Estou me despedindo de 2019. Talvez ele não tenha culpa de
nada do que me tenha acontecido, mas foi durante seu reinado que aconteceu. No
plano geral e no close, um ano sombrio em minha vida. No público e no privado.
Mas nem por isso rasgo as vestes e perco a esperança. Pelo contrário, são esses
os momentos que temos para aprender a viver, compreender melhor o que o acaso
tem a nos ensinar. Ou, como está lindamente escrito em recente ensaio de Andréa
Pachá: “Somos alcançados pela ação arbitrária do tempo que nos ignora e age sem
nossa autorização”.
Até o início do século XX, nos garantiam que o universo era
uma máquina que fabricava seu próprio fim. Estávamos nas mãos da entropia
universal. A largada do Big Bang, o peteleco de Deus no vazio do mundo, era um princípio
que caracterizava o rumo do fim. Mas o físico alemão Max Planck, no ano de
1900, provou que a energia não era liberada de modo contínuo, e sim na forma de
pequenos pacotes que ele chamou de quanta. Cinco anos depois, Einstein
confirmava o que dissera Planck e, logo a seguir, Niels Bohr consagrava a
disciplina dessas ideias: a Física Quântica. E nunca mais a entropia se
acertou, o determinismo se estrepou, tudo pode acontecer no mundo em que
vivemos.
Nada é necessariamente de um jeito só, do jeito que é.
Pegue, por exemplo, o Brasil. Bolsonaro vai nos levar para o maior retrocesso
que puder, com sua direita nostálgica de um passado que nunca existiu. Mas seu
poder já não é mais o mesmo de quando foi eleito. Alguns bolsotários acreditam
em tudo que Bolsonaro anuncia e não se dão conta de que ele tem apenas mais
três anos para mudar o mundo. E nós temos todo o tempo do mundo para tentar
impedi-lo.
Não gosto dessa ideia de “resistência”, que tanta gente
afirma em relação ao governo. Parece um convite à passividade como estratégia.
Não me sinto ocupado, não preciso me libertar de nenhuma ocupação estranha do
meu espaço cívico e civil. Se sou contra o governo eleito democraticamente,
devo exercer democrática oposição e, como tal, esperar o momento próprio em que
a democracia me dará uma oportunidade de tentar me livrar do que considero um
mal. Em vez de resistir, devo agir.
No cinema, por exemplo, o governo federal pratica uma
inércia estratégica, a empurrar com a barriga decisões indispensáveis ao
funcionamento da Ancine e à fabricação de nossos filmes. Em vez de lamento e
choro, por que não tentarmos alternativas? Por que não propor ao governo
estadual que substitua a ausência da União, como já fizeram, com sabedoria, em
São Paulo? Vamos sugerir ao governador Wilson Witzel que ele seja responsável
pela volta do Rio de Janeiro ao centro de nossa produção audiovisual.
Que o estado volte a ser a base do cinema brasileiro,
estabelecendo leis e regras locais para que isso se dê com seriedade, correção
e possibilidade de futuro. Por que não criar, digamos, uma Aecine (Agência
Estadual de Cinema) em moldes contemporâneos?
Nesse ano de lutas e tristezas, tive o prazer enorme de
entrar para a Academia Brasileira de Letras, sucedendo o mestre Nelson Pereira
dos Santos, com quem tanto havia conversado sobre o assunto. No dia 12 de
abril, dia da posse, minha filha Flora sofreu o primeiro sintoma grave de seu
fim. Dispensei-a de ir ao Petit Trianon, vesti pela primeira vez meu fardão,
tranquei-me com ela no escritório lá de casa e li para Flora meu discurso de
posse. Só para ela. Flora me corrigiu passagens do discurso e me fez jurar que
o leria pausadamente, em bom tom e com clareza. Depois de nos abraçarmos, parti
com Renata para a ABL, vestido em meu fardão, com muita saudade de Flora.
Tudo o que fazemos nesse mundo é sempre feito para
conquistar quem amamos. A partir desse sombrio 2019, tenho menos um grande amor
a conquistar, pois Flora partiu no dia 2 de junho. Se a morte fosse um lance
bacana, os deuses não teriam escolhido serem eternos.
O GLOBO volta a publicar essa minha coluna no dia 27 de
janeiro de 2020. Agora preciso descansar, espairecer um pouquinho com Renata.
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