De repente o fantasma do AI-5 volta a assombrar. É como se
tivéssemos entrado na máquina do tempo e ela nos levasse, célere, para 13 de
dezembro de 1968. Zuenir Ventura escreveu um livro chamado 1968, o Ano que Não
Acabou. O título pode ter sido mal interpretado, pois não fala em momento algum
que o tempo correria para trás.
Estamos em 2019, que, por sinal, está quase acabando. Muita
coisa mudou nestas seis décadas. Hoje, na sombra do AI-5, há outro mais
assustador: as demonstrações no Chile. Ele estava embutido nas ameaças de
Eduardo Bolsonaro, parcialmente apoiadas pelo general Heleno, e ressurge agora
na entrevista de Paulo Guedes. É sempre o mesmo fantasma arrastando correntes
nas névoas de uma miopia histórica.
Tanto o governo como Lula partem de um pressuposto
equivocado: o de que um movimento como o chileno é provocado por exortações nos
palanques ou inibido por ameaças de virar a mesa democrática. Tivemos grandes
movimentos populares em 2013 e ninguém falou no AI-5. Mesmo no Chile, o que se
vê é o horizonte de um novo acordo social.
O Financial Times disse que os acontecimentos no Chile foram
uma ducha de água fria no governo Bolsonaro. Afinal, os mesmos objetivos
econômicos fazem parte de sua agenda liberal. E o mesmo Paulo Guedes trabalhou
no Chile sob Pinochet e reaparece agora conduzindo o processo no Brasil. Iria
um pouco mais longe. Os acontecimentos no Chile abalaram a confiança do governo
Bolsonaro e o que vemos desde então não passa de sinais de insegurança sobre os
rumos da agenda liberal.
Lula, é verdade expressou no palanque o desejo de ver algo
no Brasil como o que aconteceu no Chile. Mas talvez saiba que as exortações têm
poder limitado, revoltas desse tipo são fermentadas por múltiplos fatores e não
se fazem de cima para baixo.
Surpreendido pela eclosão do movimento em 2013, quando era
governo, o PT tenta se antecipar a ele, na oposição. Se acontecer, pode dar a
ilusão de que foi o grande personagem.
Não é verdade, entretanto, que Lula tenha exortado a
violência, como disse Guedes nos EUA. Ele tem experiência para saber que a
violência é um fator que desagrega um movimento, assusta as pessoas que querem
demonstrar pacificamente.
Houve focos de violência tanto no Brasil em 2013 como no
Chile agora. Eles não conseguiram esvaziar o movimento chileno. Mas o preço foi
alto: mais de 200 pessoas cegas inteira ou parcialmente por balas de borracha,
a maioria delas manifestantes pacíficos.
Bolsonaro voltou a insistir na chamada exclusão de
ilicitude, que na prática é a liberação da porrada. Ainda não conhecemos bem o
que virá por aí, como os ingredientes fermentam, que tipo de estopim pode
provocar a explosão, quaisquer 20 centavos a mais. Mas uma coisa aprendemos
tanto em 2013 como no Chile: é importante superar a crise sem golpear a
democracia.
Diriam: Piñera decretou estado de sítio. Mas sua primeira
promessa em seguida foi precisamente anular o estado de sítio. Essa trajetória
seria suficiente para as pessoas saírem da máquina do tempo, rasgarem seu AI-5
de estimação, caírem em 2019 e trabalharem exclusivamente com saídas
democráticas.
Os generais que fizeram o AI-5 tinham um pé na realidade,
tanto que o consumaram com êxito. As pessoas que insistem em usar o velho
instrumento num mundo transfigurado me intrigam. Ser mais velho tem alguma
utilidade. Posso lembrar que não havia internet na época do AI-5. O estado de
exceção é uma espécie de estado de espírito que parecem carregar por todos os
momentos históricos.
Paul Guedes, entre outros, tem a tarefa de manter o curso da
economia mais ou menos protegido dos sobressaltos políticos. Ele fez o
contrário, sobressaltou a economia com sua miopia política ao reviver o AI-5
como uma possibilidade.
Lembro-me do AI-5 nas vésperas do Natal, panfletagens na
porta de igrejas, sinos, o embrulho dos presentes. Não simpatizo com a
terraplanismo, muito menos acho Trump salvador do Ocidente. No entanto, os
arautos do AI-5 de certa forma me devolvem a juventude, ter algo obsessivo e
prioritário para fazer na vida: derrubar o governo. Não há heroísmo nessa
fantasia. Outra utilidade de ser velho é distinguir as épocas: desta vez eles
cairiam bem mais rápido e os heróis seriam coletivos.
Algo me impressionou no jogo Flamengo x River Plate: a
torcida que empurrou o time brasileiro até o ultimo minuto. Sem ela
dificilmente haveria aquele feito histórico. Não creio que haja uma força no
Brasil capaz de instalar um estado de exceção e segurar o tranco, nacional e
internacional. Mas já que insistem tanto no tema, talvez merecessem paciência;
que façam o AI-5 e aguentem as consequências. O problema é que sua aventura
seria devastadora para o Brasil.
A democracia permite a defesa de ditaduras tanto à direita
quanto à esquerda. Às vezes somos tentados a legislar sobre isso. Mas não creio
que isso resolva. O melhor mesmo é uma reação em cadeia cada vez que invocam o
fantasma da ditadura.
No meio desse fogo cruzado, o Parlamento, com todos os seus
defeitos, faz outra leitura do Chile. Ele não se contenta em levar apenas a
agenda liberal, mas se dispõe a combiná-la com iniciativas sociais. Na minha
cabeça nem sempre essas agendas estão separadas. Convergem, por exemplo, no
saneamento básico, campo em que abertura econômica e aumento do bem-estar
caminham ombro a ombro. Como foi a privatização da telefonia.
De qualquer forma, o caminho do Congresso parece ser mais
realista, contribui para conter os extremos. Diria um caminho do centro. No
entanto, o centro do Brasil, em alguns quesitos, como a corrupção, consegue ser
tão ou mais vulnerável que os extremos. Esse é um dos motivos que o afastam da
sociedade. Em síntese, não empolga a torcida.
Mas pode, pelo menos, não se acovardar diante de ameaças de
AI-5. Lembram-se do que aconteceu com o Congresso, a censura entrando de corpo
presente nos jornais? Vale algo mais que simples declarações de praxe.
Artigo publicado no Estadão em 29/11/2019
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