sábado, 30 de novembro de 2019

DOURANDO A BALA

Thais Bilenky, PIAUÍ

Um militante vestido de homem-bomba, com calça camuflada do Exército e uma placa na cabeça em que escreveu PSL – Para Sair Logo, gritava palavras de ordem num alto-falante. Outro, com barba farta e cabeça raspada, ao estilo do lendário candidato a presidente Enéas Carneiro (1938-2007), circulava com seu bordão adaptado: “Meu nome é Neves.” Homens vestidos de preto faziam gestos de armas com as mãos, outros empurravam um carrinho com uma placa com o nome do novo partido, Aliança pelo Brasil, e seu logo, toda feita de projéteis de armas de fogo. Dezenas de apoiadores vestindo verde e amarelo gritavam ofensas à mídia e ao STF (Supremo Tribunal Federal). 

A convenção do novo partido do presidente da República, Jair Bolsonaro, na última quinta-feira (21), em um hotel em Brasília, era o ambiente propício. O chefe do Executivo aproveitou o público entusiasmado com sua retórica bélica para anunciar a sua décima primeira tentativa de emplacar o polêmico excludente de ilicitude na legislação brasileira. Outros nove projetos com teor similar foram apresentados por ele enquanto era deputado federal e um décimo, já no Executivo, foi rejeitado pela Câmara.

No palanque da convenção da Aliança pelo Brasil, Bolsonaro discursava que não adiantava nada um cidadão estar “bem de vida” se teme ser assassinado por um ladrão de celular. Aí emendou com o aviso de que enviara para a Câmara dos Deputados o projeto que beneficiaria agentes das Forças Armadas e das polícias que atuam em operações de GLO (garantia da lei e da ordem). Se ferirem ou matarem em legítima defesa não sofrerão sanções a menos que haja “excesso doloso” (proposital). Neste caso, o agente poderá ser processado e eventualmente punido. O projeto proíbe prisão em flagrante.

A GLO é decretada pela Presidência da República quando se considera “o esgotamento das forças tradicionais” ou “grave situação de perturbação da ordem” – as Forças Armadas têm poder de polícia para atuar por tempo determinado para debelar uma situação e garantir a preservação da ordem pública. Foi o caso da intervenção federal decretada pelo então presidente Michel Temer em 2017 no Rio de Janeiro, justificada pelo governo federal como uma tentativa de conter o crime organizado.

Nesta segunda-feira (25), Bolsonaro afirmou que pretende enviar ao Congresso um projeto de lei que dê ao governo a prerrogativa de decretar GLO em casos de reintegração de posse em propriedades rurais. Defendeu também que proprietários armados ajam livremente se tiverem o domicílio invadido, sem estarem passíveis de punição. O presidente disse que enviaria outro projeto de lei com esse teor. Ambas as propostas já foram apresentadas por Bolsonaro quando era deputado e, como as demais, não avançaram na Câmara. Juntos numa mesma reintegração de posse, a GLO e o excludente de ilicitude abririam caminho para ações ainda mais violentas no campo. 

“O que é excludente de ilicitude? Em operação, você responde, mas não tem punição”, definiu o presidente no evento de quinta passada. “Vamos depender agora, meus parlamentares, deputados e senadores, de aprovar isso lá [no Congresso]. Será uma grande guinada no combate à violência no Brasil.” 

O ministro da Justiça, Sergio Moro, incluiu o excludente de ilicitude no projeto anticrime que apresentou ao Congresso em fevereiro. O texto previa prerrogativas a agentes de segurança que cometam excessos por “medo, surpresa ou violenta emoção”. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), chamou a iniciativa de perigosa e ela acabou excluída do pacote de Moro em setembro pelo grupo de trabalho que a analisou. A nova versão do projeto concentra o excludente de ilicitude apenas nas operações de GLO.

“A insistência vem de longa data, mas ele nunca conseguiu aprovar esse projeto, exatamente porque não faz o menor sentido. Aumenta a capacidade letal de um estado que já é um dos que mais mata no mundo inteiro”, criticou o deputado Marcelo Freixo (Psol-RJ), integrante do grupo que derrubou a proposta de Moro.

Para Freixo, a nova tentativa, desta vez apresentada pelo Ministério da Defesa, que comanda as Forças Armadas, tem uma particularidade. “Tem a ver com os acontecimentos da América Latina. O que acontece agora na Colômbia, aconteceu no Chile, a derrota do [presidente Mauricio] Macri na Argentina, na verdade o que acontece na América do Sul é a derrota de um projeto econômico, de redução do estado, de uma agenda neoliberal, da flexibilização das leis trabalhistas. É a mesma agenda do Paulo Guedes [ministro da Economia de Bolsonaro]”, comparou Freixo, citando países com protestos massivos recentes.

“O que o Bolsonaro está prevendo é que, com esta agenda econômica do governo dele aqui e com o que está acontecendo no entorno da América Latina, ele está de alguma maneira precavendo a possibilidade de o Estado ser brutalmente violento. Esse talvez seja o AI-5 que Eduardo Bolsonaro falou quando tratava da questão do Chile”, seguiu Freixo, em referência à declaração do filho do presidente que é deputado federal e defendeu a reedição de uma medida repressiva como a da ditadura militar para conter protestos. 

“Talvez não seja o texto do AI-5 fechando o Congresso, até porque deixaria os filhos dele desempregados, mas pode estar vindo aí uma medida de estado de exceção”, concluiu o deputado do Psol.

“Não queremos o retorno do AI- 5, ninguém pensa sequer em fechar o Congresso Nacional. Só dizemos que esse tipo de ato que acontece no Chile, de terrorismo e vandalismo, está dentro da esfera criminal e merece a repulsa com muita energia por parte dos agentes do governo”, disse Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), nesta terça-feira (26) na Câmara.

Ele explicou o que quer dizer com “medida energética”: “Não quero que policial dê tiro de borracha e responda por lesão corporal. A violência é legítima por parte do Estado, tem violência até boa. Legitima defesa. Se alguém tentar te estuprar e um terceiro matar esse estuprador essa violência é válida”.

“Nosso Código Penal já garante a legítima defesa. O que nós queremos é dar um plus, uma segurança jurídica maior para o policial, seja em GLO seja em operações até mesmo rotineiras da polícia em que seja necessário o uso da força”, prosseguiu Eduardo.

Para ele, a dificuldade encontrada no passado por seu pai e ele para aprovar projetos com esse teor foi superada. “A gente está vivendo o Congresso mais conservador das últimas décadas, agora eu vejo que existe espaço para isso.”

Aimunidade de agentes de segurança foi uma das mais barulhentas promessas de campanha de Bolsonaro em 2018. Fazia parte de um pacote que o então candidato a presidente prometia para combater a violência com mais violência, facilitando a posse e o porte de arma, entre outras medidas.

Durante seus sete mandatos como deputado federal, Bolsonaro insistiu no excludente de ilicitude. Os últimos projetos que apresentou com esse intuito visavam beneficiar policiais, que foram sua principal base eleitoral na Câmara. Em momentos anteriores, ele aproveitou para emplacar a ideia em tempos de clamor popular contra, por exemplo, arrastões nas praias do Rio de Janeiro ou com assaltos violentos.

O primeiro projeto de lei (6.162/2005) foi apresentado em novembro de 2005. O texto acrescentava um trecho ao Estatuto do Desarmamento para estabelecer que disparo de arma de fogo em caso de legítima defesa própria ou de outra pessoa não configuraria mais crime inafiançável. Argumentou que, “muitas vezes, o disparo de arma de fogo pode servir como meio de evitar a ocorrência de mal maior”. Como o Código Penal já prevê a legítima defesa, seu projeto não foi para a frente: foi arquivado pouco mais de um ano depois. O projeto passaria por um périplo de tramitação: foi desarquivado pelo proponente e arquivado outras duas vezes até ser apensado (incluído) em outras matérias em 2015.

Em 2014, Bolsonaro tentou dois projetos para alterar o Código Penal, estratégia que voltaria a usar nos anos seguintes. O primeiro (7.105/2014), apresentado em fevereiro, pretendia mudar a definição de “legítima defesa”, retirando dela a expressão “usando moderadamente dos meios necessários”, porque, sustentou o então deputado, “isso se constitui em um mecanismo de proteção ao marginal”. O texto também deixaria de punir “o excesso culposo” (não intencional) de quem age em legítima defesa própria. “Quem repele injusta agressão não pode ser punido por eventual excesso, pois não é cabível exigir, de uma pessoa comum, prudência, perícia ou habilidade específica no calor de um acontecimento adverso”, argumentou. Ficou nos escaninhos da Câmara, até o início deste ano, ressuscitado por então aliados do hoje presidente da República.

O segundo projeto de 2014 (7.104/2014) e outro de 2015 (2.832/2015) propunham dois acréscimos ao Código Penal. O artigo 23 já exclui a ilicitude (não considera crime) quando o agente atua “em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”, mas faz uma ressalva: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”

De acordo com o texto de 2014, a legislação eximiria quem reagisse a uma invasão de domicílio. “A alteração tem por objetivo resguardar o ambiente domiciliar do cidadão de bem que comumente se vê surpreendido pelo ingresso de assaltantes que, além de prejuízos materiais, por vezes, atentam contra sua integridade física e de seus familiares”, defendeu Bolsonaro. Está tramitando desde então.

A proposição seguinte incluía uma nova circunstância para excluir a ilicitude: “Em defesa do patrimônio próprio ou de outrem, quando vítima de crime perpetrado mediante violência ou grave ameaça.” Era uma tentativa de reforçar a garantia de quem reage a um assalto, por exemplo. “O conceito de legítima defesa se confronta com o chamado ‘excesso’, ocasionando transtornos àqueles que legitimamente usaram recursos para sua proteção e de seu patrimônio”, justificou. “A reação de terceiros contra criminosos no momento da prática de um roubo pode evitar que a situação evolua para a ocorrência de um latrocínio [roubo seguido de morte ou grave lesão corporal], o que desde já justifica a defesa praticada.”

Ao discursar na Câmara em defesa de seu projeto, fez menção aos arrastões nas praias do Rio de Janeiro e criticou a decisão da Justiça de proibir apreensão de adolescente senão em flagrante. Naqueles dias, muitas reportagens mostravam a frequência com que adolescentes agiam em bando para roubar objetos de banhistas desprevenidos. Em alguns casos, moradores reagiam prendendo e agredindo os menores. “Um policial militar não pode mais exercer o seu trabalho preventivo no Rio de Janeiro, em especial nos fins de semana, quando hordas de menores vão às praias. O que vem acontecendo? A população está simplesmente atônita, porque há arrastões, roubos, lesões corporais etc. E a população não pode reagir, porque, se reagir, vai acabar respondendo por lesão corporal ou até mesmo homicídio, caso venha a matar um menor desses aí, que não tem qualquer responsabilidade”, revoltou-se o então deputado.

Não funcionou. O texto foi apensado a outro e não avançou.

Ainda em 2015, ele fez nova tentativa (3.582/2015) de isentar quem reagisse a uma invasão de domicílio, alterando outro artigo do Código Penal, mas o projeto terminou arquivado.

Em maio de 2017, Bolsonaro e o filho Eduardo, deputado federal, propuseram dois textos para alterar o Código Penal. Um deles (7.711/2017) estabelecia que, em um crime cometido por um grupo de pessoas, a vítima ou um terceiro que se defendesse atacando mais de um bandido estivesse resguardada pela legítima defesa. O outro projeto conjunto de pai e filho (7.712/2017) previa que, se um dos criminosos sofresse lesão corporal ou morresse por reação da vítima ou outrem, a pena dos demais deveria ser aumentada de metade a dois terços. 

Ambos os projetos ficaram na gaveta até junho deste ano, com Bolsonaro já presidente, quando deputados aliados os recuperaram, e agora estão em tramitação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). 

Em novembro de 2017, a dupla voltou ao tema com uma proposta (9.064/2017) desta vez para alterar o Código de Processo Penal e o Código de Processo Penal Militar. Eles queriam que o policial que matasse ou machucasse um criminoso fosse beneficiado pela excludente de ilicitude a priori (“a presunção da legalidade de seus atos”), “afastando inicialmente a possibilidade de prisão em flagrante quando no exercício de seu dever legal”. Caso fosse comprovada ilegalidade por parte do agente público, aí a Justiça poderia mandar prendê-lo. O projeto não foi para a frente.

Bolsonaro faria sua nona e última tentativa, enquanto deputado federal, em fevereiro de 2018, já pré-candidato a presidente. Dias depois de o então presidente Michel Temer (MDB) decretar intervenção federal no Rio de Janeiro, o então deputado e seu filho propuseram (9.564/2018) que os agentes que atuam em situações como essa fossem beneficiados pelo excludente de ilicitude. Novamente, não tiveram sucesso.

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Reportagem atualizada às 16h50 do dia 26 para incluir a entrevista do deputado Eduardo Bolsonaro

THAIS BILENKY (siga @thais_bilenky no Twitter)

Repórter na piauí. Na Folha de S.Paulo, foi correspondente em Nova York e repórter de política em São Paulo e Brasília

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