sexta-feira, 9 de agosto de 2019

INJUSTIÇADOS E RESSENTIDOS

Contardo Calligaris, Folha de S.Paulo
O racismo é baseado no sentimento de que a cor da pele branca deveria valer poder e privilégio. Ele acomete com facilidade pessoas que conseguiram pouco poder e privilégios.
Para essas pessoas, a raça é uma consolação: elas têm pouco ou nada, mas, “ao menos”, lhes sobra o fato de elas serem brancas —potencialmente, um privilégio. 
Os “brancos” pobres ou de pequena classe média constituem assim um reservatório natural de indivíduos dispostos a se considerar injustiçados, pois eles não estariam gozando dos privilégios aos quais eles acham que teriam direito (por serem brancos).
Geralmente, as pessoas que escolhem essa maneira de se consolar por seu insucesso social não são solidárias. Elas preferem que os pobres e miseráveis (sobretudo negros, cafuzos ou escurinhos) continuem assim. A visão dos derrotados e fracassados reafirma que eles “são” de um feitio “superior”.
Um injustiçado precisa de: 1) uma insatisfação, difusa ou específica, com sua situação, 2) a convicção de ter direito a algum privilégio, que está sendo desrespeitado, 3) a sensação de que outros poderiam se dar melhor do que ele, embora não tenham direito a privilégio algum.
O racismo não é o único jeito de designar esses outros “usurpadores”. O ódio pelas minorias sexuais pode preencher a mesma função. 
Assim: eu sou “normal” bem comportado, tenho família e pudor, isso me dá ou deveria me dar alguns direitos —tanto no além quanto no desde já. 
Agora, há outros que não impõem a si os mesmos limites que eu me imponho, transam sem vergonha e, mesmo assim, têm os mesmos direitos que eu. Como pode? Além de gozar sexualmente mais do que eu, eles enriquecem, até porque mal têm filhos para criar e não pagam dízimo. É só o que falta, esses “viados” terem os mesmos direitos que eu…
Existe hoje outro tipo de injustiçado —nem racial nem sexual. É o injustiçado cultural.
Nos últimos 20 anos, ele não leu um livro, não frequentou cinema, teatro, exposições ou shows. Em vez de acusar sua preguiça e ignorância, ele prefere pensar que o seu direito à cultura lhe foi sonegado por um complô de esquerdistas ou marxistas, que se apoderaram da produção cultural.
Também há o injustiçado econômico, que perdeu o seu lugar no mundo (um lugar ao qual pensava ter direito) simplesmente porque o mundo mudou e o mercado de trabalho pede uma competência mínima que ele deixou de ter.
O que importa é que o injustiçado acredita no seu direito ao privilégio e não está disposto a reconhecer sua falta de sorte e, ainda menos, sua mediocridade ou sua covardia. Os culpados sempre são alguns outros diferentes (e inferiores), assim como a sociedade que os privilegia injustamente.
O afeto dos injustiçados é o ressentimento, ou seja, o sentimento de uma ofensa recebida. Maria Rita Kehl escreveu a obra essencial sobre esse afeto (“Ressentimento”, Casa do Psicólogo). E, para quem quiser se perguntar se o ressentimento é o afeto crucial da modernidade, Nietzsche é insuperável (“Genealogia da Moral”, Companhia das Letras). 
Os ressentidos já se satisfizeram com a espera do além, onde as contas seriam zeradas e finalmente os direitos e privilégios reconhecidos. Hoje, eles são menos pacientes.
É de se perguntar se a modernidade, à força de nos convencer a todos que temos direitos (simplesmente por sermos humanos), não nos transformou a todos em ressentidos, nos levando a entender nossos eventuais fracassos sempre e fundamentalmente como injustiças.
De qualquer forma, os ressentidos, por se enxergarem como injustiçados, estão sempre prontos a se revoltar.
Essas reflexões tentam responder a uma pergunta simples: de onde vêm os atiradores que matam a esmo pelo mundo afora, como os dois americanos que mataram mais de 30 em El Paso e Dayton, Estados Unidos? Joe Biden, o candidato democrata, acusou as armas. O presidente Trump acusou os videogames e o eventual desequilíbrio mental dos atiradores. Eu preferiria que nos perguntássemos quando, como e por quê, não só nos EUA, a desigualdade começou a ser entendida automaticamente como injustiça, alimentando, portanto, o ressentimento como afeto moderno por excelência.
A questão é urgente porque os homens políticos mais manipuladoresadoram alimentar o ressentimento. E precisam que os ressentidos continuem se considerando injustiçados, pelos negros, pelos “paraíbas”, pelos “viados”, pelos marxistas, pelas feministas…
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).
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