Entre os balanços negativos que o governo federal deixa em
2019, não nos esqueçamos da campanha estridente para desmoralizar a imprensa.
Poucas vezes um presidente da República se empenhou tanto em difamar as
redações profissionais. Segundo levantamento da Federação Nacional dos
Jornalistas (Fenaj), a autoridade máxima do Poder Executivo alcançou, entre 1.º
de janeiro e 30 de novembro de 2019, a marca de 111 ataques à imprensa. A
campanha infamante cravou a média de um insulto a cada três dias.
No cômputo da Fenaj aparecem episódios da mais tosca
brutalidade verbal. Mesmo quem não gosta de jornalismo se sente vexado. Num
post de 9 de agosto, por exemplo, o presidente reclamou da ausência de punição
contra “excessos” dos jornalistas. Além de mal-educado, o chilique é
desinformado, pois todas as legislações democráticas, desde a histórica
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França, preveem a
responsabilização dos que abusam da liberdade de expressão (está lá, no artigo
11 da declaração).
Naquele mesmo dia 9 de agosto, no Palácio do Alvorada, ao
lado do ministro da Justiça, o presidente permitiu-se uma agressão suplementar
(essa, aliás, nem consta do rol organizado pela Fenaj). Dirigindo-se a um grupo
de repórteres, fez uso de sua rispidez habitual: “Se excesso jornalístico desse
cadeia, todos vocês estariam presos agora, tá certo?”.
O que vem a ser “excesso jornalístico”? Ninguém sabe. A lei
conhece a figura do abuso de um direito, assim como conhece o abuso de poder,
mas não estabelece nada sobre “excesso jornalístico”. Nem teria como
estabelecer. A locução adjetiva carece de objeto. É só na escuridão das
fantasias tanáticas do sujeito que a pronuncia que ela ganha sentido: para esse
sujeito, o jornalismo não passa de um impulso desagradável (como a raiva, como
as explosões de mau humor), é uma forma de demência que precisa ser vigiada e
contida. No léxico presidencial, o jornalismo não é profissão ou função social,
mas uma neurose que acomete indivíduos desviantes. Por isso o presidente, que
nunca diria “excesso advocatício”, “excesso médico” ou “excesso arquitetônico”,
sai por aí falando em “excesso jornalístico”. Para ele, o jornalismo encerraria
uma disfunção tóxica. Em doses moderadas, já faz um mal danado. Em “excesso”,
deveria dar cadeia.
Excessos à parte, não há muito a fazer quanto ao despreparo
do governante de turno. Temos de conviver com isso. Cumpre-nos, isso sim,
entender sua lógica ilógica. Se seus discursos desinformam os brasileiros e
deformam as linhas de equilíbrio da opinião pública, o que nos cabe, dentro de
todos os limites, é escrever para esclarecer, mesmo que em vão. A gente pode (e
deve) perguntar: o que pretende essa caótica retórica que atira randomicamente
contra repórteres, órgãos de imprensa (que ele ocasionalmente chama de
“inimigos”) e quem mais estiver na frente? Seria sua finalidade quebrar um
jornal especificamente ou caluniar este ou aquele profissional de forma
seletiva?
A resposta é “não”. O propósito dos 111 ataques em 11 meses
é quebrar a vigência da liberdade de imprensa. O presidente parece saber, mesmo
sem saber como sabe, que sem liberdade de imprensa a sociedade estará entregue
às mentiras e, de modo especial, às piores mentiras, as que são enunciadas pelo
poder. Ele quer menos liberdade para os jornalistas checarem os fatos porque –
ao menos é o que parece – quer mais espaço para mentir.
Inconscientemente coerente com seu propósito pulsional, ele
esconde que a liberdade de imprensa, mais do que uma prerrogativa burocrática
do profissional, é um direito de toda a sociedade. Fala como se a liberdade de
imprensa fosse a “exclusão de ilicitude” dos jornalistas. Nada mais mentiroso.
O jornalista é, sim, quem em primeiro lugar exerce a liberdade de imprensa, mas
o jornalista não é o beneficiário da liberdade de imprensa. O beneficiário é a
sociedade. O jornalista exerce a liberdade como um dever e, agindo assim,
assegura que a sociedade possa desfrutar a liberdade de imprensa como um
direito. Se não pudesse contar com o direito à liberdade de imprensa, a sociedade
não teria como se proteger contra as inverdades que aparecem na propaganda do
poder. Ficaria indefesa.
Contra tudo isso o discurso presidencial convida a sociedade
a repudiar a imprensa. Culpa os jornalistas por todos os relatos inverídicos
que circulam, caracteriza os repórteres e os articulistas como vilões e, por
meio desses artifícios, procura angariar apoio para, intimidando os
jornalistas, esvaziar esse direito essencial de toda a sociedade.
Um jornal sozinho não entrega a verdade de mão beijada a
ninguém, sabemos disso. Mas, repetindo, uma sociedade com órgãos de imprensa
sérios, profissionais e independentes está mais protegida contra fraudes e
estratégias de tapeação. A melhor forma de entendermos a liberdade de imprensa
é concebê-la como um regime geral para o fluxo das ideias na sociedade
democrática. A liberdade de imprensa é o princípio norteador do regramento que
autoriza os jornalistas a verificarem diariamente os indícios da verdade
factual e assim realizar um trabalho que, se não encontra a verdade pronta e
acabada, impõe limites decisivos contra as propagandas do poder.
Se cumprirem seu dever de exercer a liberdade, os órgãos de
imprensa ajudam a sociedade a se proteger contra os mentirosos que tentam
primeiro tapeá-la para depois oprimi-la. Será por isso que o presidente está em
campanha contra a liberdade? Talvez.
Fiquemos com os fatos. Quando ataca pessoalmente uma
repórter do Estado, quando tenta afastar ilegalmente a Folha de S.Paulo de uma
licitação, quanto chama a Rede Globo de “inimiga”, o chefe de Estado não quer
apenas ofender o Estado, a Folha ou a Globo. Ele quer ferir o regime da
liberdade de imprensa. Por isso em 2019 moveu sua guerra suja contra a
imprensa. Como será 2020?
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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