Quem precisa reafirmar o tempo todo que tem poder talvez não
o tenha de fato. Quando o presidente Jair Bolsonaro declara, pela enésima vez,
que “quem manda sou eu”, como fez recentemente, está na verdade confirmando a
enorme dificuldade de fazer valer o poder que o cargo lhe confere. E isso tem
implicações graves para o País, retratadas em cores vivas pela gritante falta
de rumo do governo.
“Não delego a ninguém tratar sobre qualquer assunto
relacionado ao presidente da República. E a caneta Bic é minha e ainda tem
tinta”, disse Bolsonaro. Foi um comentário sobre a declaração do
vice-presidente Hamilton Mourão segundo a qual “é lógico” que o governo
comprará a vacina contra a covid-19 produzida por um laboratório chinês em
parceria com o Instituto Butantan. A fala de Mourão contrariou Bolsonaro, que dias
antes havia dito que o governo não compraria a vacina e que havia mandado
cancelar o protocolo assinado pelo Ministério da Saúde com o Instituto
Butantan. “O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”, disse
Bolsonaro na ocasião.
Presidentes não precisam envergar a faixa presidencial 24
horas por dia para serem respeitados. Esse respeito vem do exercício do poder
que resulta não da truculência do indivíduo que o ostenta, mas da vontade comum
da sociedade, alcançada por meio da política. Se a sociedade não entende as
decisões do presidente como parte de uma ação pactuada no espaço público da
política, e sim como manifestação do poder pelo poder, essa legitimidade deixa
de existir – e de nada servirá bradar que “o presidente sou eu”.
Um presidente que não sabe o que é o poder numa democracia
não tem como dar uma direção racional a seu governo. Passados quase dois anos
do mandato, Bolsonaro ainda não foi capaz de dizer o que pretende para o País a
quem cabe administrar. E nem se diga que o desgoverno é fruto da pandemia de
covid-19, pois mesmo antes desse flagelo o presidente Bolsonaro era francamente
incompetente para ir além de seus slogans eleitorais ao falar de seus planos
para o Brasil.
Tudo isso tem impacto concreto na vida do País. Sem que o presidente
consiga exercer o poder, porque o cargo está obviamente muito acima de sua
capacidade, cria-se um vácuo decisório que confunde o debate político –
justamente no momento em que a autoridade se faz mais necessária. Tome-se como
exemplo a discussão sobre o Orçamento, que deve necessariamente ser liderada
pelo Executivo. O presidente Bolsonaro ausentou-se de forma deliberada desse
debate, para escapar do desgaste político, e ao mesmo tempo desautoriza seus
auxiliares sempre que estes tomam alguma iniciativa que possa lhe ameaçar o
capital eleitoral. Nada do que emana do Executivo parece ter credibilidade.
“O Orçamento do próximo ano é uma incógnita para todos nós,
porque a gente não sabe o que o governo quer”, disse o presidente da Câmara,
Rodrigo Maia, em entrevista ao Valor. “É muito difícil tratar do
corte no Orçamento do Executivo sem que se tenha o presidente da República
comandando esse processo”, declarou o deputado, reafirmando o que deveria ser
óbvio.
Rodrigo Maia reclamou das mensagens confusas do governo. Ora
o Executivo acena com a prorrogação do auxílio emergencial, ora fala em
estender o estado de calamidade – mas tem sido vago a propósito da PEC
Emergencial, que autoriza um corte de despesas obrigatórias sempre que a
despesa corrente superar 95% da receita corrente.
Note-se, a propósito, que a PEC Emergencial deveria ter sido
aprovada no fim de 2019, mas a desorganização do governo a adiou para este ano,
e agora não se sabe o que o presidente Bolsonaro quer – mudando completamente o
sentido do adjetivo “emergencial”. “Isso tudo vai atrasando e gerando mais
insegurança”, queixou-se Rodrigo Maia.
O presidente da Câmara advertiu que “estamos caminhando a
passos largos para o precipício, e estamos caminhando para isso juntos, todo o
Brasil”. O presidente da República deveria usar o poder que tão ruidosamente
reivindica para evitar essa queda, e não para empurrar o País na direção do
abismo.
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