A Constituição, no seu artigo 173, definiu que a presença do
Estado na atividade produtiva é exceção e não regra. Privatizar, além de seguir
o princípio constitucional, reduz o déficit público e permite que o Tesouro use
os recursos para fins socialmente justificados. Um bom programa de privatização
deve também estimular a concorrência e trazer ganhos de produtividade e
eficiência.
O programa do governo atual conta qualquer operação de venda
como privatização: venda de subsidiárias, de posições acionárias, de projetos de
infraestrutura, leilões de óleo e vendas de campos da Petrobrás – tanto faz. A
nova contabilidade criativa disfarça a timidez e lentidão da desestatização do
governo Bolsonaro. A frustração é grande. O R$ 1 trilhão virou piada, e mesmo
sabendo-se que Bolsonaro é contra a privatização, a expectativa era que Guedes
conduzisse um programa ousado para cumprir a promessa de redução dramática da
dívida pública com recursos das vendas das estatais.
Mas o processo, hoje, se resume ao desinvestimento em
participações minoritárias e de subsidiárias das estatais- mãe. Não se discute
que o enxugamento de ativos e o uso do desinvestimento para reduzir o
endividamento e dispersão de atividades das estatais é uma estratégia positiva.
“Melhor do que nada”, diriam alguns. Mas é pouco perto do que precisamos.
Essa estratégia não contribui para a redução da dívida, nem
para reforma do Estado. Os recursos obtidos ficam à disposição dos dirigentes
das empresas- mãe. É só na eventualidade de pagamento de dividendos, para a
União e minoritários, que chegam aos cofres públicos.
O Estado continua onipresente e limitando a liberdade do
mercado. Petrobrás mantém seu monopólio no gás; Banco do Brasil, a
exclusividade no crédito agrícola; e a poupança dos trabalhadores continua
compulsoriamente administrada pela Caixa.
Na agenda verdadeiramente liberal não cabe o apelo a
“setores estratégicos”, conceito que varia ao sabor da tendência política de
cada governante. Como já escrevi várias vezes neste espaço, o art. 173 deveria
ser a regra do jogo, o norte do programa, mas vem sendo ignorado por completo.
Nem mesmo estatais “do PT” estão no horizonte de privatização deste governo.
A venda de ativos vem de decisões da administração das
empresas que não passam pelo Conselho do Programa Prioritário de Investimentos
(PPI), nem estão incluídas no PND. Não seguem uma orientação do Ministério de
Economia que, aliás, não tem comando sobre o processo, como revela a ausência
gritante da Valec, EPL, Infraero e EBC na lista do PND.
A redução da presença do setor público, que se obtém
vendendo subsidiárias ou participações minoritárias, pode se revelar
temporária. É provável que uma estatal fortalecida financeiramente venha a
reinvestir e expandir de novo seus negócios. Afinal, não há governança que não
possa mudar ao sabor da política e da pressão dos “aliados”. Nada mais
revelador do que a recriação da Telebrás no governo Lula.
E por falar em governança de estatais: como justificar que o
governo suspenda peças de propaganda, cancele palestras de seus críticos, deixe
no ar a ameaça de intervir nos preços dos combustíveis e indique diretores,
apesar da lei das estatais? Só a venda definitiva garante uma redução
permanente da presença do Estado na economia.
No Fla-Flu das redes sociais, o que vale é quantidade. A
qualidade do programa pouco importa. E o governo aproveita para surfar nesta
onda. Prometeu arrecadar R$ 150 bilhões, sem, no entanto, revelar a origem
dessa estimativa. A julgar pela contabilidade do ano passado, vale tudo. Até
mesmo a venda de participações minoritárias em sociedades privadas, o governo
conta como privatização. Difícil privatizar o que já é privado.
Com essa contabilidade criativa, tenta convencer a opinião
pública de que há um amplo programa de privatização em curso. E não há.
A cada manifestação, a meta anunciada pelo secretário de
desestatização muda de apelido: 300 empresas, 300 negócios, 300 ativos ou 300
companhias. Não são a mesma coisa. A narrativa oficial coloca qualquer
desinvestimento de estatais como privatização. Não é.
A lentidão do processo é atribuída à burocracia no PND e à
má vontade do Congresso. Toda privatização, pequena ou grande, sofre
resistência política. Foi sempre assim. Não paralisou Eduardo Leite, que
aprovou até uma PEC, nem impediu que Temer enviasse ao Congresso um projeto
para liberar a venda da Eletrobrás que, aliás, é a única iniciativa enviada ao
Legislativo até o momento e que conta com apoio de Maia. Este governo poderia
seguir o exemplo e enviar um PL para bancos públicos e Petrobrás. Só assim se
saberá de fato o que pensa o Congresso, que ainda não foi testado. Mas se o
próprio governo é contra, fica difícil.
O Estado está presente onde não se justifica e é ausente
onde ele é necessário: Enem, Sisu, INSS e Bolsa Família. Governo federal
poderia seguir o exemplo do governador do Rio Grande do Sul.
*ECONOMISTA E ADVOGADA
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