Nossa geração foi educada na crença de que os brasileiros
são cordiais. Um profeta popular como Gentileza e sua frase “gentileza gera
gentileza” pareciam confirmar essa tese. Se acreditasse nisso, estaria, como
algumas senhoras da minha idade, postando fotos do sol nascente com a frase
“mais um dia maravilhoso em nossa vida”.
Ultimamente, temos decapitado muito. Constatei isso em
Pedrinhas, no Maranhão, em Manaus e, agora, dizem os jornais que dos 58 mortos
em Altamira 16 foram decapitados.
Não conheço lugar do mundo em que isso aconteça com tanta
intensidade. O Estado Islâmico, que usou a decapitação como espetáculo, parece
que encerrou a temporada. Lembro-me de alguns casos no Haiti, mas isso num
período de intensa luta política.
A novidade no caso é que o presidente do país não condena
essas execuções e aconselha a pensar nas vítimas dos decapitados, e não nas
suas cabeças cortadas. Isso nos dá uma sensação de barbárie. Mesmo os
defensores da pena de morte a aceitam depois de um julgamento legal. No Brasil
de hoje, as grandes organizações criminosas acabam ganhando o direito de matar,
após um julgamento sumário.
Na mesma semana, Bolsonaro resolveu, sem nenhuma base,
desenterrar um morto para desonrá-lo. Todos os que acreditam no respeito humano
protestaram.
Ao remover o passado para soprar as cinzas e fazer algum
fogo, Bolsonaro questiona um dos fundamentos do nosso processo de democrático.
Ele se fez num quadro conciliatório de anistia geral. Os atores radicais da
época perceberam que estavam envoltos nas turbulências da Guerra Fria e
expressavam internamente aqueles conflitos da época.
De agora em diante, muitas divergências não desapareciam,
mas a novidade é que seriam resolvidos pacificamente num processo democrático.
Mais ainda: apesar das divergências que eventualmente sobrevivem, havia um
imenso campo em que, apesar delas, trabalhar lado a lado para resolver alguns
problemas do Brasil.
Por que Bolsonaro revolve as cinzas de uma fogueira extinta
e sopra tentando reanimar as chamas? Não estamos mais naquela época, ele mesmo
sabe.
Bolsonaro tem Trump como ídolo, e parece que seu guru é
Steve Bannon, cuja visão é a de promover uma guerra contínua a partir do
próprio governo.
Na esquerda, já se discutiu isso em outro contexto e outro
nível de profundidade, quando Troski defendia a tese de uma revolução
permanente.
Muitos afirmam que as táticas de Trump e Bolsonaro têm uma
grande eficácia eleitoral. Isso ainda não foi demonstrado, uma vez que não
houve nova eleição.
A situação do Brasil é diferente. Vivemos ainda numa grande
crise econômica, o presidente não tem um Partido Republicano no Congresso. E,
finalmente, o fator subjetivo: nosso temperamento é diferente não só pela
cultura como pelo fato de não termos enfrentado tantas guerras como eles.
É muito possível que a tática de Bolsonaro o leve à sua
verdadeira dimensão política: o líder de uma ala radical da direita longe de
ser aprovado pelos 57 milhões de eleitores.
Ele não só rompeu com uma espécie de acordo no qual o
presente e o futuro importam mais que o passado. Busca destruir uma política
ambiental de quase três décadas. Não é perfeita, tem lacunas imensas como o
saneamento básico, mas ainda merecia respeito internacional.
A tese dos que veem eficácia na guerra permanente de
Bolsonaro não levam muito em conta o potencial de seus eleitores compreenderem
seus erros.
O que se coloca pela frente não é apenas brigar com
Bolsonaro. O essencial hoje é pensar em como sobreviver à sua passagem,
construindo um horizonte que passa pela reconstrução econômica, mas vista como
algo maior. Não é possível crescer sem uma política adequada de educação. Muito
menos com uma visão destrutiva do meio ambiente.
Esses temas não têm um condão mágico. Mas quem os subestima
abertamente tende a um isolamento relativo, entra em confronto com a ciência,
nega valores humanos, flerta com a barbárie.
E acaba contando apenas com a ideia de uma guerra
permanente. Umberto Eco, no seu livro “O fascismo eterno”, revela com ironia:
“Em maio ouvíamos dizer que a guerra tinha acabado. A paz me deu uma sensação
curiosa. Tinham me dito que a guerra permanente era a condição normal de um
jovem italiano.”
Artigo publicado no jornal O Globo em 05/08/2019
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