Paz, perdão, empatia. Inúmeras palavras são harmônicas com
as ideias que Jesus Cristo demonstrou na prática na sua vida, segundo o
registro dos Evangelhos e dos textos dos apóstolos. A arma não faz parte desse
conjunto, ela distoa. Quando se tenta pôr numa mesma proposta Cristo e armas a
dissonância é completa. Quem o faz distorce a mensagem que está no Novo
Testamento. A figura fascinante de Jesus está ligada à superação de
preconceitos: salvar a mulher do apedrejamento, falar com a estrangeira,
perdoar, no último suspiro, quem tinha feito uma trajetória de vida oposta à
dele.
Existe a fé, e existe o entendimento. A fé pertence a cada
um e só a pessoa sabe de sua existência, e os que não a têm merecem o mesmo
respeito. A questão é íntima, delicada. A fé é inefável, excede a todo o
entendimento, como eu ouvia na minha casa paterna. O entendimento, e não a fé,
é a matéria dessa coluna. Ele deve ser buscado como forma de evitar os enganos
e os usos indevidos dos valores que cada pessoa carrega.
Tive uma educação protestante, como os que me conhecem
sabem. Meu pai era pastor presbiteriano, então na minha casa lia-se a Bíblia
com frequência e falava-se dela com intimidade. Um dos princípios caros aos
herdeiros da reforma era a separação entre Igreja e Estado. Na doutrina, a
mistura é vista como um terreno pantanoso. Como meu pai Uriel era, ao mesmo
tempo, diretor de um colégio e o pastor da igreja em Caratinga, Minas Gerais,
ele praticava no cotidiano essa separação. O colégio era absolutamente laico,
como ele acreditava que deveria ser o Estado. O Estado laico era estudado nas
salas de aula como um dos avanços importantes da história humana. Da mesma
forma separavam-se ciência e religião.
Quando nasci, os que se definiam como protestantes no Censo
eram uma ínfima minoria. Ser diferente da maioria aumentava o sentimento de que
tínhamos que entender o outro. Lembro de uma brincadeira de infância com várias
amigas na porta da minha casa. Passou o monsenhor e todas as meninas beijaram
sua mão. Eu não. Elas explicaram que eu era diferente, não era católica.
Respeitar as diferenças era ser respeitado. Hoje o IBGE reúne na categoria
“evangélicos” inúmeras denominações. Em muitas delas não se reconhecem os
valores defendidos no princípio daquele Movimento, nas 95 teses afixadas por
Lutero na porta da igreja de Wittenberg. O cisma de 1517 marcou o fim do
comércio do perdão. Ele passou a ser entendido como graça e não mercadoria pela
qual se deveria pagar. Isso refletiu-se na própria Igreja Católica.
Havia também a ideia da simplicidade, da relação direta com
Deus, do perdão obtido não por confissão ao sacerdote e penitência imposta por
ele, mas pela oração sincera e direta. O esforço dos líderes daquela vertente
do cristianismo, nascida no fim da Idade Média, era de que cada um entendesse a
doutrina lendo a Bíblia e por isso o movimento protestante é parte da
explicação do esforço de alfabetização da Europa. Essa ideia já estava em Jan
Huss, na Boêmia, cem anos antes. Huss havia sido reitor da Universidade de Praga
e era padre. Foi queimado como herege. A tese de que cada indivíduo deveria ele
mesmo compreender os textos sagrados permitia o empoderamento do fiel, que não
tinha mais que aceitar de forma acrítica a palavra dos sacerdotes. Nas escolas
dominicais que frequentei falava-se sobre o contexto de cada trecho da Bíblia.
O “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, a propósito, sempre foi
conhecer a Jesus. A leitura do capítulo 8 de João mostra que está sendo dito
que Jesus é a verdade. Usar o versículo 32 como slogan político é comparar-se a
Cristo. Um despropósito.
Não é preciso ser cristão, nem deixar de ser ateu ou
agnóstico para entender que o relato feito da vida de Cristo nos evangelhos
traz como mensagem fundante a paz e o desarmamento de espíritos. O único
momento em que Jesus se enfurece é exatamente quando se depara com a mistura
entre fé e comércio. Ele mostrou repulsa aos “vendilhões do templo”.
Que o Natal de cada pessoa, de cada família, seja cheio
desses valores iniciais do cristianismo. Em um tempo de conflitos e divisões,
em que o ódio se espalha em rede, que seja momento de pensar nesses
fundamentos. Uma noite de paz. Feliz Natal.
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