Em discurso de estadista, o candidato democrata à
presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que “ninguém vai nos tirar
nossa democracia, nem agora nem nunca”. Foi um pronunciamento destinado a
relembrar que a disputa eleitoral, numa democracia, não é uma guerra em que o
adversário deve ser aniquilado, mas o momento em que o povo é soberano para
escolher seu governante.
Para que esse processo seja legítimo, enfatizou Joe Biden,
“todo voto tem de ser contado”. Parece uma obviedade, mas não é: quando o
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tudo faz para interromper a
contagem que indica sua derrota e denuncia, sem qualquer prova, uma suposta
fraude nos votos já contados, é preciso lembrar do que é feita a democracia,
conceito que é estranho a Trump e, infelizmente, a muita gente nos Estados
Unidos – como mostra a expressiva votação que o atual presidente obteve.
Por isso, fez muito bem o candidato Joe Biden ao enfatizar
que, se confirmada sua eleição, ganhará “como democrata”, em referência a seu
partido, mas governará “como presidente”. E declarou: “Temos que nos ouvir uns
aos outros, respeitar e cuidar uns dos outros, nos unir como nação. Sei que não
será fácil. Sei como são profundas as diferenças, mas sei que, para
progredirmos, precisamos parar de tratar os oponentes como inimigos”.
Trata-se de uma mensagem poderosa, uma brisa de bom senso em
meio à tormenta autoritária que tomou os Estados Unidos desde a eleição de
Donald Trump, há quatro anos. Nada disso significa, contudo, que o horizonte
político norte-americano se desanuviará no curto prazo, pois as condições que
possibilitaram a ascensão do populismo destrutivo de Donald Trump se mantêm.
Há uma imensa massa de norte-americanos que se consideram
esquecidos pelo establishment político e econômico. São cidadãos ressentidos,
predispostos a crer que são vítimas do “sistema” representado por Washington e
Wall Street e que se sentem desrespeitados por minorias que desafiam seus
valores conservadores para ganhar espaço político e impor sua agenda.
Esses eleitores foram seduzidos por Donald Trump e seu
discurso insolente em relação às instituições democráticas, que ele trata
abertamente como adversárias. Seu slogan, “América primeiro”, não faz
referência à América de todos os norte-americanos, mas à América imaginada por
reacionários desconfortáveis com a democracia.
Nesse lugar imaginário, em que se vive sob constante ameaça
de “inimigos” inventados por teorias da conspiração disseminadas pelas redes
sociais, só podem viver os que aceitam seus valores truculentos – aos demais
resta viver como exilados dentro de seu próprio país.
Nenhuma nação democrática resiste a um ambiente intoxicado
de rancor como esse. Nenhum governo construído sobre bases tão desagregadoras
será visto como legítimo pelo conjunto dos cidadãos.
É por esse motivo que um político experiente como Joe Biden,
mesmo sem ter assegurada sua eleição, percebeu que era necessário apresentar-se
a seus compatriotas como um líder capaz de “ouvir” o que os eleitores de seu
adversário têm a dizer. É disso que depende a saúde da democracia
norte-americana, que um dia já foi exemplo para o mundo, mas agora, sob Trump,
se tornou fonte de vergonha e decepção – menos, é claro, para os que consideram
o histrião que hoje está na Casa Branca como o “salvador do Ocidente”, como o
classificou o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo.
Enquanto Biden pregava união e respeito pela decisão
soberana dos eleitores, o presidente Trump tuitava: “Parem a contagem!”. Ou
seja, o presidente de todos os norte-americanos defendeu que os votos de
milhares de seus compatriotas não fossem considerados, alegando fraudes
generalizadas. Nada que surpreenda, pois Trump há tempos avisou que colocaria
em dúvida o resultado da eleição se não lhe fosse favorável, pela simples razão
de que não aceita a derrota.
Felizmente, a democracia, ultimamente tão vilipendiada, tem
seus mecanismos de defesa, e isso ficou muito claro nos Estados Unidos. A
Trump, bem como a seus aduladores mundo afora, resta espernear.
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