Vive-se contínuo desassossego em tempos de Bolsonaro, fonte
única de uma crise política que não tem outra razão de ser que não sua
personalidade conflituosa.
Tem-se a impressão de estar a fazer viagem no trem fantasma
ao percorrer o Palácio do Planalto: na primeira curva encontra-se a figura da
viúva do coronel Ustra com um retrato do marido com dizeres em letra grande:
Herói Nacional. Logo em seguida, tromba-se com o Major Curió em cadeira de
rodas sendo homenageado. Depois de pequena reta, surge o rosto encaveirado de
Roberto Jefferson vociferando contra os vagabundos do Supremo Tribunal Federal.
Um longo túnel retrata os grupos dos domingos presidenciais antidemocráticos,
bolsonaristas carregando faixas clamando pelo fim do Congresso Nacional. No
final da viagem encontra-se, bem sentado numa poltrona, sorridente, o
ex-deputado Valdemar Costa Neto.
Em face de investigação pelo Supremo sobre as fontes das
fake news, com determinação de busca e apreensão em endereços de apoiadores do
presidente que constituem a origem da indústria de notícias falsas, veio uma
reação desmedida, com a pregação da possibilidade até mesmo de guerra civil por
dezenas de coronéis, com aviso nesse sentido pelo ministro do GSI e o
comentário do deputado Eduardo, o filho 03, reconhecendo inafastável a ruptura,
bastando saber quando ocorreria.
Em vista desse quadro de radicalismo crescente, com ataques
permanentes aos Poderes Legislativo e Judiciário, a sociedade civil, até aí
adormecida, resolveu vir à tona para proclamar a defesa da democracia.
Surgiram, então, manifestos que reúnem pessoas de diversos
matizes, ganhando destaque o divulgado pelo Movimento Estamos Juntos, subscrito
por mais de 150 mil. Assevera-se que “somos muitos, e formamos uma frente ampla
e diversa, suprapartidária, que valoriza a política”, pedindo eficácia na
resposta a crimes e desmandos de qualquer governo.
Em outro manifesto, intitulado Basta, subscrito por cerca de
600 profissionais do Direito, pontua-se: “O presidente da República faz de sua
rotina um recorrente ataque aos Poderes da República, afronta-os
sistematicamente (…). Descumpre leis e decisões judiciais. Assim, é preciso dar
um BASTA a esta noite de terror com que se está pretendendo cobrir este país.
Não nos omitiremos”.
Outro documento, com 170 assinaturas de personagens da área
do Direito, enfrenta a justificativa de interferência militar com base no
artigo 142 da Constituição federal: “A nação conta com suas Forças Armadas como
garantia de defesa dos Poderes constitucionais, jamais para dar suporte a
iniciativas que atentem contra eles. Assim, às Forças Armadas não se agregam o
papel de poder moderador entre os Poderes”.
Associações de magistrados e procuradores foram incisivas em
sua manifestação, ao deixar preciso que “todo ato que atente contra o livre
exercício dos Poderes e do Ministério Público, em qualquer das esferas
federativas, se não evitado, será objeto, portanto, de imediata e efetiva
reação institucional”. Igualmente, a Associação dos Juízes Federais do Brasil
(Ajufe) divulgou nota repudiando os eventos antidemocráticos que “demonstram
desprezo absoluto à independência judicial”.
Nota do colégio de ex-presidentes da Associação dos
Advogados de São Paulo explica: “A Nação está exausta em razão do clima
artificial de confronto criado toda semana pelo senhor Presidente da República.
(…) A sua estratégia fica dia a dia mais clara. A sociedade civil já percebeu o
engodo e vem se posicionando por meio de manifestos que unem pessoas de
diversos matizes políticos, identificados, todavia, pela crença nos valores da
democracia”.
Seis entidades da advocacia de São Paulo emitiram nota,
pontuando não se poder viver sob sombra de constante lembrança de intervenção
ou ruptura, a serem devidamente repudiadas. Igualmente o fizeram 130
organizações da sociedade civil no documento Juntos pela democracia e pela
vida. O núcleo pensante do País veio à tona.
Os excertos dos manifestos mostram viva disposição de se
impedir qualquer retrocesso autoritário, em “superação de diferenças políticas
em favor da preservação da democracia”, a ponto de unir torcidas organizadas de
times arqui-inimigos.
Pode-se, então, destacar nesses trechos a presença de duas
tônicas: a defesa da independência do Judiciário e o aviso de se estar
vigilante contra qualquer tentativa de limitação das liberdades democráticas,
prometendo-se reação institucional ou uma resposta eficaz em face de crimes e
desmandos.
A conduta daqui para a frente desses organismos formais e
informais, que tomam posição em defesa da democracia, dependerá de como vai
agir o sr. presidente, que na sua megalomania saiu a cavalo levantando o braço
esquerdo como os generais em guerra até o fim do século 19. Pode ser um
Napoleão de hospício, que, como dizia Nelson Rodrigues, é feliz por não ter
Waterloo.
Espera-se não ser necessária nenhuma batalha para o
mandatário sair do seu universo paralelo e cair na realidade do jogo
democrático honesto e transparente.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Nenhum comentário:
Postar um comentário