Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A
Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que
escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi
morta, em março de 2018.
O livro, construído partir de entrevistas com autoridades
penitenciárias e policiais, além de lideranças do PCC e de associações
comunitárias, pretendia ser um alerta para os pressupostos da política de segurança
pública que, na previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia
do ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.
O livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos
sobre o crime organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento
em massa de São Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de
gerência da cúpula da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos
índices paulistas de homicídio.
Um mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso
sentiu-se atropelado pela história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o
candidato do PSL, Jair Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da
República. Com a eleição de Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar
a pensar em outro livro. Desta vez, para contar como a cultura da violência
miliciana, travestida em apelo da lei e da ordem, havia se transformado na
expectativa majoritária de redenção do eleitorado nacional.
O resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte
à Era Bolsonaro” (Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com
entrevistas em profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades
policiais, lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma
sensibilidade aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do
Rio em contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de
duas décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da
USP.
Até então, sua incursão de mais fôlego no Rio havia sido
durante a cobertura que fizera, para “O Estado de S. Paulo”, da intervenção
policial no Morro do Alemão durante o governo Sérgio Cabral, em 2007. Nas
pesquisas para o livro foi descobrindo um clientelismo que, ao contrário
daquele que observara em São Paulo, não havia enfrentado a concorrência do
sindicalismo industrial ou das comunidades eclesiais de base da Igreja
Católica. É ao entrar em Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio, que o autor
encontra a chave para entender o fenômeno exportado para o resto do Brasil com
a eleição de 2018.
Fora da caixinha dos estereótipos, encontra uma comunidade
em tudo diferente da Copacabana decadente em que costumava se hospedar. Vê uma
comunidade barulhenta, jovem, com letreiros chamativos a anunciar de médicos a
lojas de lingerie e restaurantes de sushi. A pujança mostrava o dinheiro posto
em circulação pelas milícias, que, em parceria com a polícia, se tornara donas
de parte dos negócios despojando receita do poder público e das grandes
empresas de gás, luz, transporte e internet sem precisar desperdiçar com
armamentos como nas favelas comandadas pelo tráfico.
A comunidade é parte da jurisdição do 18º Batalhão da
Polícia Militar do Rio, o mesmo em que o sargento Fabrício Queiroz e o capitão
Adriano da Nóbrega se conheceram. O livro reconstitui a ficha criminal que
construíram juntos sob a proteção da família Bolsonaro e do Tribunal de Justiça
do Rio.
Bruno Paes Manso descreve uma Rio das Pedras marcada pelo
coronelismo dos imigrantes nordestinos, apesar de o primeiro chefe local se
chamar Octacílio Bianchi e o maior beneficiário político da propagação de seu
modelo de empreendedorismo ser um paulista de Eldorado que levou seus modos
bandeirantes para a Presidência da República.
Foi 1964 que deu às comunidades milicianas seu DNA. Com o
golpe, a violência e a tortura policial se aproximaram dos porões da ditadura
e, juntos, enterraram a utopia de nação que o Rio encarnava, com a sofisticação
da bossa nova e a genialidade do samba de morro. O livro escolhe o capitão do
Exército Aílton Guimarães Jorge, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras
em 1962, como símbolo da aliança entre bicheiros e policiais endossada pelo
regime.
Guimarães era protegido de oficiais envolvidos com o
terrorismo de Estado que marcaria a derrocada do regime. Com o planejamento de
explosões em Agulhas Negras e numa adutora da capital fluminense, o capitão
Jair Bolsonaro se filiaria a esta linhagem. Com a abertura, a entrada do
insubordinado capitão na política se daria pela legitimação dos crimes da
polícia. “Em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além
do limite em nome do ‘cidadão de bem’”, diz Bruno.
As milícias, porém, não se beneficiaram apenas da proteção e
das condecorações dos Bolsonaro, mas da vista grossa que lhe fizeram todos os
governantes do Rio, de Leonel Brizola a Moreira Franco, passando pelo
ex-prefeito Cesar Maia, que fez de Rio das Pedras um curral de votos para a
eleição do seu filho, Rodrigo, hoje presidente da Câmara dos Deputados.
Com as Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas pelo
ex-governador Sérgio Cabral, o tráfico foi expulso da zona sul, para limpar o
cenário da Copa e da Olimpíada. Nesse período, também se espraiaram as
associações entre traficantes e milicianos. Esta sociedade prosperou com o
propósito de combater o Comando Vermelho, organização nascida no presídio de
Ilha Grande do convívio entre presos comuns e políticos na década de 1970.
A explosão da violência causada por esses conflitos e a
busca do governo Michel Temer por uma marca positiva levou à intervenção
militar no Rio, marcada, logo no seu primeiro trimestre, pelo assassinato de
Marielle Franco. Bruno Paes Manso levanta as hipóteses para o crime sem cravar
em nenhuma delas – provocação aos militares para mostrar quem manda no Rio,
reação às denúncias da vereadora contra a violência policial e retaliação ao
então deputado estadual, hoje na Câmara dos Deputados, Marcelo Freixo. O
deputado teve uma atuação desabrida na Assembleia Legislativa, da CPI das Milícias
aos esquemas, comandados pelos caciques locais do MDB, de distribuição de
propinas de empresários de transportes.
A única aposta do autor é no poder do jogo de dissimulações
envolvidas, que passa até mesmo por telefonemas forjados entre suspeitos que se
sabiam grampeados para incriminar inimigos. Foi a reação de um deles, Orlando
Curicica, miliciano preso por homicídio e associação criminosa, que levou à
prisão de Élcio Queiroz e Ronnie Lessa. A partir dos relatórios a que teve
acesso, Bruno Paes Manso descreve as manobras contra a elucidação do crime que
ruma para mil dias sem a prisão de seus mandantes.
A chegada ao Palácio da Guanabara de Wilson Witzel, outro
paulista emigrado para o Rio pelo sonho de uma carreira nas Forças Armadas,
reincorpora à polícia civil e militar, com status de secretarias, personagens
afastados desde os governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.
A queda de Witzel, que, de aliado, virara desafeto da
família Bolsonaro, e a posse do vice, Claudio Castro, promove alguns desses personagens.
Alan Turnowski, por exemplo, passa de braço direito a secretário de Polícia
Civil, com o apoio da família do presidente da República. Em outro depoimento
de Curicica ao qual o repórter Allan de Abreu, da revista “Piauí”, teve acesso,
Turnowski e o atual secretário da Polícia Militar, Rogério Figueredo, são
detalhadamente acusados de ligação com as tiranias paramilitares que ocupam a
cidade. Ambos negaram as imputações à revista.
O pacote de rearranjos acordados entre o novo governador do
Rio e os Bolsonaro ainda passa pela substituição do procurador-geral do
Ministério Público do Rio, José Eduardo Gussem, cujo mandato acaba em dezembro.
É Gussem quem tem, em grande parte, garantido a autonomia da investigação do
esquema de rachadinhas no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na
Assembleia Legislativa do Rio. A negociação que está em jogo na substituição de
Gussem por um nome de interesse da família presidencial passa pelo atendimento
das demandas do governador em relação à Superintendência da Receita Federal e à
Polícia Federal.
A presença de Castro no governo do Estado é a blindagem com
a qual a família Bolsonaro conta como anteparo à ascensão do ex-prefeito
Eduardo Paes (Democratas) ou da delegada Marta Rocha (PDT), que substituiu
Turnowski na chefia da Polícia Civil, em 2011. Paes e Marta aparecem nas
pesquisas como os mais cotados para o lugar do prefeito Marcelo Crivella
(Republicanos), aliado do presidente. É cedo para dizer se a ascensão de um ou
outro à Prefeitura levará o DEM ou o PDT, dois anos depois, ao Palácio da
Guanabara. Os grupos políticos de ambos pagaram pedágio às milícias quando
estiveram no poder, mas não exerceram o poder em nome delas.
Como mostrou o Mapa dos Grupos Armados do Rio, 57% da área
da cidade está hoje sob domínio das milícias. Esse avanço se deu ao longo de um
governo federal que flexibilizou o porte e afrouxou o controle de
comercialização e sob administrações locais que lhes franquearam espaços.
A República das Milícias, retratada por Bruno Paes Manso,
chegou ao poder com Bolsonaro, mas o extrapola. Está entranhada no dia a dia
das comunidades, dos serviços de transporte público às licenças de construção,
cujos despachantes, nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras, serão
definidos pelas urnas em 15 de novembro. Depois de ler o livro, fica difícil
acreditar que seja possível mudar o país em 2022 sem desalojar os justiceiros
de seu berço político.
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