e respeitadas posições profissionais para se engajar em seu governo?
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019
CHOQUES NO PLANALTO
José Casado, O GLOBO
Plano de invadir Venezuela causa choques no Planalto
O colapso da ditadura venezuelana expôs uma situação paradoxal em Brasília. Militares da ativa e aposentados empregados no Planalto têm expressado mais convicção na saída política do que civis representantes do Brasil na mesa diplomática.
A cacofonia deriva do embate entre a curadoria militar do governo Jair Bolsonaro e o agrupamento civil em torno do chanceler Ernesto Araújo, que é amparado por um dos filhos do presidente, o deputado Eduardo.
Os choques ocorrem na definição de limites ao alinhamento do Brasil com os EUA. Existe interesse nas ofertas americanas para tecnologias bélicas inéditas no país. Mas há, também, ambiguidades que as Forças Armadas acham útil preservar. Por exemplo, em negociações na área nuclear, onde se explora um acordo.
Não incomoda a cruzada contra o “domínio cultural esquerdista-marxista”, como define o deputado Bolsonaro. Até porque nada se cria do nada. O centro da divergência está na condução da política externa a reboque do ideário fundamentalista.
O debate sobre a hipótese de invasão da Venezuela tem sido exemplar, com veto unânime dos militares. Em contraste, a chancelaria tem elevado o tom nos ultimatos ao condomínio de cleptocratas da “revolução” chavista —a “robolución”, como é conhecida em Caracas.
Araújo insiste na sintonia com a ala mais belicista de Washington, que vê na queda da ditadura de Maduro, com reflexos em Havana e Manágua, fator de influência no voto latino majoritário na Flórida, estado decisivo à reeleição de Trump.
No domingo, o Itamaraty atacou o “caráter criminoso” de Maduro, pelo “brutal atentado aos direitos humanos”, injustificável “no direito internacional”. Se adjetivos são úteis à diplomacia, substantivos errados em política externa ampliam cemitérios.
Na premissa, a chancelaria flerta com a admissão de guerra civil na Venezuela. Na lógica de Estado, esse raciocínio leva à legitimação do intervencionismo. A base está nos protocolos da Convenção de Genebra que proíbem a submissão da população civil à fome, como método de combate.
Plano de invadir Venezuela causa choques no Planalto
O colapso da ditadura venezuelana expôs uma situação paradoxal em Brasília. Militares da ativa e aposentados empregados no Planalto têm expressado mais convicção na saída política do que civis representantes do Brasil na mesa diplomática.
A cacofonia deriva do embate entre a curadoria militar do governo Jair Bolsonaro e o agrupamento civil em torno do chanceler Ernesto Araújo, que é amparado por um dos filhos do presidente, o deputado Eduardo.
Os choques ocorrem na definição de limites ao alinhamento do Brasil com os EUA. Existe interesse nas ofertas americanas para tecnologias bélicas inéditas no país. Mas há, também, ambiguidades que as Forças Armadas acham útil preservar. Por exemplo, em negociações na área nuclear, onde se explora um acordo.
Não incomoda a cruzada contra o “domínio cultural esquerdista-marxista”, como define o deputado Bolsonaro. Até porque nada se cria do nada. O centro da divergência está na condução da política externa a reboque do ideário fundamentalista.
O debate sobre a hipótese de invasão da Venezuela tem sido exemplar, com veto unânime dos militares. Em contraste, a chancelaria tem elevado o tom nos ultimatos ao condomínio de cleptocratas da “revolução” chavista —a “robolución”, como é conhecida em Caracas.
Araújo insiste na sintonia com a ala mais belicista de Washington, que vê na queda da ditadura de Maduro, com reflexos em Havana e Manágua, fator de influência no voto latino majoritário na Flórida, estado decisivo à reeleição de Trump.
No domingo, o Itamaraty atacou o “caráter criminoso” de Maduro, pelo “brutal atentado aos direitos humanos”, injustificável “no direito internacional”. Se adjetivos são úteis à diplomacia, substantivos errados em política externa ampliam cemitérios.
Na premissa, a chancelaria flerta com a admissão de guerra civil na Venezuela. Na lógica de Estado, esse raciocínio leva à legitimação do intervencionismo. A base está nos protocolos da Convenção de Genebra que proíbem a submissão da população civil à fome, como método de combate.
O PONTO A QUE CHEGAMOS
Sergio Fausto, PIAUÍ
Em meados de 2015, a Folha de S.Paulo me convidou para publicar um artigo na Ilustríssima sobre o futuro do PSDB. Escrevi um texto dizendo que a crise do PT, já na época enredado na Lava Jato (tucanos vieram a enredar-se depois), abria espaço para o PSDB retomar a sua original posição de centro-esquerda no espectro político. Mais do que uma análise, expressava um desejo pessoal. Celso Rocha de Barros, em artigo publicado em seguida, rebateu afirmando que para o PSDB não havia mais volta possível às origens. O partido se tornara uma força de contenção da direita propriamente dita. Gostei do argumento do Celso. Realista, pensei: se assim for, o partido continuará a cumprir um papel importante.
Menos de quatro anos depois, difícil não concluir que ambos estávamos enganados. O PSDB nem se estendeu para a centro-esquerda nem serviu de dique eficiente para conter a maré conservadora, com fortes correntes reacionárias, que carregou Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto em outubro de 2018.
Que uma onda à direita vinha crescendo desde 2013/2014, já se sabia. Mas a força e a extensão com que rebentou na praia surpreenderam a todos: o mais desabrido dos deputados direitistas do baixo clero se elegeu presidente; candidatos desconhecidos de direita venceram as eleições para governador nos estados do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de Santa Catarina, além de Rondônia, contra todas as expectativas; um major da Polícia Militar de São Paulo derrotou Eduardo Suplicy na disputa pelo Senado; o PSL, partido até então inexpressivo, elegeu a segunda maior bancada da Câmara, 52 deputados, boa parte deles desconhecida na política – e por aí vai.
Demorei a me dar conta de que a maré conservadora poderia chegar lá. Fui mais sensível aos riscos de um projeto hegemônico do PT, que engendrou uma poderosa máquina de sucção de recursos do Estado para financiar o partido e seus aliados, cooptar a sociedade civil, apoiar governos e partidos amigos na redondeza, com ramificações na África. O mecanismo operava por meio de um conjunto de empresas escolhidas para receber o quinhão maior dos benefícios do governo e, em contrapartida, reinjetar o produto de contratos superfaturados num sistema que corrompeu as instituições do Estado e o sistema partidário como nunca antes na história desse país. Diga-se o que se disser sobre os excessos e abusos da força-tarefa da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro – e se deve dizer sem hesitação –, foram eles os principais responsáveis por impedir que a corrupção sistêmica das instituições republicanas continuasse a avançar, dando ao Brasil a chance de limitar o alcance de práticas nas quais todos os partidos, sem exceção, se lambuzaram em maior ou menor grau.
Nas manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff, passaram-me quase despercebidos sinais claros de que grupos abertamente de direita ganhavam protagonismo. Lembro-me daquele 13 de março de 2016, quando uma multidão se espremeu em vários quarteirões da avenida Paulista (1,4 milhão segundo a PM; 500 mil de acordo com o Datafolha), na maior manifestação de rua desde o movimento das Diretas Já.
Entrei na Paulista pela alameda Campinas e, na esquina, me deparei com um caminhão de som sobre o qual vociferava para uma turma de entusiastas um deputado federal que na época eu mal conhecia: Eduardo Bolsonaro. Sabia dele apenas o suficiente para decidir dar meia-volta e acessar a Paulista por outra rua transversal. Não poderia imaginar que dois anos depois ele seria reeleito deputado federal com a maior votação do país e seu pai se elegeria presidente da República.
Olhando hoje as pesquisas de opinião da época vê-se que teria sido possível perceber que os ventos sopravam à direita. O Datafolha, por exemplo, registrou uma clara predominância de pessoas que se declaravam de centro-direita ou de direita nas pesquisas sobre a opinião dos que participaram das manifestações pelo impeachment. As classes média e alta saíam à rua pela primeira vez: a vasta maioria dos participantes jamais havia participado de um ato público. Monopólio do PT até 2013, a praça pública se tornava definitivamente hostil ao partido de Lula. O mesmo acontecia no meio digital, até então território onde os blogueiros petistas, boa parte organizada e remunerada com recursos oficiais, se moviam com grande vantagem.
Ali, em meio a vastas emoções e pensamentos imperfeitos, eu tinha três certezas: Dilma produzira um desastre econômico, perdera as condições políticas para governar e havia base legal para o impeachment. Seu governo passara da “contabilidade criativa” ao cometimento de infrações graves e reiteradas contra as leis orçamentárias, com inegáveis propósitos eleitorais. Violara a Lei de Responsabilidade Fiscal, usando os bancos federais para financiar despesas do Tesouro, e desrespeitara a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2014, que a obrigava a cortar gastos, aumentar receitas ou ajustar a meta de superávit primário se a execução orçamentária revelasse ser impossível atingi-la. A impossibilidade se tornou evidente a partir do primeiro trimestre, mas o governo acelerou os gastos e adiou a redefinição da meta para depois da eleição, quando admitiu oficialmente que ela seria apenas uma minúscula fração da que havia sido prevista na LDO.
Quem melhor contou essa história foram os jornalistas Claudia Safatle, João Borges e Ribamar de Oliveira em Anatomia de um Desastre. Além de dissecar o cadáver econômico do governo Dilma, o livro desmonta o argumento de que a ex-presidente perdeu o cargo por práticas corriqueiras e triviais.
No entanto, até hoje tenho sentimentos ambivalentes em relação ao impeachment. De um lado, penso que ele evitou que continuássemos a cavar o buraco da crise em caminho de retorno aos anos 80, marcados por desordem fiscal, isolamento do mundo e inflação alta, crônica e crescente. De outro, não tenho dúvida de que contribuiu para a polarização entre a direita bolsonarista e a esquerda petista, ambas agarradas a mitos regressivos, embora não equivalentes.
Politicamente, o impeachment foi um alto negócio para o PT. O partido livrou-se do ônus da crise produzida por seu governo e ganhou terreno na guerra das narrativas com a tese do golpe parlamentar orquestrado pelas elites e da vitimização de Lula.
Como chegamos a esse ponto? É tentador responder com um breve exercício contrafatual. E se o PT não tivesse elegido o PSDB como seu principal adversário, depois de uma transição de poder civilizada e construtiva? E se Lula não tivesse tomado partido a favor de Dilma na disputa com os ministros e economistas ortodoxos que o aconselharam em 2005 a adotar um programa de ajuste fiscal de longo prazo que, à época, importaria em poucos sacrifícios de curto prazo e enormes benefícios a médio prazo? E se os então donos do poder tivessem aprendido a lição do mensalão, em lugar de dobrar a aposta que os levou ao petrolão? E se o PSDB não tivesse, nos estados, se associado às mesmas empresas beneficiadas pelo esquema federal de corrupção? E se tivesse punido exemplarmente Aécio Neves? E se este não tivesse ingressado com ações de anulação de mandato eletivo contra Dilma Rousseff logo após a reeleição dela à Presidência? E se ela não houvesse feito “o diabo” para vencer aquela eleição? E se a elite política do país tivesse compreendido o recado das manifestações de 2013 e promovido uma reforma política que ajudasse na recuperação do prestígio da representação, em vez de se atirar, no ano seguinte, à disputa da mais cara e corrupta campanha eleitoral da história brasileira?
Esse breve exercício contrafatual serve para deixar claro que chegamos ao ponto a que chegamos não por determinação dos deuses da história e sim por uma sequência de escolhas dos principais atores políticos dos últimos trinta anos. Poderia acrescentar ainda outro “e se”, para chamar atenção para a importância do acaso: o atentado contra a vida de Bolsonaro numa etapa crítica da campanha não estava escrito nas estrelas e impulsionou a vantagem que o ex-capitão tinha sobre os demais candidatos do campo antipetista. A facada cristalizou a polarização eleitoral Bolsonaro versus Haddad, logo em seguida oficializado como o candidato de Lula e do PT.
Seguirei daqui em diante, porém, outra linha de argumento, explorando correntes mais profundas que, a meu ver, levaram Bolsonaro ao Palácio do Planalto e a direita ao poder. Elas dizem respeito ao esgotamento dos acordos explícitos e implícitos, predominantes a partir de 1988, sobre a organização e gestão do Estado, da economia e da política.
Acordos não devem ser entendidos como conchavos espúrios. Utilizo o termo para me referir a certos consensos mínimos entre as elites, no plural e em sentido amplo, sobre a organização e gestão do Estado, da economia e da política, considerados suficientemente eficientes e legítimos pela maioria da sociedade.
No Brasil dos últimos trinta anos, esses acordos se construíram dentro dos moldes da Constituição de 1988 e se refizeram à medida que a integração do Brasil ao mundo, a consolidação da estabilidade econômica e a democratização da sociedade brasileira avançavam. A aprovação de diversas emendas à Constituição e de leis complementares expressa a capacidade que o país teve de adaptar o marco legal a esses processos de mudança, não raro contraditórios em suas exigências, sem se desviar do rumo democrático e do compromisso de ampliar o acesso a direitos universais, notadamente na área social.
A democratização, a globalização e a prescrição constitucional em favor da ampliação da cidadania desencadearam uma dinâmica social de expectativas crescentes, em particular depois de virada a página da hiperinflação. Entre o Plano Real e o término do primeiro governo Lula, houve uma evolução satisfatória da capacidade de resposta a essas expectativas, devido a uma sequência não linear, mas contínua, de reformas que construíram melhores instituições nas áreas fiscal, monetária, regulatória e, não menos importante, social.
As condições no momento da largada, na virada dos anos 80 para os anos 90, não prenunciavam sucesso nessa empreitada: hiperinflação, dívida externa “impagável”, isolamento econômico e financeiro em relação ao mundo, governos impopulares e o impeachment do primeiro presidente eleito depois do retorno à democracia.
Se as condições na largada pressagiavam fracasso, as ambições, por sua vez, não eram pequenas: tratava-se de “resgatar a dívida social” e de desconcentrar o poder: de Brasília para estados e municípios, do Executivo para o Congresso, do Estado para a sociedade, criando mecanismos de controle desta sobre aquele. Tudo isso num país historicamente marcado por elevados níveis de pobreza e desigualdade, além de práticas autoritárias e patrimonialistas. Como se fosse pouco, teríamos de cumprir essas ambições contando com um sistema de governo – o chamado presidencialismo de coalização, em ambiente multipartidário – sobre o qual pesava não apenas a opinião negativa então predominante na ciência política, mas também a experiência de crises vividas no período democrático anterior (1945-64).
Contra a opinião conservadora, para a qual a Constituição de 1988 tornava o país ingovernável, e depois de um início trôpego, o Brasil ingressou a partir de 1994 e da vitória sobre a hiperinflação numa trajetória positiva de enraizamento da democracia, forte redução da pobreza, alguma diminuição da desigualdade e melhoria da governabilidade.
Ocorre que, a partir de certo momento, o fosso entre as expectativas da sociedade e a capacidade de resposta dos governos se tornou muito grande, menos por problemas externos ao país e mais pela interrupção, quando não pela reversão, da sequência de reformas iniciada com o Plano Real.
A vala das três crises simultâneas (econômica, política e moral) que acometeram o país a partir de 2014 começou a ser cavada, sem que a maioria se desse conta, na esteira do ufanismo despertado pela descoberta das reservas do pré-sal. O incrementalismo reformista voltado à criação de instituições favoráveis ao desenvolvimento econômico e social sustentado foi substituído por um voluntarismo falsamente desenvolvimentista, apressado e míope, além de condicionado por um projeto de poder em que se articulavam o capitalismo de compadrio, a politização dos programas de transferência de renda e a hegemonia de um partido.
Passamos da euforia do pré-sal à depressão provocada pelo tombo da economia a partir de 2014, a mais profunda e prolongada recessão já registrada nas estatísticas oficiais do país. A frustração de expectativas que ela provocou foi proporcional à ascensão social que conheceram amplas camadas de menor renda no período anterior. A mobilidade social estava assentada em bases não muito sólidas, porque excessivamente dependentes do endividamento das famílias, estimulado pelo governo.
A “nova classe média” que emergira nos anos Lula teve seus sonhos subitamente interrompidos, sem aviso prévio. Menos atingidos pela crise foram os que continuaram pobres, com a renda dependendo em grande medida das transferências governamentais feitas, entre outros programas, pelo Bolsa Família, produto da junção e expansão de programas criados no governo Fernando Henrique Cardoso.
Mesmo antes de a economia despencar, já era possível observar a acumulação de frustrações com a oferta de serviços públicos. O caso da saúde é interessante. Dados de pesquisas Ibope-CNI mostram que a aprovação ao Sistema Único de Saúde, o SUS, começa a declinar sistemática e significativamente a partir de 2011, passando da faixa entre 40% e 50% para a faixa entre 10% e 20%. Minha hipótese é que a piora na avaliação popular do SUS se deveu a um duplo processo. De um lado, a um fenômeno bem conhecido dos cientistas sociais: uma vez atendidas expectativas básicas de uma população antes sem acesso a determinados bens e serviços, surgem no momento seguinte novas e mais exigentes expectativas dessa mesma população sobre a quantidade e qualidade do que lhe foi ofertado inicialmente. De outro, ao fato de que o SUS não produziu respostas satisfatórias aos problemas de governança e gestão do sistema à medida que ele foi se ampliando e tornando mais complexo.
Creio que essa hipótese ajuda a explicar a frustração de expectativas geradas com a expansão da oferta de outros serviços públicos essenciais, como a educação. Tampouco nesse caso houve a passagem da quantidade à qualidade, por assim dizer, ao menos não na velocidade e escala esperadas.
A frustração é ainda maior entre as camadas da população que melhoraram a sua renda e, em vista de uma educação pública insatisfatória, se veem impelidas a matricular seus filhos e filhas em escolas privadas, com forte impacto sobre o orçamento familiar. Processo análogo se dá na área da saúde: a demora no acesso a médicos especialistas e tratamentos de maior complexidade na rede pública leva famílias “remediadas” a fazer um enorme sacrifício financeiro para comprar planos privados.
Estamos falando de um contingente crescente de indivíduos que, pouco a pouco, a partir de 1994, à medida que o país encontrou um rumo positivo, ganhou a consciência de que são cidadãos portadores de direitos e, ao mesmo tempo, contribuintes. Sabedores do esforço tributário que o Estado lhes exige, se veem, no entanto, compelidos a comprar no mercado privado serviços que o Estado estaria constitucionalmente obrigado a lhes oferecer. O mal-estar com essa “contradição” veio à tona nas manifestações de 2013, num contexto em que a corrupção passava a ser percebida como um dos problemas públicos prioritários. Cresceu o sentimento de que “eles” (o Estado, a classe política, o governo) prometem, me cobram, eu pago (embora não receba), e eles ainda me roubam. Senti isso na pele algumas vezes, ao tentar explicar para motoristas de táxi e outros representantes da classe média que a “coisa não é tão simples assim”. Acabei por me calar.
Na esteira de sucessivos escândalos, avolumou-se o desprestígio das instituições políticas, em particular dos partidos e do Congresso – e dos personagens que neles habitam, os políticos profissionais. O desprestígio se transformou em rechaço depois do petrolão.
Se de um lado a sucessão de escândalos demonstrou o aprimoramento da capacidade do Estado de identificar e combater a corrupção, de outro pôs a nu o que os observadores mais atentos já sabiam: à medida que as campanhas eleitorais ficaram mais caras e competitivas, mais incestuosas se tornaram as relações entre partidos, políticos e empresas doadoras. Como o papel aceita tudo e a capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral é limitada, as prestações de contas eleitorais viraram um faz de conta.
A corrupção deixou de ser prática frequente para se tornar parte intrínseca da representação política. Não é que todos os políticos viraram corruptos, e sim que as chances eleitorais e o poder dentro dos partidos e junto aos governos passaram a depender cada vez mais do toma lá dá cá entre representantes políticos – e seus indicados para cargos públicos – e empresas interessadas no superfaturamento de contratos com o setor público. Em contraste, afrouxou-se o laço entre os partidos e os candidatos e os eleitores, em especial na representação parlamentar. A proliferação de siglas, a dificuldade de se informar sobre quem é quem nas listas de candidatos, as distorções criadas pelas coligações nas eleições para os legislativos (voto no meu partido preferido e sem saber elejo um candidato do partido coligado) – são muitos os fatores que contribuem para a má qualidade da relação entre eleitor e eleito. Nesse ecossistema floresceram espécimes como Eduardo Cunha, que se adaptam melhor à transformação da política em negócio financiado com recursos do contribuinte.
Se no caso da educação e da saúde se pode falar em frustração de expectativas, no da segurança pública o que existe é o medo da escalada da violência. Sim, há uma indústria que se alimenta do pânico em matéria de segurança pública. Mas os dados não mentem. A taxa de homicídios quase triplicou desde que começou a ser medida, em 1979. Era de 11 mortes por 100 mil habitantes em 1980; superou os 30 casos por 100 mil habitantes em 2017. Nessa área, o país regrediu inequivocamente, embora alguns estados tenham sido capazes de reduzir a taxa de homicídio.
A deterioração da segurança pública é filha da expansão do narcotráfico e de uma série de negócios ilícitos comandados por organizações criminosas e milícias igualmente criminosas, ambas com a conivência da banda podre da polícia.
Os governos do PSDB e do PT tardaram a se dar conta de que o problema exigia uma resposta coordenada e estratégica. O primeiro Plano Nacional de Segurança Pública surgiu em 2000, quando a taxa de homicídio já atingia 25 para um grupo de 100 mil habitantes (seu maior salto se deu nos anos 80). Até então o governo federal havia optado por se omitir e não meter a mão numa cumbuca que presumia ser de responsabilidade exclusiva dos estados. De lá para cá, houve melhoras pontuais, mas a tendência de deterioração da segurança pública seguiu seu curso.
Os defensores dos direitos humanos, entre os quais me incluo, demoramos a nos dar conta de que a criminalidade havia mudado de escala e de patamar, em termos organizacionais e financeiros, afetando em particular as periferias das grandes cidades. Os moradores dessas áreas se tornaram reféns das organizações criminosas – ora brutais, ora benfeitoras, mas sempre exigindo em troca a submissão absoluta – e vítimas preferenciais dos ineficazes e não raro truculentos enfrentamentos da polícia com aquelas organizações.
Nas periferias das grandes cidades (e nos morros cariocas) impera a lei do cão. No tiroteio pesado da guerra pelo controle do negócio das drogas e contra as drogas, morrem quase sempre jovens, negros e pobres. O drama é mais visível nas cidades mais populosas, mas se espalhou pelo país, em especial com a disseminação do crack. Contra esse pano de fundo, se entende por que as forças abertamente de direita voltaram ao poder, com protagonismo militar.
Se no passado a direita encontrava base importante entre os católicos, hoje ela volta ao poder com o apoio maciço dos evangélicos. Com recursos, acesso a canais de tevê e rádio e número crescente de adeptos, as igrejas neopentecostais foram aonde o povo está. Existe manipulação da fé e abuso de poder econômico, mas compreender o sucesso dessas igrejas implica reconhecer o papel que desempenham na formação de redes de solidariedade que, além de estabelecerem laços comunitários, oferecem melhores oportunidades de obtenção de emprego e de renda aos fiéis. Em muitas periferias onde a presença do Estado é precária, a única alternativa ao crime organizado é a igreja evangélica. É nesse terreno que a moral conservadora conquistou corações e mentes.
A despeito da grande presença de militares no governo Jair Bolsonaro e da aliança conservadora que em torno dele se formou, não estamos de volta a 1964 nem na iminência de regressar a um regime autoritário.
Isso não significa que não devamos estar alertas contra retrocessos – em algumas áreas já visíveis –, acarretados pelas pulsões autoritárias e retrógradas de setores do novo governo que não raro encontram apoio no gabinete presidencial.
Tão importante quanto isso, no entanto, é construir um acordo entre as forças de oposição sobre uma nova agenda de mudança, que responda ao esgotamento do ciclo aberto pela Constituição de 1988. Isso em nada enfraquece a disposição para defender o núcleo do que há de mais precioso na Constituição: os dispositivos que consagram e asseguram uma ordem política livre e democrática e oferecem instrumentos de defesa dos interesses difusos. Tampouco significa largar no meio da estrada as conquistas obtidas com a construção de sistemas públicos de educação e saúde, complementados por sistemas privados.
Não creio no pecado original, mas penso que os constituintes cometeram equívocos no desenho dos regimes fiscal, tributário e federativo, além de amarrar a administração pública à camisa de força de um modelo de estado burocrático.
O país não se tornou “ingovernável”, como profetizou o então presidente José Sarney. Nem estavam “de porre” os constituintes, como à época ironizou Mario Henrique Simonsen. O tempo, porém, se encarregou de mostrar que tais críticas, indicativas de certa antipatia pela dinâmica social e política de uma sociedade que se democratizava, não estavam destituídas de algum fundamento.
É preciso incorporar essas críticas não para retroceder à oferta centralizada, restrita e seletiva de serviços públicos de antes de 1988, mas, pelo contrário, para assegurar que a expansão desses serviços se dê de forma financeiramente sustentável. Não sendo mais possível ampliar a carga tributária para financiá-los, nada é tão importante de agora em diante quanto torná-los mais eficientes e menos vulneráveis à captura por interesses corporativos e por demandas de camadas de renda mais alta (como é frequente no caso do SUS, sobretudo por meio de decisões liminares do Judiciário).
Além de mais eficiente, a oferta desses serviços precisa se tornar mais eficaz na redução dos desequilíbrios sociais e regionais do país. Isso requer maior coordenação federativa, o que parecem não perceber os que acreditam que mais e mais descentralização seja a cura para todos os males do país.
Não há uma separação rígida entre os problemas econômicos e os sociais do Brasil. Em geral, o mundo intelectual e político se divide entre os que olham para um lado dessa equação e não olham para o outro. Sem promover a convergência desses dois olhares, o país terá dificuldade para retomar o rumo do desenvolvimento sustentado e da construção de uma sociedade mais justa.
Peço alguns parágrafos de paciência ao leitor para explicar esse ponto.
O regime fiscal e tributário desenhado pela Constituição de 1988 gerou desequilíbrios estruturais nas contas públicas, ao transferir receitas para estados e municípios, mas manter, sob a responsabilidade da União, despesas que só fariam crescer nos anos seguintes, em particular com a Previdência. A ponto de os benefícios previdenciários consumirem no presente, a despeito de reformas pontuais feitas ao longo dos anos, cerca de 50% do orçamento do governo federal.
Em proporção do PIB, o Brasil gasta com benefícios previdenciários o mesmo que o Japão, país que tem uma porcentagem pelo menos duas vezes maior de idosos. A distribuição desses benefícios, em grande medida financiada com recursos de todos os contribuintes, tem viés regressivo no Brasil, ou seja, favorece os indivíduos de maior renda que se aposentam (precocemente) pelo INSS e, em especial, os servidores públicos, membros de carreiras ligadas ao Judiciário e ao Ministério Público e ao Legislativo, que se retiram para a inatividade com aposentadoria integral com pouco mais de 50 anos, em média. Cidadã na afirmação dos direitos sociais, civis e políticos, a Constituição de 88 também consagrou, contraditoriamente, privilégios de corporações do setor público.
Por causa das crescentes obrigações de gastos, a União passou a recorrer a aumentos sucessivos de tributos não compartilhados com estados e municípios, as chamadas contribuições sociais. Com isso, a carga tributária total aumentou de 25% para 32% do pib entre 1993 e 2003, na era FHC, permanecendo ao redor desse patamar nos anos subsequentes, o que coloca o Brasil na liderança dos países que mais tributam na América Latina e além da média dos países mais desenvolvidos (acima, por exemplo, de Suíça, Coreia do Sul e Canadá). Ao rápido crescimento da carga de impostos correspondeu uma piora na qualidade do sistema tributário, com o aumento da participação dos tributos em cascata. Ao mesmo tempo, com os gastos correntes (incluindo pessoal, da ativa e aposentados) consumindo partes cada vez maiores do orçamento, os recursos para o investimento público minguaram, criando mais um freio ao aumento da produtividade e ao crescimento da economia.
Já os estados, também premidos por gastos crescentes, se lançaram a explorar as novas bases do ICM, transformado em ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços), depois de 1988. Impuseram tributação pesada sobre telecomunicações, energia, combustíveis e transportes, onerando insumos cujos custos afetam o conjunto da economia. Simultaneamente, engajaram-se na chamada “guerra fiscal”, um leilão de incentivos fiscais que no agregado solapou as bases tributárias do ICMS e distorceu as decisões de investimento, com prejuízo para a produtividade e o crescimento.
A prevalência da competição sobre a cooperação no federalismo construído a partir de 1988 limitou a capacidade do Estado de traduzir o aumento da carga tributária em serviços de melhor qualidade para a população, apesar da ampliação do acesso e da cobertura nas áreas de saúde e educação.
A falta de coordenação entre as três esferas de governo se agravou em razão do estímulo à criação de novos municípios, sem critérios e restrições adequadas – falha só corrigida com emenda constitucional aprovada em 1996. Houve uma explosão do número de governos locais nos primeiros oito anos de vida da Constituição. Aproximadamente 25% dos municípios hoje existentes surgiram depois de 1988, cerca de 90% deles com menos de 20 mil habitantes, a quase totalidade sem receita própria sequer para cobrir os gastos com a máquina pública. Ou seja, parte importante das transferências de recursos federais via Fundo de Participação dos Municípios serviu antes para financiar a criação de governos locais do que para melhorar a qualidade de vida dos habitantes daquelas cidades.
Os problemas decorrentes da dificuldade de coordenação federativa aparecem com clareza nas principais regiões metropolitanas do país, onde há grande concentração populacional, contiguidade dos territórios e infraestruturas, mas não uma autoridade pública capaz de articular as políticas de mobilidade urbana, habitação, saneamento, saúde etc. Essa situação cria mal-estar social e o que os economistas chamam, no seu jargão (que me perdoe o leitor), de “externalidades negativas”, que afetam o investimento e a produtividade.
Submetida a uma carga elevada de tributos e a um sistema complexo de tributação, a estrutura produtiva tendeu a se polarizar entre um conjunto de empresas dominantes em seus mercados, posição reforçada por barreiras de proteção que sobreviveram à abertura econômica iniciada nos anos 90, e milhares de micro e pequenas empresas que sobrevivem em condições desfavoráveis ao seu crescimento. Isso, a despeito da adoção de regimes especiais de tributação, como o Simples. Sem remover os obstáculos tributários e de acesso ao crédito para que startups possam crescer e se desenvolver, a inovação no Brasil permanecerá estruturalmente prejudicada.
Entre as forças democráticas, o primeiro a se dar conta da necessidade de reformar a Constituição foi o governo de Fernando Henrique Cardoso. O sucesso do Plano Real, ao cortar drasticamente a corrosão inflacionária das despesas públicas previstas no orçamento, pôs a nu os desequilíbrios fiscais que os críticos conservadores da Constituição anteviam. A visão sobre os problemas fundamentais para a retomada do crescimento sustentado não se limitava ao diagnóstico sobre o desequilíbrio fiscal. Incorporava igualmente a reflexão crítica sobre o modelo de industrialização por substituição de importações, cujo dinamismo se esgotara havia muito tempo. Dar um fim à era Vargas, como enunciou FHC ao início de seu mandato, significava abrir a economia e reduzir drasticamente a presença do Estado na esfera da produção de bens e serviços.
Transformado em união aduaneira, o Mercosul se constituiu em prioridade da política externa do Brasil, não por afinidade ideológica com os governos de turno nos países-membros, mas pela compreensão de que ele serviria de base para voos mais amplos na integração competitiva das empresas brasileiras na economia global, além de favorecer a consolidação de um espaço democrático no Cone Sul, depois de um ciclo de regimes autoritários na região nos trinta anos anteriores.
Igualmente importante foi o fortalecimento das políticas sociais de caráter universal, especialmente educação e saúde, de acordo com comandos inscritos na Constituição de 1988 e com o ideário social-democrata então sustentado pelo presidente e seu partido.
O ideário produziu resultados. O Sistema Único de Saúde saiu do papel. O gasto em saúde cresceu quase duas vezes acima do pib entre 1995 e 2002, resultando em forte ampliação da atenção básica, sobretudo por meio do Programa de Saúde da Família, levando à queda drástica da mortalidade materna e infantil. Na educação fundamental, a cobertura se generalizou, e os maiores avanços se verificaram nos estados e municípios mais pobres, onde cerca de 30% das crianças de 7 a 14 anos ainda se encontravam na escola.
Institucionalizaram-se também as políticas assistenciais. Foi extinta a Legião Brasileira de Assistência, símbolo de uma concepção paternalista da relação entre o Estado (personalizado na figura da primeira-dama) e a “população carente”. Implementou-se a Lei Orgânica da Assistência Social e criou-se uma rede de proteção social articulada por programas de transferência de renda pautados por critérios objetivos e, na maioria dos casos, condicionados a compromissos dos beneficiários com determinadas contrapartidas, como a matrícula de filhos na escola.
Não menos importante na redefinição do modo de relação entre o Estado e a sociedade na área social foi o programa Comunidade Solidária, ideia de uma primeira-dama que tinha horror a essa designação, a antropóloga Ruth Cardoso.
O conjunto da obra do governo FHC na área social valeu ao Brasil o prêmio Mahbub ul Haq, em homenagem a um economista paquistanês, criador do Índice de Desenvolvimento Humano. Entre 1992 e 2002, fomos um dos países que mais galgaram posições no ranking do IDH.
Digo tudo isso não para enaltecer retrospectivamente um governo do qual me orgulho de ter feito parte e que, a meu ver, deixou um legado positivo ao país, sobretudo quando avaliado à luz das dificuldades enfrentadas à época.
Digo isso porque é oportuno fazê-lo num momento em que, de um lado, o PT se agarra ao nacional-estatismo na economia e não se liberta dos seus laivos “chavo-castristas” e, de outro, com Bolsonaro na Presidência, o liberalismo econômico volta à agenda pública, mas desacompanhado da social-democracia e de mãos dadas com uma ideologia conservadora marcadamente iliberal, além de conflitante com o caráter laico do Estado e o conhecimento científico. Na sua denúncia contra o “alarmismo climático”, o populismo anticientífico não é um pormenor. Somado aos interesses dos setores atrasados do agronegócio e a uma visão ultrapassada do interesse nacional, compõe uma mistura tóxica que ameaça as chances de desenvolvimento do Brasil. Sobre essas e outras ameaças, o liberalismo instalado no governo Bolsonaro permanece silente.
O ministro Paulo Guedes gosta de embrulhar os governos de FHC e do PT no mesmo pacote para designá-los social-democratas e atacá-los como se fossem uma só e mesma coisa.
A periodização que faz da história política recente serve ao propósito de fazer de sua gestão uma espécie de marco zero do liberalismo econômico no Brasil em período democrático. Faz tábula rasa do passado, como o PT fez ao chegar ao poder. Para Lula e seu partido, nada se havia feito pelo “social” (se não desde Cabral, pelo menos desde Getúlio Vargas). Para Guedes, a modernidade do Estado e da economia terá agora seu momento inaugural. Paradoxalmente, a manobra retórica do ministro da Economia alivia a carga sobre o PT, ao deixar na penumbra o tamanho da regressão antirreformista que pouco a pouco se tornou dominante no governo petista. Leva assim, inadvertidamente, água ao moinho doido de uma extrema direita para a qual todos aqueles do centro até a esquerda do espectro político são comunistas, designação que desencadeia um discurso de ódio inaceitável numa democracia.
Se a intenção for fazer o bom debate com a direita liberal, não há por que não reconhecer que o esforço reformista do governo FHC na modernização do Estado e da economia se mostrou insuficiente e gerou efeitos colaterais negativos sobre o peso e a qualidade do sistema tributário, como já apontei. Insuficiente porque não logrou produzir um regime fiscal adaptado às tendências demográficas de longo prazo (a reforma da Previdência ficou aquém do necessário, embora a introdução do fator previdenciário tenha evitado uma deterioração mais rápida do INSS) nem mudanças mais profundas no modelo burocrático do Estado (por batalhas perdidas no Congresso ou no Judiciário em torno de emendas constitucionais que visavam a flexibilização do regime jurídico único e da estabilidade no serviço público).
Por outro lado, não foram poucas nem pequenas as reformas institucionais do aparelho do Estado, na sua relação com o setor privado e a sociedade: com o fim de monopólios estatais e o nascimento de agências setoriais independentes (sem interferência política enquanto durou o governo FHC), criaram-se capacidades públicas adequadas à regulação de serviços essenciais em uma economia de mercado; com a instituição das Organizações Sociais abriu-se o terreno para a incorporação de entidades de direito privado na gestão de equipamentos na área da saúde, da educação e da cultura, sem prejuízo do acesso livre e gratuito aos serviços prestados.
Na direção oposta, ou seja, do bom debate com a social-democracia de esquerda, tampouco se deve deixar de reconhecer a insuficiência dos avanços na ampliação da cobertura e da qualidade dos sistemas públicos de educação, saúde e assistência e de medidas para corrigir a regressividade do sistema tributário.
A pergunta cabível, para um lado e para o outro, é se teria sido possível, naquelas circunstâncias históricas, uma combinação mais virtuosa, embora não isenta de tensões e contradições, entre liberalismo e social-democracia, as duas almas que animaram as ações de governo nos mandatos de FHC. Seja qual for a resposta de cada um, não pode haver dúvida de que foram anos de disseminação e fortalecimento de uma cultura política democrática (da qual a transição para o governo Lula deu mostras inequívocas) e de respeito a valores universais, a começar pela democracia e pelos direitos humanos. Fosse só por isso, o legado dos governos de FHC já seria uma referência essencial para orientar o país na atual quadra histórica.
Considerado isoladamente, o liberalismo encarnado por Guedes e sua equipe apresenta um diagnóstico dos problemas fundamentais da economia brasileira do qual me parece difícil discordar. O ministro está correto ao apontar o desarranjo fiscal – expresso no crescimento ininterrupto da dívida pública na proporção do PIB – como o desafio imediato a ser enfrentado, bem como em assinalar que a chave do crescimento sustentado está no aumento da produtividade, que permaneceu virtualmente estagnada nos últimos trinta anos, a despeito de variações cíclicas e setoriais.
Não resta dúvida de que o estímulo à produtividade implica reduzir a intervenção discricionária e o peso do Estado sobre o setor privado. A tarefa é urgente porque o potencial de crescimento da economia brasileira dependerá cada vez mais de incrementos da produtividade, uma vez que de agora em diante já não contaremos mais com o chamado bônus demográfico e ingressaremos, com o rápido envelhecimento populacional, em fase de redução da parcela de indivíduos economicamente ativos na população total.
Nesse quadro, compreende-se ainda melhor por que a reforma da Previdência é tão importante. Não menos importante será, uma vez contido o crescimento das despesas, reduzir proporcionalmente a carga tributária. É quase inimaginável a ampliação da base de empresas capazes de se integrar competitivamente na economia global, condição necessária para a ampliação da oferta de empregos de melhor qualidade para os trabalhadores, se o Brasil se mantiver como o país de renda média com mais elevada carga tributária do planeta.
A existência desses pontos de coincidência não deve, porém, obscurecer os problemas do liberalismo de Guedes, agravados pelo conservadorismo do governo do qual faz parte.
A importância atribuída ao ajustamento do tamanho do Estado para fins de liberação do potencial de investimento do setor privado não encontra correspondência em preocupação equivalente com a construção das condições para que os benefícios de uma nova e desejável fase do desenvolvimento do Brasil sejam abrangentes e sua distribuição se dê de forma mais equitativa possível.
É forte a inclinação do novo governo a ver na regulação pública antes um desestímulo à iniciativa privada do que uma necessária proteção ao interesse da sociedade. À luz do que aconteceu em Mariana e novamente em Brumadinho, nem é necessário insistir muito nos riscos dessa preferência ideológica.
Tampouco se pode fazer vista grossa para o desafio de incorporar amplas camadas de trabalhadores a uma economia que, para crescer, terá de absorver doses bem maiores de tecnologia.
Num país em que ainda predominam trabalhadores de baixa qualificação profissional e com insuficientes anos de escolarização, salta aos olhos, na agenda de políticas do novo governo, a ausência da educação em geral – e da educação profissional em particular. O Ministério da Educação foi entregue à ala olavista, para a qual o grande desafio da educação brasileira é “combater com denodo o marxismo cultural”. Quanto à educação profissional, longe de mim defender os privilégios do Sistema S, mas ele não pode ser visto apenas ou sobretudo como fonte de custo sobre a folha de salários, como deixam entrever as declarações de Guedes a esse respeito.
Chama atenção, também, a preocupação unilateral do novo governo com a flexibilização da legislação trabalhista. Ao ampliar o espaço do negociado sobre o legislado, a reforma das relações de trabalho aprovada no governo Michel Temer representou uma atualização indispensável do marco legal vigente nessa área. Falta porém a reforma sindical, questão que não está no horizonte do novo governo, mas que deveria estar na agenda de quem acredita que a representação coletiva dos trabalhadores é parte integrante de qualquer projeto ou modelo de capitalismo democrático civilizado. Em termos práticos, é indispensável a construção de uma nova base de financiamento dos sindicatos (que não seja compulsória, mas não desestimule a contribuição voluntária) e o rompimento das amarras setoriais e territoriais que limitam a liberdade de organização sindical.
A ausência de referências à questão da equidade no dicionário do atual governo é notável porque ela nada tem de “socialista”. Ao contrário, filia-se à ideia de que, na vida coletiva, a liberdade só se realiza plenamente se houver uma busca incessante pelo nivelamento das oportunidades de desenvolvimento dos indivíduos. Isso uma economia de mercado não é capaz de atender por si mesma. Tal objetivo requer políticas públicas que, sendo financeiramente sustentáveis e periodicamente avaliadas, promovam a cooperação entre o Estado e a sociedade civil.
Em lugar da preocupação com a equidade fiscal e a melhoria da eficiência da prestação de serviços públicos essenciais à população, em particular a de menor renda, o que se vê é uma obsessão por guerras culturais e pela “despetização” da administração pública federal. Tem-se a impressão de que, à falta de uma agenda de trabalho para lidar com os problemas reais, o governo atual optou deliberadamente por fazer agitação político-ideológica em áreas em que um mínimo de espírito republicano, se não de realismo, impõe a continuidade e o aperfeiçoamento de políticas de Estado.
A educação é uma dessas áreas. Nela, desde os oito anos da gestão de Paulo Renato Souza, o mais duradouro ministro da Educação em períodos democráticos, estabeleceram-se políticas nacionais de financiamento do ensino básico, seleção e distribuição dos livros didáticos e avaliação do desempenho das escolas públicas e privadas, em moldes adequados à descentralização de receitas e competências para governos estaduais e municipais. No período mais recente, o processo de estruturação de políticas de Estado para a área de educação se desdobrou na criação da Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil e o ensino fundamental e no projeto de reforma do ensino médio, etapa da formação escolar na qual tem sido mais tímidos os avanços em termos quantitativos e qualitativos.
Junto com o processo de estruturação de políticas de Estado, fortaleceram-se organizações e movimentos da sociedade civil comprometidos com o objetivo de superar mais rapidamente os grandes desafios da educação brasileira (cobertura, qualidade e equidade na oferta do ensino básico, a começar da primeira infância) e fazer da escola um ambiente de efetiva redução das desigualdades de oportunidade determinadas pelo local de nascimento e pela família de cada indivíduo.
Ignorar ou, pior ainda, repelir as organizações e os movimentos da sociedade civil brasileira que incidem sobre a concepção, avaliação e implementação de políticas públicas é um grave equívoco se o objetivo for atender às necessidades reais dos cidadãos brasileiros, em especial os mais pobres, independentemente de suas crenças religiosas, orientação sexual ou preferência política.
O fato de que parte da sociedade civil se tenha deixado cooptar pelos governos petistas não diminui a importância da interlocução e cooperação entre o Estado brasileiro e os movimentos e organizações não governamentais dedicados a políticas públicas. Nem os imperativos inquestionáveis da moralidade pública na transferência de recursos do governo a ONGs justificam a decisão de submeter todas elas, recebam ou não dinheiro público, à supervisão do Palácio do Planalto.
O desenvolvimento diz respeito também a padrões de convivência civilizada que não derivam automaticamente do nível de renda per capita de uma sociedade. Dependem fundamentalmente da segurança com a qual o conjunto dos cidadãos pode exercer os seus direitos políticos e civis, sem o que a maior independência econômica dos indivíduos não se traduz em maior liberdade.
Para o liberalismo representado por Guedes essas preocupações são de segunda ordem. Saindo do plano conceitual para entrar na história, não creio ser ofensivo lembrar que, no Chile, convictos liberais econômicos egressos da Universidade de Chicago se aliaram a católicos ultraconservadores e militares autoritários para, sob o porrete ditatorial do general Augusto Pinochet, fazer do país uma economia de mercado, mandando às favas quaisquer escrúpulos de consciência em relação à sistemática violação de direitos humanos. Mas, de fato, o Chile se desenvolveu sob os governos de centro-esquerda da Concertación. Sem voltar ao modelo de desenvolvimento autárquico, muito menos à irresponsabilidade fiscal e monetária do governo Allende, eles consolidaram a democracia e promoveram a mais acentuada redução do nível de pobreza entre todos os países latino-americanos.
O tempo passou e todos aprendemos (tomara) o valor universal da democracia. Não pode passar despercebida, porém, a desenvoltura com a qual os Chicago oldies aderiram à candidatura e depois ao governo de um político que se projetou fazendo elogios a ditadores e ditaduras que violaram os direitos humanos, além de declarações racistas e homofóbicas.
É cedo para predizer os rumos do governo Bolsonaro. Prevalecerão as forças do liberalismo econômico e da racionalidade burocrático-militar sobre o conservadorismo militante e não raro insensato? Em que extensão o governo testará os limites constitucionais da proteção a direitos civis e políticos? Como reagirá o Supremo Tribunal Federal nesses casos? Qual papel terá o ministro Sérgio Moro, que ao aceitar a nomeação assumiu compromisso público com a proteção das minorias?
Não temos respostas para todas essas perguntas, mas uma coisa é certa. É hora de definir com mais clareza a identidade de valores e visões que poderá organizar uma alternativa política à direita liderada por Bolsonaro e à esquerda ainda hegemonizada pelo PT. É um desafio que ultrapassa as fronteiras do PSDB e pode vir a redefinir o mapa partidário.
Sergio Fausto é cientista político e superintendente da Fundação FHC
Em meados de 2015, a Folha de S.Paulo me convidou para publicar um artigo na Ilustríssima sobre o futuro do PSDB. Escrevi um texto dizendo que a crise do PT, já na época enredado na Lava Jato (tucanos vieram a enredar-se depois), abria espaço para o PSDB retomar a sua original posição de centro-esquerda no espectro político. Mais do que uma análise, expressava um desejo pessoal. Celso Rocha de Barros, em artigo publicado em seguida, rebateu afirmando que para o PSDB não havia mais volta possível às origens. O partido se tornara uma força de contenção da direita propriamente dita. Gostei do argumento do Celso. Realista, pensei: se assim for, o partido continuará a cumprir um papel importante.
Menos de quatro anos depois, difícil não concluir que ambos estávamos enganados. O PSDB nem se estendeu para a centro-esquerda nem serviu de dique eficiente para conter a maré conservadora, com fortes correntes reacionárias, que carregou Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto em outubro de 2018.
Que uma onda à direita vinha crescendo desde 2013/2014, já se sabia. Mas a força e a extensão com que rebentou na praia surpreenderam a todos: o mais desabrido dos deputados direitistas do baixo clero se elegeu presidente; candidatos desconhecidos de direita venceram as eleições para governador nos estados do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de Santa Catarina, além de Rondônia, contra todas as expectativas; um major da Polícia Militar de São Paulo derrotou Eduardo Suplicy na disputa pelo Senado; o PSL, partido até então inexpressivo, elegeu a segunda maior bancada da Câmara, 52 deputados, boa parte deles desconhecida na política – e por aí vai.
Demorei a me dar conta de que a maré conservadora poderia chegar lá. Fui mais sensível aos riscos de um projeto hegemônico do PT, que engendrou uma poderosa máquina de sucção de recursos do Estado para financiar o partido e seus aliados, cooptar a sociedade civil, apoiar governos e partidos amigos na redondeza, com ramificações na África. O mecanismo operava por meio de um conjunto de empresas escolhidas para receber o quinhão maior dos benefícios do governo e, em contrapartida, reinjetar o produto de contratos superfaturados num sistema que corrompeu as instituições do Estado e o sistema partidário como nunca antes na história desse país. Diga-se o que se disser sobre os excessos e abusos da força-tarefa da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro – e se deve dizer sem hesitação –, foram eles os principais responsáveis por impedir que a corrupção sistêmica das instituições republicanas continuasse a avançar, dando ao Brasil a chance de limitar o alcance de práticas nas quais todos os partidos, sem exceção, se lambuzaram em maior ou menor grau.
Nas manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff, passaram-me quase despercebidos sinais claros de que grupos abertamente de direita ganhavam protagonismo. Lembro-me daquele 13 de março de 2016, quando uma multidão se espremeu em vários quarteirões da avenida Paulista (1,4 milhão segundo a PM; 500 mil de acordo com o Datafolha), na maior manifestação de rua desde o movimento das Diretas Já.
Entrei na Paulista pela alameda Campinas e, na esquina, me deparei com um caminhão de som sobre o qual vociferava para uma turma de entusiastas um deputado federal que na época eu mal conhecia: Eduardo Bolsonaro. Sabia dele apenas o suficiente para decidir dar meia-volta e acessar a Paulista por outra rua transversal. Não poderia imaginar que dois anos depois ele seria reeleito deputado federal com a maior votação do país e seu pai se elegeria presidente da República.
Olhando hoje as pesquisas de opinião da época vê-se que teria sido possível perceber que os ventos sopravam à direita. O Datafolha, por exemplo, registrou uma clara predominância de pessoas que se declaravam de centro-direita ou de direita nas pesquisas sobre a opinião dos que participaram das manifestações pelo impeachment. As classes média e alta saíam à rua pela primeira vez: a vasta maioria dos participantes jamais havia participado de um ato público. Monopólio do PT até 2013, a praça pública se tornava definitivamente hostil ao partido de Lula. O mesmo acontecia no meio digital, até então território onde os blogueiros petistas, boa parte organizada e remunerada com recursos oficiais, se moviam com grande vantagem.
Ali, em meio a vastas emoções e pensamentos imperfeitos, eu tinha três certezas: Dilma produzira um desastre econômico, perdera as condições políticas para governar e havia base legal para o impeachment. Seu governo passara da “contabilidade criativa” ao cometimento de infrações graves e reiteradas contra as leis orçamentárias, com inegáveis propósitos eleitorais. Violara a Lei de Responsabilidade Fiscal, usando os bancos federais para financiar despesas do Tesouro, e desrespeitara a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2014, que a obrigava a cortar gastos, aumentar receitas ou ajustar a meta de superávit primário se a execução orçamentária revelasse ser impossível atingi-la. A impossibilidade se tornou evidente a partir do primeiro trimestre, mas o governo acelerou os gastos e adiou a redefinição da meta para depois da eleição, quando admitiu oficialmente que ela seria apenas uma minúscula fração da que havia sido prevista na LDO.
Quem melhor contou essa história foram os jornalistas Claudia Safatle, João Borges e Ribamar de Oliveira em Anatomia de um Desastre. Além de dissecar o cadáver econômico do governo Dilma, o livro desmonta o argumento de que a ex-presidente perdeu o cargo por práticas corriqueiras e triviais.
No entanto, até hoje tenho sentimentos ambivalentes em relação ao impeachment. De um lado, penso que ele evitou que continuássemos a cavar o buraco da crise em caminho de retorno aos anos 80, marcados por desordem fiscal, isolamento do mundo e inflação alta, crônica e crescente. De outro, não tenho dúvida de que contribuiu para a polarização entre a direita bolsonarista e a esquerda petista, ambas agarradas a mitos regressivos, embora não equivalentes.
Politicamente, o impeachment foi um alto negócio para o PT. O partido livrou-se do ônus da crise produzida por seu governo e ganhou terreno na guerra das narrativas com a tese do golpe parlamentar orquestrado pelas elites e da vitimização de Lula.
Como chegamos a esse ponto? É tentador responder com um breve exercício contrafatual. E se o PT não tivesse elegido o PSDB como seu principal adversário, depois de uma transição de poder civilizada e construtiva? E se Lula não tivesse tomado partido a favor de Dilma na disputa com os ministros e economistas ortodoxos que o aconselharam em 2005 a adotar um programa de ajuste fiscal de longo prazo que, à época, importaria em poucos sacrifícios de curto prazo e enormes benefícios a médio prazo? E se os então donos do poder tivessem aprendido a lição do mensalão, em lugar de dobrar a aposta que os levou ao petrolão? E se o PSDB não tivesse, nos estados, se associado às mesmas empresas beneficiadas pelo esquema federal de corrupção? E se tivesse punido exemplarmente Aécio Neves? E se este não tivesse ingressado com ações de anulação de mandato eletivo contra Dilma Rousseff logo após a reeleição dela à Presidência? E se ela não houvesse feito “o diabo” para vencer aquela eleição? E se a elite política do país tivesse compreendido o recado das manifestações de 2013 e promovido uma reforma política que ajudasse na recuperação do prestígio da representação, em vez de se atirar, no ano seguinte, à disputa da mais cara e corrupta campanha eleitoral da história brasileira?
Esse breve exercício contrafatual serve para deixar claro que chegamos ao ponto a que chegamos não por determinação dos deuses da história e sim por uma sequência de escolhas dos principais atores políticos dos últimos trinta anos. Poderia acrescentar ainda outro “e se”, para chamar atenção para a importância do acaso: o atentado contra a vida de Bolsonaro numa etapa crítica da campanha não estava escrito nas estrelas e impulsionou a vantagem que o ex-capitão tinha sobre os demais candidatos do campo antipetista. A facada cristalizou a polarização eleitoral Bolsonaro versus Haddad, logo em seguida oficializado como o candidato de Lula e do PT.
Seguirei daqui em diante, porém, outra linha de argumento, explorando correntes mais profundas que, a meu ver, levaram Bolsonaro ao Palácio do Planalto e a direita ao poder. Elas dizem respeito ao esgotamento dos acordos explícitos e implícitos, predominantes a partir de 1988, sobre a organização e gestão do Estado, da economia e da política.
Acordos não devem ser entendidos como conchavos espúrios. Utilizo o termo para me referir a certos consensos mínimos entre as elites, no plural e em sentido amplo, sobre a organização e gestão do Estado, da economia e da política, considerados suficientemente eficientes e legítimos pela maioria da sociedade.
No Brasil dos últimos trinta anos, esses acordos se construíram dentro dos moldes da Constituição de 1988 e se refizeram à medida que a integração do Brasil ao mundo, a consolidação da estabilidade econômica e a democratização da sociedade brasileira avançavam. A aprovação de diversas emendas à Constituição e de leis complementares expressa a capacidade que o país teve de adaptar o marco legal a esses processos de mudança, não raro contraditórios em suas exigências, sem se desviar do rumo democrático e do compromisso de ampliar o acesso a direitos universais, notadamente na área social.
A democratização, a globalização e a prescrição constitucional em favor da ampliação da cidadania desencadearam uma dinâmica social de expectativas crescentes, em particular depois de virada a página da hiperinflação. Entre o Plano Real e o término do primeiro governo Lula, houve uma evolução satisfatória da capacidade de resposta a essas expectativas, devido a uma sequência não linear, mas contínua, de reformas que construíram melhores instituições nas áreas fiscal, monetária, regulatória e, não menos importante, social.
As condições no momento da largada, na virada dos anos 80 para os anos 90, não prenunciavam sucesso nessa empreitada: hiperinflação, dívida externa “impagável”, isolamento econômico e financeiro em relação ao mundo, governos impopulares e o impeachment do primeiro presidente eleito depois do retorno à democracia.
Se as condições na largada pressagiavam fracasso, as ambições, por sua vez, não eram pequenas: tratava-se de “resgatar a dívida social” e de desconcentrar o poder: de Brasília para estados e municípios, do Executivo para o Congresso, do Estado para a sociedade, criando mecanismos de controle desta sobre aquele. Tudo isso num país historicamente marcado por elevados níveis de pobreza e desigualdade, além de práticas autoritárias e patrimonialistas. Como se fosse pouco, teríamos de cumprir essas ambições contando com um sistema de governo – o chamado presidencialismo de coalização, em ambiente multipartidário – sobre o qual pesava não apenas a opinião negativa então predominante na ciência política, mas também a experiência de crises vividas no período democrático anterior (1945-64).
Contra a opinião conservadora, para a qual a Constituição de 1988 tornava o país ingovernável, e depois de um início trôpego, o Brasil ingressou a partir de 1994 e da vitória sobre a hiperinflação numa trajetória positiva de enraizamento da democracia, forte redução da pobreza, alguma diminuição da desigualdade e melhoria da governabilidade.
Ocorre que, a partir de certo momento, o fosso entre as expectativas da sociedade e a capacidade de resposta dos governos se tornou muito grande, menos por problemas externos ao país e mais pela interrupção, quando não pela reversão, da sequência de reformas iniciada com o Plano Real.
A vala das três crises simultâneas (econômica, política e moral) que acometeram o país a partir de 2014 começou a ser cavada, sem que a maioria se desse conta, na esteira do ufanismo despertado pela descoberta das reservas do pré-sal. O incrementalismo reformista voltado à criação de instituições favoráveis ao desenvolvimento econômico e social sustentado foi substituído por um voluntarismo falsamente desenvolvimentista, apressado e míope, além de condicionado por um projeto de poder em que se articulavam o capitalismo de compadrio, a politização dos programas de transferência de renda e a hegemonia de um partido.
Passamos da euforia do pré-sal à depressão provocada pelo tombo da economia a partir de 2014, a mais profunda e prolongada recessão já registrada nas estatísticas oficiais do país. A frustração de expectativas que ela provocou foi proporcional à ascensão social que conheceram amplas camadas de menor renda no período anterior. A mobilidade social estava assentada em bases não muito sólidas, porque excessivamente dependentes do endividamento das famílias, estimulado pelo governo.
A “nova classe média” que emergira nos anos Lula teve seus sonhos subitamente interrompidos, sem aviso prévio. Menos atingidos pela crise foram os que continuaram pobres, com a renda dependendo em grande medida das transferências governamentais feitas, entre outros programas, pelo Bolsa Família, produto da junção e expansão de programas criados no governo Fernando Henrique Cardoso.
Mesmo antes de a economia despencar, já era possível observar a acumulação de frustrações com a oferta de serviços públicos. O caso da saúde é interessante. Dados de pesquisas Ibope-CNI mostram que a aprovação ao Sistema Único de Saúde, o SUS, começa a declinar sistemática e significativamente a partir de 2011, passando da faixa entre 40% e 50% para a faixa entre 10% e 20%. Minha hipótese é que a piora na avaliação popular do SUS se deveu a um duplo processo. De um lado, a um fenômeno bem conhecido dos cientistas sociais: uma vez atendidas expectativas básicas de uma população antes sem acesso a determinados bens e serviços, surgem no momento seguinte novas e mais exigentes expectativas dessa mesma população sobre a quantidade e qualidade do que lhe foi ofertado inicialmente. De outro, ao fato de que o SUS não produziu respostas satisfatórias aos problemas de governança e gestão do sistema à medida que ele foi se ampliando e tornando mais complexo.
Creio que essa hipótese ajuda a explicar a frustração de expectativas geradas com a expansão da oferta de outros serviços públicos essenciais, como a educação. Tampouco nesse caso houve a passagem da quantidade à qualidade, por assim dizer, ao menos não na velocidade e escala esperadas.
A frustração é ainda maior entre as camadas da população que melhoraram a sua renda e, em vista de uma educação pública insatisfatória, se veem impelidas a matricular seus filhos e filhas em escolas privadas, com forte impacto sobre o orçamento familiar. Processo análogo se dá na área da saúde: a demora no acesso a médicos especialistas e tratamentos de maior complexidade na rede pública leva famílias “remediadas” a fazer um enorme sacrifício financeiro para comprar planos privados.
Estamos falando de um contingente crescente de indivíduos que, pouco a pouco, a partir de 1994, à medida que o país encontrou um rumo positivo, ganhou a consciência de que são cidadãos portadores de direitos e, ao mesmo tempo, contribuintes. Sabedores do esforço tributário que o Estado lhes exige, se veem, no entanto, compelidos a comprar no mercado privado serviços que o Estado estaria constitucionalmente obrigado a lhes oferecer. O mal-estar com essa “contradição” veio à tona nas manifestações de 2013, num contexto em que a corrupção passava a ser percebida como um dos problemas públicos prioritários. Cresceu o sentimento de que “eles” (o Estado, a classe política, o governo) prometem, me cobram, eu pago (embora não receba), e eles ainda me roubam. Senti isso na pele algumas vezes, ao tentar explicar para motoristas de táxi e outros representantes da classe média que a “coisa não é tão simples assim”. Acabei por me calar.
Na esteira de sucessivos escândalos, avolumou-se o desprestígio das instituições políticas, em particular dos partidos e do Congresso – e dos personagens que neles habitam, os políticos profissionais. O desprestígio se transformou em rechaço depois do petrolão.
Se de um lado a sucessão de escândalos demonstrou o aprimoramento da capacidade do Estado de identificar e combater a corrupção, de outro pôs a nu o que os observadores mais atentos já sabiam: à medida que as campanhas eleitorais ficaram mais caras e competitivas, mais incestuosas se tornaram as relações entre partidos, políticos e empresas doadoras. Como o papel aceita tudo e a capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral é limitada, as prestações de contas eleitorais viraram um faz de conta.
A corrupção deixou de ser prática frequente para se tornar parte intrínseca da representação política. Não é que todos os políticos viraram corruptos, e sim que as chances eleitorais e o poder dentro dos partidos e junto aos governos passaram a depender cada vez mais do toma lá dá cá entre representantes políticos – e seus indicados para cargos públicos – e empresas interessadas no superfaturamento de contratos com o setor público. Em contraste, afrouxou-se o laço entre os partidos e os candidatos e os eleitores, em especial na representação parlamentar. A proliferação de siglas, a dificuldade de se informar sobre quem é quem nas listas de candidatos, as distorções criadas pelas coligações nas eleições para os legislativos (voto no meu partido preferido e sem saber elejo um candidato do partido coligado) – são muitos os fatores que contribuem para a má qualidade da relação entre eleitor e eleito. Nesse ecossistema floresceram espécimes como Eduardo Cunha, que se adaptam melhor à transformação da política em negócio financiado com recursos do contribuinte.
Se no caso da educação e da saúde se pode falar em frustração de expectativas, no da segurança pública o que existe é o medo da escalada da violência. Sim, há uma indústria que se alimenta do pânico em matéria de segurança pública. Mas os dados não mentem. A taxa de homicídios quase triplicou desde que começou a ser medida, em 1979. Era de 11 mortes por 100 mil habitantes em 1980; superou os 30 casos por 100 mil habitantes em 2017. Nessa área, o país regrediu inequivocamente, embora alguns estados tenham sido capazes de reduzir a taxa de homicídio.
A deterioração da segurança pública é filha da expansão do narcotráfico e de uma série de negócios ilícitos comandados por organizações criminosas e milícias igualmente criminosas, ambas com a conivência da banda podre da polícia.
Os governos do PSDB e do PT tardaram a se dar conta de que o problema exigia uma resposta coordenada e estratégica. O primeiro Plano Nacional de Segurança Pública surgiu em 2000, quando a taxa de homicídio já atingia 25 para um grupo de 100 mil habitantes (seu maior salto se deu nos anos 80). Até então o governo federal havia optado por se omitir e não meter a mão numa cumbuca que presumia ser de responsabilidade exclusiva dos estados. De lá para cá, houve melhoras pontuais, mas a tendência de deterioração da segurança pública seguiu seu curso.
Os defensores dos direitos humanos, entre os quais me incluo, demoramos a nos dar conta de que a criminalidade havia mudado de escala e de patamar, em termos organizacionais e financeiros, afetando em particular as periferias das grandes cidades. Os moradores dessas áreas se tornaram reféns das organizações criminosas – ora brutais, ora benfeitoras, mas sempre exigindo em troca a submissão absoluta – e vítimas preferenciais dos ineficazes e não raro truculentos enfrentamentos da polícia com aquelas organizações.
Nas periferias das grandes cidades (e nos morros cariocas) impera a lei do cão. No tiroteio pesado da guerra pelo controle do negócio das drogas e contra as drogas, morrem quase sempre jovens, negros e pobres. O drama é mais visível nas cidades mais populosas, mas se espalhou pelo país, em especial com a disseminação do crack. Contra esse pano de fundo, se entende por que as forças abertamente de direita voltaram ao poder, com protagonismo militar.
Se no passado a direita encontrava base importante entre os católicos, hoje ela volta ao poder com o apoio maciço dos evangélicos. Com recursos, acesso a canais de tevê e rádio e número crescente de adeptos, as igrejas neopentecostais foram aonde o povo está. Existe manipulação da fé e abuso de poder econômico, mas compreender o sucesso dessas igrejas implica reconhecer o papel que desempenham na formação de redes de solidariedade que, além de estabelecerem laços comunitários, oferecem melhores oportunidades de obtenção de emprego e de renda aos fiéis. Em muitas periferias onde a presença do Estado é precária, a única alternativa ao crime organizado é a igreja evangélica. É nesse terreno que a moral conservadora conquistou corações e mentes.
A despeito da grande presença de militares no governo Jair Bolsonaro e da aliança conservadora que em torno dele se formou, não estamos de volta a 1964 nem na iminência de regressar a um regime autoritário.
Isso não significa que não devamos estar alertas contra retrocessos – em algumas áreas já visíveis –, acarretados pelas pulsões autoritárias e retrógradas de setores do novo governo que não raro encontram apoio no gabinete presidencial.
Tão importante quanto isso, no entanto, é construir um acordo entre as forças de oposição sobre uma nova agenda de mudança, que responda ao esgotamento do ciclo aberto pela Constituição de 1988. Isso em nada enfraquece a disposição para defender o núcleo do que há de mais precioso na Constituição: os dispositivos que consagram e asseguram uma ordem política livre e democrática e oferecem instrumentos de defesa dos interesses difusos. Tampouco significa largar no meio da estrada as conquistas obtidas com a construção de sistemas públicos de educação e saúde, complementados por sistemas privados.
Não creio no pecado original, mas penso que os constituintes cometeram equívocos no desenho dos regimes fiscal, tributário e federativo, além de amarrar a administração pública à camisa de força de um modelo de estado burocrático.
O país não se tornou “ingovernável”, como profetizou o então presidente José Sarney. Nem estavam “de porre” os constituintes, como à época ironizou Mario Henrique Simonsen. O tempo, porém, se encarregou de mostrar que tais críticas, indicativas de certa antipatia pela dinâmica social e política de uma sociedade que se democratizava, não estavam destituídas de algum fundamento.
É preciso incorporar essas críticas não para retroceder à oferta centralizada, restrita e seletiva de serviços públicos de antes de 1988, mas, pelo contrário, para assegurar que a expansão desses serviços se dê de forma financeiramente sustentável. Não sendo mais possível ampliar a carga tributária para financiá-los, nada é tão importante de agora em diante quanto torná-los mais eficientes e menos vulneráveis à captura por interesses corporativos e por demandas de camadas de renda mais alta (como é frequente no caso do SUS, sobretudo por meio de decisões liminares do Judiciário).
Além de mais eficiente, a oferta desses serviços precisa se tornar mais eficaz na redução dos desequilíbrios sociais e regionais do país. Isso requer maior coordenação federativa, o que parecem não perceber os que acreditam que mais e mais descentralização seja a cura para todos os males do país.
Não há uma separação rígida entre os problemas econômicos e os sociais do Brasil. Em geral, o mundo intelectual e político se divide entre os que olham para um lado dessa equação e não olham para o outro. Sem promover a convergência desses dois olhares, o país terá dificuldade para retomar o rumo do desenvolvimento sustentado e da construção de uma sociedade mais justa.
Peço alguns parágrafos de paciência ao leitor para explicar esse ponto.
O regime fiscal e tributário desenhado pela Constituição de 1988 gerou desequilíbrios estruturais nas contas públicas, ao transferir receitas para estados e municípios, mas manter, sob a responsabilidade da União, despesas que só fariam crescer nos anos seguintes, em particular com a Previdência. A ponto de os benefícios previdenciários consumirem no presente, a despeito de reformas pontuais feitas ao longo dos anos, cerca de 50% do orçamento do governo federal.
Em proporção do PIB, o Brasil gasta com benefícios previdenciários o mesmo que o Japão, país que tem uma porcentagem pelo menos duas vezes maior de idosos. A distribuição desses benefícios, em grande medida financiada com recursos de todos os contribuintes, tem viés regressivo no Brasil, ou seja, favorece os indivíduos de maior renda que se aposentam (precocemente) pelo INSS e, em especial, os servidores públicos, membros de carreiras ligadas ao Judiciário e ao Ministério Público e ao Legislativo, que se retiram para a inatividade com aposentadoria integral com pouco mais de 50 anos, em média. Cidadã na afirmação dos direitos sociais, civis e políticos, a Constituição de 88 também consagrou, contraditoriamente, privilégios de corporações do setor público.
Por causa das crescentes obrigações de gastos, a União passou a recorrer a aumentos sucessivos de tributos não compartilhados com estados e municípios, as chamadas contribuições sociais. Com isso, a carga tributária total aumentou de 25% para 32% do pib entre 1993 e 2003, na era FHC, permanecendo ao redor desse patamar nos anos subsequentes, o que coloca o Brasil na liderança dos países que mais tributam na América Latina e além da média dos países mais desenvolvidos (acima, por exemplo, de Suíça, Coreia do Sul e Canadá). Ao rápido crescimento da carga de impostos correspondeu uma piora na qualidade do sistema tributário, com o aumento da participação dos tributos em cascata. Ao mesmo tempo, com os gastos correntes (incluindo pessoal, da ativa e aposentados) consumindo partes cada vez maiores do orçamento, os recursos para o investimento público minguaram, criando mais um freio ao aumento da produtividade e ao crescimento da economia.
Já os estados, também premidos por gastos crescentes, se lançaram a explorar as novas bases do ICM, transformado em ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços), depois de 1988. Impuseram tributação pesada sobre telecomunicações, energia, combustíveis e transportes, onerando insumos cujos custos afetam o conjunto da economia. Simultaneamente, engajaram-se na chamada “guerra fiscal”, um leilão de incentivos fiscais que no agregado solapou as bases tributárias do ICMS e distorceu as decisões de investimento, com prejuízo para a produtividade e o crescimento.
A prevalência da competição sobre a cooperação no federalismo construído a partir de 1988 limitou a capacidade do Estado de traduzir o aumento da carga tributária em serviços de melhor qualidade para a população, apesar da ampliação do acesso e da cobertura nas áreas de saúde e educação.
A falta de coordenação entre as três esferas de governo se agravou em razão do estímulo à criação de novos municípios, sem critérios e restrições adequadas – falha só corrigida com emenda constitucional aprovada em 1996. Houve uma explosão do número de governos locais nos primeiros oito anos de vida da Constituição. Aproximadamente 25% dos municípios hoje existentes surgiram depois de 1988, cerca de 90% deles com menos de 20 mil habitantes, a quase totalidade sem receita própria sequer para cobrir os gastos com a máquina pública. Ou seja, parte importante das transferências de recursos federais via Fundo de Participação dos Municípios serviu antes para financiar a criação de governos locais do que para melhorar a qualidade de vida dos habitantes daquelas cidades.
Os problemas decorrentes da dificuldade de coordenação federativa aparecem com clareza nas principais regiões metropolitanas do país, onde há grande concentração populacional, contiguidade dos territórios e infraestruturas, mas não uma autoridade pública capaz de articular as políticas de mobilidade urbana, habitação, saneamento, saúde etc. Essa situação cria mal-estar social e o que os economistas chamam, no seu jargão (que me perdoe o leitor), de “externalidades negativas”, que afetam o investimento e a produtividade.
Submetida a uma carga elevada de tributos e a um sistema complexo de tributação, a estrutura produtiva tendeu a se polarizar entre um conjunto de empresas dominantes em seus mercados, posição reforçada por barreiras de proteção que sobreviveram à abertura econômica iniciada nos anos 90, e milhares de micro e pequenas empresas que sobrevivem em condições desfavoráveis ao seu crescimento. Isso, a despeito da adoção de regimes especiais de tributação, como o Simples. Sem remover os obstáculos tributários e de acesso ao crédito para que startups possam crescer e se desenvolver, a inovação no Brasil permanecerá estruturalmente prejudicada.
Entre as forças democráticas, o primeiro a se dar conta da necessidade de reformar a Constituição foi o governo de Fernando Henrique Cardoso. O sucesso do Plano Real, ao cortar drasticamente a corrosão inflacionária das despesas públicas previstas no orçamento, pôs a nu os desequilíbrios fiscais que os críticos conservadores da Constituição anteviam. A visão sobre os problemas fundamentais para a retomada do crescimento sustentado não se limitava ao diagnóstico sobre o desequilíbrio fiscal. Incorporava igualmente a reflexão crítica sobre o modelo de industrialização por substituição de importações, cujo dinamismo se esgotara havia muito tempo. Dar um fim à era Vargas, como enunciou FHC ao início de seu mandato, significava abrir a economia e reduzir drasticamente a presença do Estado na esfera da produção de bens e serviços.
Transformado em união aduaneira, o Mercosul se constituiu em prioridade da política externa do Brasil, não por afinidade ideológica com os governos de turno nos países-membros, mas pela compreensão de que ele serviria de base para voos mais amplos na integração competitiva das empresas brasileiras na economia global, além de favorecer a consolidação de um espaço democrático no Cone Sul, depois de um ciclo de regimes autoritários na região nos trinta anos anteriores.
Igualmente importante foi o fortalecimento das políticas sociais de caráter universal, especialmente educação e saúde, de acordo com comandos inscritos na Constituição de 1988 e com o ideário social-democrata então sustentado pelo presidente e seu partido.
O ideário produziu resultados. O Sistema Único de Saúde saiu do papel. O gasto em saúde cresceu quase duas vezes acima do pib entre 1995 e 2002, resultando em forte ampliação da atenção básica, sobretudo por meio do Programa de Saúde da Família, levando à queda drástica da mortalidade materna e infantil. Na educação fundamental, a cobertura se generalizou, e os maiores avanços se verificaram nos estados e municípios mais pobres, onde cerca de 30% das crianças de 7 a 14 anos ainda se encontravam na escola.
Institucionalizaram-se também as políticas assistenciais. Foi extinta a Legião Brasileira de Assistência, símbolo de uma concepção paternalista da relação entre o Estado (personalizado na figura da primeira-dama) e a “população carente”. Implementou-se a Lei Orgânica da Assistência Social e criou-se uma rede de proteção social articulada por programas de transferência de renda pautados por critérios objetivos e, na maioria dos casos, condicionados a compromissos dos beneficiários com determinadas contrapartidas, como a matrícula de filhos na escola.
Não menos importante na redefinição do modo de relação entre o Estado e a sociedade na área social foi o programa Comunidade Solidária, ideia de uma primeira-dama que tinha horror a essa designação, a antropóloga Ruth Cardoso.
O conjunto da obra do governo FHC na área social valeu ao Brasil o prêmio Mahbub ul Haq, em homenagem a um economista paquistanês, criador do Índice de Desenvolvimento Humano. Entre 1992 e 2002, fomos um dos países que mais galgaram posições no ranking do IDH.
Digo tudo isso não para enaltecer retrospectivamente um governo do qual me orgulho de ter feito parte e que, a meu ver, deixou um legado positivo ao país, sobretudo quando avaliado à luz das dificuldades enfrentadas à época.
Digo isso porque é oportuno fazê-lo num momento em que, de um lado, o PT se agarra ao nacional-estatismo na economia e não se liberta dos seus laivos “chavo-castristas” e, de outro, com Bolsonaro na Presidência, o liberalismo econômico volta à agenda pública, mas desacompanhado da social-democracia e de mãos dadas com uma ideologia conservadora marcadamente iliberal, além de conflitante com o caráter laico do Estado e o conhecimento científico. Na sua denúncia contra o “alarmismo climático”, o populismo anticientífico não é um pormenor. Somado aos interesses dos setores atrasados do agronegócio e a uma visão ultrapassada do interesse nacional, compõe uma mistura tóxica que ameaça as chances de desenvolvimento do Brasil. Sobre essas e outras ameaças, o liberalismo instalado no governo Bolsonaro permanece silente.
O ministro Paulo Guedes gosta de embrulhar os governos de FHC e do PT no mesmo pacote para designá-los social-democratas e atacá-los como se fossem uma só e mesma coisa.
A periodização que faz da história política recente serve ao propósito de fazer de sua gestão uma espécie de marco zero do liberalismo econômico no Brasil em período democrático. Faz tábula rasa do passado, como o PT fez ao chegar ao poder. Para Lula e seu partido, nada se havia feito pelo “social” (se não desde Cabral, pelo menos desde Getúlio Vargas). Para Guedes, a modernidade do Estado e da economia terá agora seu momento inaugural. Paradoxalmente, a manobra retórica do ministro da Economia alivia a carga sobre o PT, ao deixar na penumbra o tamanho da regressão antirreformista que pouco a pouco se tornou dominante no governo petista. Leva assim, inadvertidamente, água ao moinho doido de uma extrema direita para a qual todos aqueles do centro até a esquerda do espectro político são comunistas, designação que desencadeia um discurso de ódio inaceitável numa democracia.
Se a intenção for fazer o bom debate com a direita liberal, não há por que não reconhecer que o esforço reformista do governo FHC na modernização do Estado e da economia se mostrou insuficiente e gerou efeitos colaterais negativos sobre o peso e a qualidade do sistema tributário, como já apontei. Insuficiente porque não logrou produzir um regime fiscal adaptado às tendências demográficas de longo prazo (a reforma da Previdência ficou aquém do necessário, embora a introdução do fator previdenciário tenha evitado uma deterioração mais rápida do INSS) nem mudanças mais profundas no modelo burocrático do Estado (por batalhas perdidas no Congresso ou no Judiciário em torno de emendas constitucionais que visavam a flexibilização do regime jurídico único e da estabilidade no serviço público).
Por outro lado, não foram poucas nem pequenas as reformas institucionais do aparelho do Estado, na sua relação com o setor privado e a sociedade: com o fim de monopólios estatais e o nascimento de agências setoriais independentes (sem interferência política enquanto durou o governo FHC), criaram-se capacidades públicas adequadas à regulação de serviços essenciais em uma economia de mercado; com a instituição das Organizações Sociais abriu-se o terreno para a incorporação de entidades de direito privado na gestão de equipamentos na área da saúde, da educação e da cultura, sem prejuízo do acesso livre e gratuito aos serviços prestados.
Na direção oposta, ou seja, do bom debate com a social-democracia de esquerda, tampouco se deve deixar de reconhecer a insuficiência dos avanços na ampliação da cobertura e da qualidade dos sistemas públicos de educação, saúde e assistência e de medidas para corrigir a regressividade do sistema tributário.
A pergunta cabível, para um lado e para o outro, é se teria sido possível, naquelas circunstâncias históricas, uma combinação mais virtuosa, embora não isenta de tensões e contradições, entre liberalismo e social-democracia, as duas almas que animaram as ações de governo nos mandatos de FHC. Seja qual for a resposta de cada um, não pode haver dúvida de que foram anos de disseminação e fortalecimento de uma cultura política democrática (da qual a transição para o governo Lula deu mostras inequívocas) e de respeito a valores universais, a começar pela democracia e pelos direitos humanos. Fosse só por isso, o legado dos governos de FHC já seria uma referência essencial para orientar o país na atual quadra histórica.
Considerado isoladamente, o liberalismo encarnado por Guedes e sua equipe apresenta um diagnóstico dos problemas fundamentais da economia brasileira do qual me parece difícil discordar. O ministro está correto ao apontar o desarranjo fiscal – expresso no crescimento ininterrupto da dívida pública na proporção do PIB – como o desafio imediato a ser enfrentado, bem como em assinalar que a chave do crescimento sustentado está no aumento da produtividade, que permaneceu virtualmente estagnada nos últimos trinta anos, a despeito de variações cíclicas e setoriais.
Não resta dúvida de que o estímulo à produtividade implica reduzir a intervenção discricionária e o peso do Estado sobre o setor privado. A tarefa é urgente porque o potencial de crescimento da economia brasileira dependerá cada vez mais de incrementos da produtividade, uma vez que de agora em diante já não contaremos mais com o chamado bônus demográfico e ingressaremos, com o rápido envelhecimento populacional, em fase de redução da parcela de indivíduos economicamente ativos na população total.
Nesse quadro, compreende-se ainda melhor por que a reforma da Previdência é tão importante. Não menos importante será, uma vez contido o crescimento das despesas, reduzir proporcionalmente a carga tributária. É quase inimaginável a ampliação da base de empresas capazes de se integrar competitivamente na economia global, condição necessária para a ampliação da oferta de empregos de melhor qualidade para os trabalhadores, se o Brasil se mantiver como o país de renda média com mais elevada carga tributária do planeta.
A existência desses pontos de coincidência não deve, porém, obscurecer os problemas do liberalismo de Guedes, agravados pelo conservadorismo do governo do qual faz parte.
A importância atribuída ao ajustamento do tamanho do Estado para fins de liberação do potencial de investimento do setor privado não encontra correspondência em preocupação equivalente com a construção das condições para que os benefícios de uma nova e desejável fase do desenvolvimento do Brasil sejam abrangentes e sua distribuição se dê de forma mais equitativa possível.
É forte a inclinação do novo governo a ver na regulação pública antes um desestímulo à iniciativa privada do que uma necessária proteção ao interesse da sociedade. À luz do que aconteceu em Mariana e novamente em Brumadinho, nem é necessário insistir muito nos riscos dessa preferência ideológica.
Tampouco se pode fazer vista grossa para o desafio de incorporar amplas camadas de trabalhadores a uma economia que, para crescer, terá de absorver doses bem maiores de tecnologia.
Num país em que ainda predominam trabalhadores de baixa qualificação profissional e com insuficientes anos de escolarização, salta aos olhos, na agenda de políticas do novo governo, a ausência da educação em geral – e da educação profissional em particular. O Ministério da Educação foi entregue à ala olavista, para a qual o grande desafio da educação brasileira é “combater com denodo o marxismo cultural”. Quanto à educação profissional, longe de mim defender os privilégios do Sistema S, mas ele não pode ser visto apenas ou sobretudo como fonte de custo sobre a folha de salários, como deixam entrever as declarações de Guedes a esse respeito.
Chama atenção, também, a preocupação unilateral do novo governo com a flexibilização da legislação trabalhista. Ao ampliar o espaço do negociado sobre o legislado, a reforma das relações de trabalho aprovada no governo Michel Temer representou uma atualização indispensável do marco legal vigente nessa área. Falta porém a reforma sindical, questão que não está no horizonte do novo governo, mas que deveria estar na agenda de quem acredita que a representação coletiva dos trabalhadores é parte integrante de qualquer projeto ou modelo de capitalismo democrático civilizado. Em termos práticos, é indispensável a construção de uma nova base de financiamento dos sindicatos (que não seja compulsória, mas não desestimule a contribuição voluntária) e o rompimento das amarras setoriais e territoriais que limitam a liberdade de organização sindical.
A ausência de referências à questão da equidade no dicionário do atual governo é notável porque ela nada tem de “socialista”. Ao contrário, filia-se à ideia de que, na vida coletiva, a liberdade só se realiza plenamente se houver uma busca incessante pelo nivelamento das oportunidades de desenvolvimento dos indivíduos. Isso uma economia de mercado não é capaz de atender por si mesma. Tal objetivo requer políticas públicas que, sendo financeiramente sustentáveis e periodicamente avaliadas, promovam a cooperação entre o Estado e a sociedade civil.
Em lugar da preocupação com a equidade fiscal e a melhoria da eficiência da prestação de serviços públicos essenciais à população, em particular a de menor renda, o que se vê é uma obsessão por guerras culturais e pela “despetização” da administração pública federal. Tem-se a impressão de que, à falta de uma agenda de trabalho para lidar com os problemas reais, o governo atual optou deliberadamente por fazer agitação político-ideológica em áreas em que um mínimo de espírito republicano, se não de realismo, impõe a continuidade e o aperfeiçoamento de políticas de Estado.
A educação é uma dessas áreas. Nela, desde os oito anos da gestão de Paulo Renato Souza, o mais duradouro ministro da Educação em períodos democráticos, estabeleceram-se políticas nacionais de financiamento do ensino básico, seleção e distribuição dos livros didáticos e avaliação do desempenho das escolas públicas e privadas, em moldes adequados à descentralização de receitas e competências para governos estaduais e municipais. No período mais recente, o processo de estruturação de políticas de Estado para a área de educação se desdobrou na criação da Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil e o ensino fundamental e no projeto de reforma do ensino médio, etapa da formação escolar na qual tem sido mais tímidos os avanços em termos quantitativos e qualitativos.
Junto com o processo de estruturação de políticas de Estado, fortaleceram-se organizações e movimentos da sociedade civil comprometidos com o objetivo de superar mais rapidamente os grandes desafios da educação brasileira (cobertura, qualidade e equidade na oferta do ensino básico, a começar da primeira infância) e fazer da escola um ambiente de efetiva redução das desigualdades de oportunidade determinadas pelo local de nascimento e pela família de cada indivíduo.
Ignorar ou, pior ainda, repelir as organizações e os movimentos da sociedade civil brasileira que incidem sobre a concepção, avaliação e implementação de políticas públicas é um grave equívoco se o objetivo for atender às necessidades reais dos cidadãos brasileiros, em especial os mais pobres, independentemente de suas crenças religiosas, orientação sexual ou preferência política.
O fato de que parte da sociedade civil se tenha deixado cooptar pelos governos petistas não diminui a importância da interlocução e cooperação entre o Estado brasileiro e os movimentos e organizações não governamentais dedicados a políticas públicas. Nem os imperativos inquestionáveis da moralidade pública na transferência de recursos do governo a ONGs justificam a decisão de submeter todas elas, recebam ou não dinheiro público, à supervisão do Palácio do Planalto.
O desenvolvimento diz respeito também a padrões de convivência civilizada que não derivam automaticamente do nível de renda per capita de uma sociedade. Dependem fundamentalmente da segurança com a qual o conjunto dos cidadãos pode exercer os seus direitos políticos e civis, sem o que a maior independência econômica dos indivíduos não se traduz em maior liberdade.
Para o liberalismo representado por Guedes essas preocupações são de segunda ordem. Saindo do plano conceitual para entrar na história, não creio ser ofensivo lembrar que, no Chile, convictos liberais econômicos egressos da Universidade de Chicago se aliaram a católicos ultraconservadores e militares autoritários para, sob o porrete ditatorial do general Augusto Pinochet, fazer do país uma economia de mercado, mandando às favas quaisquer escrúpulos de consciência em relação à sistemática violação de direitos humanos. Mas, de fato, o Chile se desenvolveu sob os governos de centro-esquerda da Concertación. Sem voltar ao modelo de desenvolvimento autárquico, muito menos à irresponsabilidade fiscal e monetária do governo Allende, eles consolidaram a democracia e promoveram a mais acentuada redução do nível de pobreza entre todos os países latino-americanos.
O tempo passou e todos aprendemos (tomara) o valor universal da democracia. Não pode passar despercebida, porém, a desenvoltura com a qual os Chicago oldies aderiram à candidatura e depois ao governo de um político que se projetou fazendo elogios a ditadores e ditaduras que violaram os direitos humanos, além de declarações racistas e homofóbicas.
É cedo para predizer os rumos do governo Bolsonaro. Prevalecerão as forças do liberalismo econômico e da racionalidade burocrático-militar sobre o conservadorismo militante e não raro insensato? Em que extensão o governo testará os limites constitucionais da proteção a direitos civis e políticos? Como reagirá o Supremo Tribunal Federal nesses casos? Qual papel terá o ministro Sérgio Moro, que ao aceitar a nomeação assumiu compromisso público com a proteção das minorias?
Não temos respostas para todas essas perguntas, mas uma coisa é certa. É hora de definir com mais clareza a identidade de valores e visões que poderá organizar uma alternativa política à direita liderada por Bolsonaro e à esquerda ainda hegemonizada pelo PT. É um desafio que ultrapassa as fronteiras do PSDB e pode vir a redefinir o mapa partidário.
Sergio Fausto é cientista político e superintendente da Fundação FHC
ESPETÁCULO DO BRASIL CORRUPTO
Fernando Canzian,
Folha de S.Paulo
Confissões de
Sérgio Cabral são espetáculo do Brasil corrupto
Um dos episódios mais
sublimes da psicopatia nacional dedicada à corrupção tem sido protagonizado
pelo ex-governador Sérgio Cabraldiante
de autoridades da Lava Jato no
Rio.
A pedido de seus advogados, Cabral foi ao Ministério Público
Federal e ao juiz Marcelo Bretas nesta semana para
confessar crimes.
Mostrando-se bem disposto, finalmente reconheceu
ter sido beneficiado pela corrupção. “Era propina direta e indireta. Muito
dinheiro”, disse. Ao se abrir, também entregou ex-colaboradores, inclusive o
seu então vice, Pezão, que está preso.
Cabral não é um Raskólnikov de Fiódor Dostoiévski
(1821-1881), que em "Crime e Castigo” confessa espontaneamente roubo e
assassinato ao se ver atormentado por arrependimento e angústia.
O ex-governador negou por mais de dois anos ter recebido
propina e dizia que o dinheiro para luxos como vasos sanitários hi-tec e peças
de kobe beef era sobra de caixa dois.
É possível que após nova condenação em dezembro e muita
reflexão nas horas vagas o ex-governador finalmente se veja como um homem
acabado, execrado nacionalmente e condenado a 197 anos e 11 meses de prisão.
Mas depois de confessar seus crimes, diz o que todos buscam
nessas horas: “Hoje sou um homem muito mais aliviado”.
A “cura pela fala (ou palavra)” que parece ter acometido
Cabral é a base do método psicanalítico descoberto em Viena a partir de 1880 e
que ajudou a retirar dos confessionários da igreja um certo monopólio nessa
área.
Foi no chamado Caso Anna O. que o médico Josef Breuer
(1842-1925) usou a expressão pela primeira vez a partir de comentários de sua
paciente Bertha Pappenheim. Nas consultas, ela comparava a uma “limpeza de
chaminé” as associações livres que fazia e que acabavam por aliviar seus
sintomas.
O método de falar, sobretudo a verdade, tem aplicações que
vão das DRs dos namorados aos grupos de AA.
Mas parece muito otimismo acreditar que Cabral esteja nesse
caminho, jamais trilhado no Brasil por gente do ramo e desprovida de superego
como Paulo Maluf e Eduardo Cunha.
É notável que as confissões de alívio de Cabral tenham sido
feitas ao mesmo juiz Marcelo Bretas que já condenou sua mulher, Adriana
Ancelmo, na primeira instância. Segundo Cabral, que agora
diz não esconder nada, Adriana ignorava seus esquemas e foi enganada
o tempo todo por ele.
Dá até pena imaginar o sofrimento psíquico do ex-governador
nessa íntima convivência com a mulher, que usufruía de tudo sem que ele lhe
dissesse nada.
Fernando Canzian
Jornalista, autor de "Desastre Global - Um Ano na Pior
Crise desde 1929". Vencedor de quatro prêmios Esso.
O RIDÍCULO DO HINO E A ESCOLA SEM SENTIDO
Na segunda-feira a repórter Renata Cafardo, do Estadão,
revelou que o MEC enviara às escolas do Brasil um par de instruções
estapafúrdias e patriofrênicas. Por e-mail o órgão máximo da educação nacional
pedira que as crianças fossem perfiladas para cantar o Hino Nacional e as
cenas, gravadas em vídeo, fossem enviadas a Brasília para deleite dos ocupantes
da Esplanada.
Não foi só. O MEC também solicitou aos dirigentes das
escolas que lessem para os alunos uma mensagem ufano-pedagógica de autoria do
titular da pasta, Ricardo Vélez Rodríguez: “Brasileiros! Vamos saudar o Brasil
dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser
desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos,
que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”.
Como ainda resta um pingo de consciência – e de senso de
ridículo – na sociedade, a reação foi instantânea. Educadores e advogados
protestaram, alegando que crianças não podem ser filmadas assim, de qualquer
jeito, sem autorização dos pais. Outros repudiaram a transformação de um slogan
de campanha eleitoral em chamamento de governo para as escolas.
A grita foi tão determinada e irrefutável que o ministro
recuou de pronto. Tem sido assim, aliás, nesse governo de idas e vindas. O
estilo da administração de turno é o “fez que foi e acabou não fondo”. A toda
hora uma autoridade dispara uma bravata e depois recua. Esta semana mesmo o
presidente da República voltou atrás e desistiu de aumentar o sigilo em
documentos da administração federal – quer acalmar os parlamentares. Quanto ao
ministro da Educação, ele é um virtuose em matéria de “fez que foi e acabou não
fondo”. Há poucas semanas, numa entrevista escalafobética, pronunciou
impropérios sobre o cantor e compositor Cazuza e logo teve de se desculpar. Um
pouco antes, já tinha voltado atrás em mudanças desastradas nas regras de compra
dos livros didáticos. Agora, adotou o mesmo procedimento. Reconheceu o erro.
Disse que não quer filmar a meninada sem que os pais autorizem e admitiu que
esse negócio de usar símbolos partidários como insígnias de políticas públicas
não fica bem.
E assim caminha este país, sem caminhar para lugar algum.
Mas não é esse o maior dos nossos problemas. Sem dúvida, as reviravoltas
desastradas num governo chegado a pirotecnias patrioteiras tumultuam
desnecessariamente o quadro. São ruins. Atrapalham. Mas a situação é mais
complicada ainda. O nosso maior problema, como fica patente em mais essa gafe
do MEC, não está nas trapalhadas cometidas por autoridades civis em posição de
sentido. O maior problema é que a administração federal de turno tem, sim, um
modelo obscurantista com o qual sonha em amordaçar a sociedade brasileira e só
não o leva adiante porque a sociedade não se deixou vergar. Não fossem os
protestos – justos e legítimos –, a esta altura as crianças brasileiras, como
nos idos da ditadura militar, estariam aí ao sabor de delírios autoritários com
ponto de exclamação.
Se temos algum juízo, deveríamos olhar com muito mais
atenção para esse modelo obscurantista acalentado nas fileiras do bolsonarismo.
Como arma publicitária de campanha, o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima
de todos” já era um pesadelo. Para começar, a primeira parte, “Brasil acima de
tudo”, é um plágio infeliz de um mote abraçado pelo nazismo nos anos 1930,
“Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles). Esse mote, por sua vez, veio
de um verso de uma canção nacionalista do século 19. Logo, a fantasia que o
bolsonarismo resolveu papagaiar, além de não ser original, além de não ser
sequer brasileira, é velha de quase 200 anos.
Um passado mítico, já sabemos, funciona como motor para os discursos
tendentes ao fascismo. No nosso caso, porém, estamos tratando de passados
míticos que são de segunda mão e, na melhor das hipóteses, são paródias de mau
gosto.
Se o MEC tivesse um mínimo de compromisso com a educação e
com a modernidade (a fantasia de “Alemanha acima de tudo” é pré-moderna e
antimoderna), pediria aos alunos redações críticas sobre o mote nazista.
Pediria aos alunos que pensassem. Mas não, o MEC prefere ver as crianças
perfiladas para ouvir o slogan eleitoral transformado em estética estatal.
Outra vez, não por acaso, se manifesta aí mais um traço distintivo dos regimes
hierarquizados, centralizadores, disciplinadores, opressivos: a estetização do
Estado.
Agora nos ocupemos da segunda parte: “Deus acima de todos”.
Pelo que me lembro, nas missas católicas os fiéis repetem outro tipo de
enunciado: “Deus está no meio de nós”. Esse Deus autocrático, vertical,
impositivo, francamente, não dá para saber bem de onde os bolsonaristas foram
tirar. Não adianta dizer que é o Deus do Velho Testamento, porque aquele Deus
se basta, ele não está na disputa para ficar “acima de todos”.
Em termos filosóficos, ou racionais, é difícil pensar em
algo pior que “Brasil acima de tudo” ou “Deus acima de todos”. Só o que pode
ser pior que cada um dos dois imperativos são os dois imperativos postos
juntos. Aí, qualquer lógica desmorona. Vamos lá.
Se o Brasil está mesmo acima de tudo, teria de estar também
acima de Deus. E se Deus está acima de todos, ora, teria de estar acima do
Brasil. Imaginemos a cabeça de uma criança, empertigada na frente da Bandeira,
tentando compreender os dois mandamentos fundidos num só. Essa criança,
pobrezinha, vai concluir que Deus está fora de tudo (ou o Brasil estaria acima
de Deus) e que o Brasil está fora de todos (ou Deus estaria acima do Brasil).
Portanto, “tudo” não é “tudo”, assim como “todos” não significa exatamente
“todos”. Alguém chame o Tim Maia, o filósofo que dizia: “Tudo é tudo e nada é
nada”. Mais do que uma escola sem partido, o que o MEC quer para o Brasil é uma
escola sem sentido. A sanha autoritária precisa de uma escola que não pense.
*JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP
MENOS ARROUBOS, MAIS DIPLOMACIA
José Serra, O Estado de S.Paulo
A deterioração da situação política na Venezuela, com todos
os seus corolários – recrudescimento da repressão pelo ditador Nicolás Maduro,
emigração em massa e conflitos entre Forças Armadas e civis venezuelanos, a um
passo da nossa fronteira –, arrasta o Brasil (e a Colômbia) para focos de
tensão crescente. Como já escrevi neste espaço, o conflito interno na Venezuela
é uma circunstância que o Brasil não escolheu, mas que, cada vez mais, nos
impõe dilemas especialmente difíceis, que devem ser tratados com muita cautela
e pragmatismo.
Os desdobramentos mais recentes – como a tentativa de
atravessar a fronteira no Brasil e na Colômbia com caminhões de ajuda
humanitária – deslocam perigosamente nosso papel no conflito da esfera
tipicamente diplomática para a antessala de uma ação propriamente militar. Na
semana passada o governo de Maduro posicionou tanques próximo à nossa
fronteira, dando sequência a um imbróglio preocupante.
Quando se sai do campo da diplomacia e se entra, ainda que
tenuemente, na esfera bélica, as opções de recuo diminuem e a tendência a uma
escalada temerária não pode nunca ser descartada. Em face da reação das Forças
Armadas venezuelanas, ainda leais a Maduro, a entrada da ajuda humanitária
fracassou. Esperava-se que a possibilidade dessa ajuda e o previsível rechaço
de Maduro abrissem uma fenda na lealdade militar ao chefe venezuelano. Mas
houve relativamente poucas deserções, a grande maioria de patentes baixas e
médias. Os desertores cruzaram a fronteira com a Colômbia e alguns foram
resgatados pela Polícia Federal brasileira. A manobra não deu certo – pareceu
longe de ameaçar a estabilidade dos vínculos entre o governo e o Exército.
O que se poderia fazer a partir daí? Aumentar a pressão
político-diplomática e, usando aparato bélico, impor a passagem de comboios com
alimentos e remédios? Ou desistir da operação até que um virtual abalo do apoio
dos militares a Maduro levasse à derrocada do seu regime? Ao que tudo indica,
ficaremos na segunda opção. O que não deixará de ser um prudente recuo,
bem-vindo, diga-se. Mas não melhor do que se estivéssemos cuidadosamente
explorando outras opções de ação.
A lição que fica do episódio é que blefes não costumam
produzir bons resultados nas relações internacionais, ainda mais se o
adversário encurralado tem tudo a perder se não resistir. Por mais que Maduro e
o chavismo tenham levado seu país à ruína, a sociedade venezuelana está ainda
dividida. Essa divisão tem raízes históricas, especialmente pelo desprezo das
elites, no passado, pela situação da grande maioria marginalizada. O apelo
ideológico do “socialismo” chavista ainda sensibiliza boa parte dos
venezuelanos. Embora essa parcela seja cada vez mais minoritária, ela permanece
forte o suficiente para alimentar a instabilidade política mesmo depois de uma
eventual queda de Maduro.
Outro fator complicador – e uma das grandes dificuldades
para o desfecho pacífico de tiranias como a venezuelana – é o crescente
envolvimento de autoridades, civis e militares, nas ações do regime ameaçado.
Para elas, resistir à mudança é evitar a punição futura. Essa circunstância
mostra quão essencial passa a ser a criação de salvaguardas e anistias para os
possíveis derrotados, a fim de que o custo da transição não seja uma guerra
civil aberta.
Nesse aspecto, o “presidente” interino Juan Guaidó – assim
reconhecido por boa parte da comunidade internacional, incluindo o governo
brasileiro – tem tido comportamento exemplar, exercendo uma inteligente
política de atração de possíveis dissidentes do regime com ofertas de
reconciliação.
Em vista dos enormes riscos que envolvem o Brasil, parece
óbvio que qualquer atitude que possa desencadear uma escalada bélica deve ser
rejeitada. Isso não significa, evidentemente, adotar uma postura passiva ou
condescendente com Maduro e seu grupo. Há a possibilidade, por exemplo, de
aumentar pressões externas mediante a suspensão de linhas de comércio com a
Venezuela. Esse fechamento teria efeitos econômico-sociais adversos no país
vizinho, mas seria uma opção menos dolorosa do que a de expor as pessoas a um
conflito bélico em que o Brasil se envolvesse e cujos desdobramentos negativos
seriam imponderáveis.
Tenhamos claro que a própria deterioração econômico-social
da Venezuela levará, mais dia, menos dia, à ruptura dos militares com o regime
de Maduro A hiperinflação abateu-se definitivamente sobre o país e a produção
de petróleo, a única atividade econômica capaz de gerar divisas externas, está
entrando em colapso. A inflação em fins de 2018 atingiu incríveis 80.000% ao
ano, segundo estimativa do professor Steve Hanke, da Johns Hopkins University.
Nos últimos cinco anos, a produção de petróleo na Venezuela caiu pela metade –
de 3 milhões de barris diários para apenas 1,5 milhão! E cairá ainda mais, à
medida que as sanções econômicas já impostas tornem mais precária a manutenção
da infraestrutura produtiva. O PIB venezuelano vem declinando a taxas inéditas
– uma verdadeira hecatombe econômica. Desde 2013 caiu 70%, medido em dólares.
Somente em 2018 a queda foi de 18%!
Não há saída feliz possível para Maduro. E não deixa de ser
exasperante assistir ao sofrimento dos venezuelanos prolongar-se no tempo.
Infelizmente, nem tudo é possível em política, menos ainda em política
internacional, em que o terreno é sempre mais movediço e imprevisível.
A declaração do Grupo de Lima – que reuniu nesta semana
representantes de 13 Estados latino-americanos e o Canadá – foi correta. O tom
do documento manteve a pressão diplomática, mas claramente afastou as
veleidades bélicas que alguns setores parecem cultivar. O Brasil não tem
história nem poderio para se tornar parte de uma polícia global. Devemos tomar
posição, sim, mas sempre nos limites da diplomacia. Nosso histórico de
autocontenção é um grande ativo, uma sábia tradição que não devemos abandonar.
José Serra é Senador (PSDB-SP), foi ministro das Relações Exteriores
DISSECANDO A DITADURA
36 livros sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar
brasileira
Prestes a completar 55 anos, o golpe de militar de 1964 no
Brasil está em evidência novamente no País depois que o presidente Jair
Bolsonaro ordenou que os militares comemorassem
a data esta semana. Além de causar uma forte reação da sociedade civil
(órgãos como a OAB
já repudiaram a decisão), o comando causou mal-estar mesmo entre os militares.
A seguir, selecionamos 36 livros, de ficção e não-ficção,
sobre a ditadura
militar brasileira (1964-1985) ou que têm o período como pano de
fundo.
BIOGRAFIAS
Ernesto Geisel
Autores: Maria Celina D'Araújo e Celso Castro
Editora: Fundação Getúlio Vargas (1997, 494 págs., R$ 29
usado)
Resultado de muitas horas de entrevista ao CPDOC, Geisel
narra sua história. O livro fala do projeto nacional dos governantes
brasileiros, civis e militares, desde a década de 1930. É nas páginas deste
livro que está registrado quando Geisel chamou Jair Bolsonaro de "mau
militar", em 1993.
Castello — A Marcha para a Ditadura
Autor: Lira Neto
Editora: Contexto (2004, 432 págs., a partir de R$ 75, fora
de catálogo)
Biógrafo consagrado com quatro prêmios Jabuti, Lira Neto
explora aqui a vida do primeiro presidente brasileiro da ditadura
militar, Humberto de Alencar Castello Branco.
Marighella
Autor: Mário Magalhães
Editora: Companhia das Letras (2012, 784 págs., R$ 79,90)
Biografia do guerrilheiro Carlos Marighella (1911-69),
militante comunista, deputado constituinte e fundador do maior grupo armado de
oposição à ditadura militar brasileira, a Ação Libertadora Nacional.
NÃO FICÇÃO
A Casa da Vovó
Autor: Marcelo Godoy
Editora: Alameda (2014, 612 págs., R$96)
O jornalista do Estado Marcelo Godoy ouviu alguns dos mais
ativos agentes da repressão da ditadura militar para contar a história do
DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de
Defesa Interna) de São Paulo, o centro de "sequestro, tortura e
morte" do regime.
1964 — O Golpe
Autor: Flávio Tavares
Editora: L&PM (2014, 320 págs., R$ 49,90)
Flávio Tavares narra o que testemunhou do movimento militar
e da derrubada de João Goulart quando era repórter de política em Brasília.
Ditadura: O Que Resta da Transição
Autor: Milton Pinheiro (org.)
Editora: Boitempo (2014, 350 págs., R$39)
Com organização de Milton Pinheiro, livro tem 12 ensaios
sobre temas variados relacionados aos 50 anos do Golpe de 64, com contribuições
de Anita Prestes, Marco Aurélio Santana, Adriano Codato, Décio Saes, João
Quartim de Moraes, Lincoln Secco, entre outros.
Almanaque 1964
Autora: Ana Maria Bahiana
Editora: Companhia das Letras (2014, 256 págs., R$62,90)
A obra conta, com textos e muitas fotos, elementos típicos
de almanaques, contar o que aconteceu no ano em que o Brasil iniciava a vida
sob ditadura militar.
Livros Contra a Ditadura: Editoras de Oposição no Brasil,
1974-1984
Autor: Flamarion Maués
Editora: Publisher (2013, 288 págs., R$ 30)
Pesquisador apresenta um quadro geral do surgimento e da
atuação das editoras de oposição no Brasil nesse período, analisando o papel
político e cultural que tiveram. Além disso, analisa o caso de três pequenas
editoras de oposição: a Ciências Humanas, a Kairós e a Brasil Debates.
1964: O golpe que Derrubou um Presidente e Instituiu a
Ditadura no Brasil
Autores: Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes
Editora: Civilização Brasileira (2014, 420 págs., R$ 40)
Historiadores e professores da Universidade Federal
Brasileira, os autores traçam um panorama do regime civil-militar, destacam
personagens e momentos que marcaram o período, reconstituem a história do
governo Goulart e mostram que o golpe não era o único desfecho para o País.
Ditadura e Democracia no Brasil: Do Golpe de 1964 à
Constituição de 1988
Autor: Daniel Aarão Reis
Editor: Zahar (2014, 196 págs., R$ 44,90; R$ 29,90)
Historiador e professor da Universidade Federal Fluminense
mostra como a ditadura se instalou, evoluiu, alcançou o apogeu e chegou ao fim.
A obra, uma versão ampliada e atualizada de Ditadura Militar, Esquerdas e
Sociedades, publicada em 2000, trata, também, da relação entre a sociedade
civil e militares.
A Ditadura Militar e Os Golpes Dentro do Golpe –
1964-1969
Autor: Carlos Chagas
Editora: Record (2015, 490 págs., R$ 60)
Jornalista se valeu das notícias publicadas pela imprensa
para resgatar as histórias de bastidores do período do golpe militar.
A Ditadura que Mudou o Brasil – 50 Anos do Golpe de 64
Organização: Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo
Patto Sá Motta
Editora: Zahar (2014, 196 págs., R$ 44,90; R$ 29,90 o
e-book)
Especialistas avaliam o processo acelerado de modernização
imposto pela ditadura militar. Em discussão, urbanização, industrialização,
costumes, instituições políticas e cultura.
1964: História do Regime Militar Brasileiro
Autor: Marcos Napolitano
Editora: Contexto (2014, 368 págs., R$ 49,90; R$ 39,90 o
e-book)
Historiador da USP tenta responder questões como ‘A ditadura
durou muito graças ao apoio da sociedade civil, anestesiada pelo ‘milagre’
econômico?’ e ‘Foi Geisel, com a ajuda de Golbery, o pai da abertura, ou foi a
sociedade quem derrubou o regime militar?’, entre outras.
1964 – Golpe ou Contragolpe?
Autor: Hélio Silva
Editora: L&PM (2014, 360 págs, R$ 48,90; R$ 34,90 o
e-book)
Autor de Ciclo de Vargas, que conta em 16 volumes a história
republicana brasileira, da proclamação ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954,
aborda, nesta obra, o golpe militar. O autor recupera a preparação, a eclosão e
os primeiros movimentos da ditadura.
Coleção Elio Gaspari
Série escrita pelo jornalista Elio Gaspari ganha nova edição
revista e atualizada. Os e-books trazem fac-símiles de documentos pesquisados e
citados, fotos, vídeos e áudios. Os volumes são: A Ditadura Envergonhada (464
págs., R$ 39,90; R$ 14,90 o e-book), A Ditadura Escancarada (560 págs., R$
39,90; R$ 14,90 o e-book), A Ditadura Derrotada (580 págs., R$ 39,90; R$ 14,90
o e-book) e A Ditadura Encurralada (560 págs., R$ 39,90; R$ 14,90 o e-book).
O Passado que Não Passa – As Sombras das Ditaduras na
Europa do Sul e na América Latina
Org.: António Costa Pinto e Francisco Carlos Palomanes
Martinho
Editora: Civilização Brasileira (2013, 336 págs., R$ 40)
A experiência brasileira com os regimes ditatoriais é
contada em dois dos dez artigos deste livro. Daniel Aarão Reis Filho, professor
da Universidade Federal Fluminense, assina o texto O Governo Lula e a
Construção da Memória do Regime Civil-Militar. Já Alexandra Barahona de Brito,
professora do Instituto Universitário de Lisboa, é autora do artigo “Justiça
Transicional” em Câmara Lenta: O Caso Brasil, sobre o processo de redemocratização.
O Verão do Golpe
Autor: Roberto Sander
Editora: Maquinária (2013, 272 págs., R$ 39,90)
Jornalista recupera o cenário social e cultural da temporada
que antecedeu a derrubada do presidente João Goulart.
O Golpe de 1964 e o Regime Militar
Organização: João Roberto Martins Filho
Editora: EdUFSCar (2014, 223 págs., R$ 29)
Publicada originalmente em 2006, obra com artigos escritos
por acadêmicos volta às livrarias no momento em que se completam 50 anos do
golpe militar.
Ditadura à Brasileira
Autor: Marco Antônio Villa
Editora: Leya (2014, 432 págs., R$ 49,90; R$ 33,90 o e-book)
Historiador apresenta as peculiaridades do regime e os
aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais dos cinco governos
militares e defende que não é possível chamar o período de 1964-1968, até o
AI-5, de ditadura já que havia movimentação político-cultural. O autor
pretende, assim, desmistificar a ditadura brasileira.
Não Passarás o Jordão – Tortura, Terror e Morte na
Ditadura Militar Brasileira
Autor: Luiz Fernando Emediato
Editora: Geração (2013, 216 págs., R$ 34; R$ 19,90 o e-book)
Publicada em 1977, obra mistura personagens reais e
fictícios para contar sobre o clima da época da ditadura.
O Espaço da Dor: O Regime de 64 no Romance Brasileiro
Autora: Regina Dalcastagné
Editora: UNB (1996, 155 págs., R$22)
A autora discute os romances brasileiros que tiveram a
ditadura militar como pano de fundo.
Ainda Estou Aqui
Autor: Marcelo Rubens Paiva
Editora: Alfaguara (2015, 296 págs., R$44,90, R$27,90 o
digital)
Por meio da história de sua mãe, Eunice Paiva, o jornalista
e escritor Marcelo Rubens Paiva tenta entender o que de fato ocorreu com seu
pai, o deputado Rubens Paiva, sequestrado e morto pela ditadura em 1971.
FICÇÃO
Zero
Autor: Ignácio de Loyola Brandão
Editora: Global (1975, editora Brasília)
Proibido pela ditadura militar, o romance que consagrou o
nome do escritor, recém eleito para a Academia Brasileira de Letras, trata de
repressão e desejos.
A Festa
Autor: Ivan Ângelo
Editora: (1976, esgotado)
Vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura, o romance conta a
história do nordestino Marcionílio, migrante que começa escorraçado numa
estação de trem numa capital brasileira com outros companheiros, durante a
época da ditadura.
Tropical Sol da Liberdade
Autora: Ana Maria Machado
Editora: Alfaguara (1988, 376 págs., R$59,90)
Maria Helena, a protagonista do livro, é uma jornalista
que, após um longo período de exílio em função da ditadura militar no Brasil,
volta para recuperar sua vida anterior e reencontrar a família.
Amores Exilados
Autor: Godofredo de Oliveira Neto
Editora: Record (1997, 240 págs., R$52,90)
Dois brasileiros de regiões diferentes, forçados a deixar o
país nos anos de chumbo do governo militar, convivem com a francesa
Muriel, ela própria espécie de autoexilada de seu passado em seu país.
Não Falei
Autora: Beatriz Bracher
Editora: 34 (2004, 152 págs., R$26 o digital)
Quarenta anos depois, um professor, que tinha 24 em
1964, se vê às voltas com a visita de um irmão, o convite para uma
entrevista e a necessidade de organizar seus papéis.
Azul Corvo
Autora: Adriana Lisboa
Editora: Alfaguara (2010, 204 págs., R$29,90 o digital)
Após a morte da mãe, Evangelina, uma menina de apenas treze
anos, troca Copacabana pelo Colorado, nos Estados Unidos, onde vai morar com
seu padrasto Fernando. Aos poucos, por meio dessa nova amizade, ela
descobre detalhes obscuros do passado recente do Brasil. Ex-guerrilheiro no
Araguaia, ele viveu na pele a violência da ditadura.
K. – Relato de Uma Busca
Autor: Bernardo Kucinski
Editora: Companhia das Letras (2012, 176 págs., R$
42,90)
Romance, um dos raros da literatura brasileira situado na
ditadura militar narra a busca de um pai pela filha desparecida. Lançado pela
independente Expressão Popular em 2011, obra que ganhou menção honrosa no
Prêmio Portugal Telecom de 2012 passa para o católogo da Cosac Naify.
Você Vai Voltar para Mim
Autor: Bernardo Kucinski
Editora: Cosac Naify (2015, 192 págs., R$ 29,90)
Depois de publicar K. seu romance de estreia, jornalista
lança volume de contos. As histórias dão voz a pessoas que sofreram durante o
período de repressão militar, detalha métodos de tortura, retrata a reação das
gerações seguintes.
A Resistência
Autor: Julián Fuks
Editora: Companhia das Letras (2015,
Vencedor do Prêmio Jabuti, o livro conta a história de uma
família argentina que foge da ditadura de seu país em 1976 e vai buscar exílio
no Brasil.
Cabo de Guerra
Autora: Ivone Benedetti
Editora: Boitempo (2015, 304 págs., R$54, R$29 o digital)
Finalista do Prêmio São Paulo, Benedetti conta aqui, em
chave de ficção, a história dos delatores da militância de esquerda durante o
período da ditadura militar.
Qualquer Maneira de Amar: Um Romance à Sombra da Ditadura
Autor: Marcus Veras
Editora: Ponteio (2014, 237 págs., R$ 49)
O romance conta a história de Mauro, advogado aposentado,
sessentão e retirado nas cercanias de Petrópolis, que faz um balanço de sua
vida. A obra procura dar um lugar na história para aqueles que não foram
guerrilheiros heroicos, mas simpatizantes da militância e que também sofreram
as consequências da ditadura.
Que Mistérios Tem Clarice?
Autor: Sérgio Abranches
Editora: Biblioteca Azul (2014, 242 págs., R$49,90)
Romance é a história de uma mulher que decide contar aos
filhos uma parte de sua história nunca revelada: sua participação na luta
armada.
Rio-Paris-Rio
Autora: Luciana Hidalgo
Editora: Rocco (2016, 160 págs., R$24,50)
A obra retrata a viagem de ida-volta de um grupo de jovens
entre Rio e Paris durante a ditadura. Trata de questões como o exílio e o ser
estrangeiro, política e afeto, solidão e juventude.
A Noite da Espera
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras (2017, 240 págs., R$39,90)
Nos anos 1960, Martim, um jovem paulista, muda-se para
Brasília com o pai após a separação traumática deste e sua mãe. Na figura
materna ausente se reflete a face sombria da juventude, marcada pela violência
dos anos de chumbo.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019
CIRCULAR DO MEC É TÍPICA DE DITADURAS
Bernardo Mello Franco, O GLOBO
O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, orientou os
diretores de escolas a filmarem os alunos perfilados diante da bandeira e ao
som do hino nacional. O comunicado é típico de ditaduras, e não só pelo
ufanismo de almanaque.
Vélez enviou uma carta a ser lida para alunos, professores e
funcionários no primeiro dia do ano letivo. O texto começa com uma exclamação
patriótica (“Brasileiros!”) e termina com o slogan de campanha do presidente
Jair Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Entre uma coisa e
outra, exalta a chegada do “Brasil dos novos tempos”, numa aparente alusão à
posse do chefe.
A circular insta os diretores a filmarem as crianças e
enviarem os vídeos para o gabinete do ministro. Só faltou dizer que as escolas
que descumprirem a ordem ficarão de recuperação — ou receberão menos verbas
federais no ano que vem.
Prócer da ala olavista do governo, Vélez já havia deixado
claro que confunde as tarefas de Estado com a militância ideológica. Em vez de
mirar as deficiências do ensino básico, tem desperdiçado tempo com discursos
contra a suposta influência do “globalismo” e do “marxismo cultural” sobre os
professores.
O ministro é um crítico da “doutrinação”, mas sua circular
representa exatamente o que ele diz combater: a tentativa de despejar conteúdo
chapa-branca pela goela dos alunos. Não chega a ser uma ideia original.
Depois do golpe de 1964, que Vélez já definiu como uma data
“para comemorar”, os militares estimularam o culto à bandeira e a pregação
ufanista nas escolas. Chegaram a impor a disciplina Educação Moral e Cívica,
outra patriotada que o ministro quer ressuscitar.
Antes disso, o Estado Novo obrigou os estudantes a
reverenciarem o chefe do governo e os símbolos nacionais. Na cartilha “Getúlio
Vargas, o amigo das crianças”, editada pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda, o presidente dizia que “é preciso plasmar na cera virgem que é a
alma da criança a alma da própria pátria”.
É assim que pensam as ditaduras, sejam elas de esquerda ou
de direita.
SILÊNCIO SEPULCRAL
Do TERRA
A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, afirmou nesta
quarta-feira, 27, que vai participar de "todos" os programas sociais
do governo destinados a pessoas com deficiências e doenças raras. Ao deixar a
sessão solene em comemoração ao Dia Mundial das Doenças Raras, no final da manhã,
Michelle evitou falar com a imprensa. A assessoria da primeira-dama deixou
claro que ela não falaria com jornalistas.
Antes de entrar no carro, Michelle respondeu apenas a uma
pergunta. Ao ser indagada se participará de algum programa de governo
relacionado ao tema da cerimônia desta quarta, ela respondeu:
"todos". Em seguida, questionada sobre quando começará a atuar, ela
não respondeu.
Michelle tem evitado a imprensa desde que teve o nome
envolvido no caso do ex-motorista do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), Fabrício
Queiroz, envolvidos em movimentações financeiras consideradas atípicas pelo
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Como revelou o
jornal O Estado de S. Paulo, Queiroz repassou R$ 24 mil para a
conta da primeira-dama. Na época, o presidente Jair Bolsonaro justificou que
era pagamento de um empréstimo que ele havia feito a Queiroz e que usou a conta
da mulher porque não tinha tempo para ir ao banco.
Após assumir protagonismo na posse presidencial, Michelle só
voltou a participar de um evento público nesta quarta-feira, no plenário da
Câmara. A mulher do ministro da Justiça, Sergio Moro, também estava presente.
Ao chegar para a sessão, a primeira-dama foi abordada por
diversos parlamentares que queriam cumprimentá-la e tirar fotos. Ela sentou na
mesa da presidência e fez um breve discurso na tribuna, no qual destacou a
"missão" que assumiu como primeira-dama de lutar pela
"conscientização profunda sobre a realidade de pessoas com
deficiência".
"Essas enfermidades alteram a qualidade de vida não só
dos pacientes, mas de toda família, causando dor para os raros e seus
cuidadores", declarou. Ela destacou a importância de valorizar pesquisas e
políticas públicas como principais eixos de atuação para auxiliar pacientes,
agentes de saúde, instituições sociais e familiares. "Contem com o meu
apoio, pois essa é minha luta", concluiu Michelle. Ao final, fez gestos em
Libras.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, acompanhou o
evento e mencionou Michelle em sua fala. Ele contou que a primeira-dama
"solicitou olhar muito atento a todas as doenças raras". Ela teria
solicitado um foco maior para a doença epidermólise bolhosa (EB), e por isso o
ministro já teria começado a visitar organizações que atuam neste tipo de
tratamento. "Devemos ampliar acesso aos curativos de melhor qualidade e
com maior capilaridade em todo Sistema Único de Saúde (SUS)", disse o
ministro.
No discurso em Libras feito na posse presidencial, Michele
assumiu compromisso para desenvolver ações para surdos e pessoas com
deficiência. No início do ano, ela também procurou o ministro da Cidadania,
Osmar Terra, para iniciar um diálogo sobre o tema, mas sem especificar ações.
"Gostaria de modo muito especial de dirigir-me à
comunidade surda, às pessoas com deficiência e a todos aqueles que se sentem
esquecidos: vocês serão valorizados e terão seus direitos respeitados. Tenho
esse chamado no meu coração e desejo contribuir na promoção do ser
humano", declarou Michele na cerimônia de posse do presidente Jair
Bolsonaro.
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