O racismo é baseado
no sentimento de que a cor da pele branca deveria valer poder e privilégio. Ele
acomete com facilidade pessoas que conseguiram pouco poder e privilégios.
Para essas pessoas,
a raça é uma consolação: elas têm pouco ou nada, mas, “ao menos”, lhes sobra o
fato de elas serem brancas —potencialmente, um privilégio.
Os “brancos” pobres
ou de pequena classe média constituem assim um reservatório natural de
indivíduos dispostos a se considerar injustiçados, pois eles não
estariam gozando dos privilégios aos quais eles acham
que teriam direito (por serem brancos).
Geralmente, as
pessoas que escolhem essa maneira de se consolar por seu insucesso social não
são solidárias. Elas preferem que os pobres e miseráveis (sobretudo negros,
cafuzos ou escurinhos) continuem assim. A visão dos derrotados e fracassados
reafirma que eles “são” de um feitio “superior”.
Um injustiçado
precisa de: 1) uma insatisfação, difusa ou específica, com sua situação, 2) a
convicção de ter direito a algum privilégio, que está sendo
desrespeitado, 3) a sensação de que outros poderiam se dar melhor do que
ele, embora não tenham direito a privilégio algum.
O racismo não é o
único jeito de designar esses outros “usurpadores”. O ódio pelas minorias
sexuais pode preencher a mesma função.
Assim: eu sou
“normal” bem comportado, tenho família e pudor, isso me dá ou deveria me dar
alguns direitos —tanto no além quanto no desde já.
Agora, há outros que
não impõem a si os mesmos limites que eu me imponho, transam sem vergonha e,
mesmo assim, têm os mesmos direitos que eu. Como pode? Além de gozar sexualmente
mais do que eu, eles enriquecem, até porque mal têm filhos para criar e não
pagam dízimo. É só o que falta, esses “viados” terem os mesmos direitos que eu…
Existe hoje outro
tipo de injustiçado —nem racial nem sexual. É o injustiçado cultural.
Nos últimos 20 anos,
ele não leu um livro, não frequentou cinema, teatro, exposições ou shows.
Em vez de acusar sua preguiça e ignorância, ele prefere pensar que o seu
direito à cultura lhe foi sonegado por um complô de esquerdistas ou
marxistas, que se apoderaram da produção cultural.
Também há o
injustiçado econômico, que perdeu o seu lugar no mundo (um lugar ao qual
pensava ter direito) simplesmente porque o mundo mudou e o mercado de
trabalho pede uma competência mínima que ele deixou de ter.
O que importa é que o
injustiçado acredita no seu direito ao privilégio e não está disposto a
reconhecer sua falta de sorte e, ainda menos, sua mediocridade ou sua covardia.
Os culpados sempre são alguns outros diferentes (e inferiores), assim como a
sociedade que os privilegia injustamente.
O afeto dos
injustiçados é o ressentimento, ou seja, o sentimento de uma
ofensa recebida. Maria Rita Kehl escreveu a obra essencial sobre esse
afeto (“Ressentimento”, Casa do Psicólogo). E, para quem quiser se perguntar se
o ressentimento é o afeto crucial da modernidade, Nietzsche é insuperável
(“Genealogia da Moral”, Companhia das Letras).
Os ressentidos já se
satisfizeram com a espera do além, onde as contas seriam zeradas e
finalmente os direitos e privilégios reconhecidos. Hoje, eles são menos
pacientes.
É de se perguntar se
a modernidade, à força de nos convencer a todos que temos direitos
(simplesmente por sermos humanos), não nos transformou a todos em ressentidos,
nos levando a entender nossos eventuais fracassos sempre e fundamentalmente
como injustiças.
De qualquer forma,
os ressentidos, por se enxergarem como injustiçados, estão sempre prontos
a se revoltar.
Essas reflexões
tentam responder a uma pergunta simples: de onde vêm os atiradores que matam a
esmo pelo mundo afora, como os dois americanos que mataram mais de 30 em
El Paso e Dayton, Estados Unidos? Joe Biden, o candidato democrata, acusou
as armas. O
presidente Trump acusou
os videogames e o eventual desequilíbrio mental dos atiradores. Eu preferiria
que nos perguntássemos quando, como e por quê, não só nos EUA, a desigualdade
começou a ser entendida automaticamente como injustiça, alimentando, portanto,
o ressentimento como afeto moderno por excelência.
A questão é urgente
porque os homens
políticos mais manipuladoresadoram alimentar o ressentimento. E
precisam que os ressentidos continuem se considerando injustiçados, pelos
negros, pelos “paraíbas”, pelos “viados”, pelos marxistas, pelas
feministas…
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor
de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).
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