terça-feira, 31 de maio de 2022

MALVERSAÇÃO: FACE VELADA DO PECULATO E DA CORRUPÇÃO

Almir Pazzianotto, OS DIVERGENTES

“Obras públicas no Brasil são mal planejadas, mal executadas, superfaturadas e inacabadas”. Lúcio Costa.

A experiência ensina que a Fazenda Pública, assim considerada a soma de valores pagos pelos contribuintes ao Tesouro Nacional, Estadual ou Municipal, é indefesa diante do peculato, da corrupção, da advocacia administrativa, da malversação dos recursos.

Malversar significa conduta dolosa, com esbanjamento de dinheiro público. Corresponde ao peculato previsto no artigo 312 do Código Penal, punido com reclusão de 2 a 12 anos, além da multa.

Nelson Hungria, integrante da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848, de 7/12/1940) e Ministro do Supremo Tribunal Federal, equipara a malversação ao peculato. Nas palavras do jurista, “Com a apropriação ou malversação do dinheiro, valor ou outro bem móvel pertencente ao Estado ou sob a guarda deste é que se realiza a violação do dever funcional. Uma e outra são como corpo e alma, como esmeralda e cor verde, como fel e amargor” (Comentários, Ed. Forense, RJ, 1958, vol. IX, pág. 349).

O Brasil é o paraíso de peculatários, lobistas e aproveitadores de dinheiro do povo. Não é necessário viajar ao Egito para conhecer obras faraônicas superfaturadas. Pululam pelo território nacional. São raros, entretanto, os corruptos condenados que cumprem pena em penitenciária ou em prisão especial, onde, quase sempre, gozam de generosas regalias.

A Operação Lava Jato trouxe à tona um dos casos mais conhecidos de malversação de dinheiro do povo. A reviravolta dada aos processos pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, ao conceder habeas corpus a cidadão solto e não ameaçado de prisão, não consegue desbaratar os fatos, dissipar as provas, relegar ao esquecimento o esquema de corrupção em que estavam mancomunados integrantes da cúpula do Governo Federal e representantes de partidos.

A impunidade que caracteriza o crime de peculato ou malversação não deve ser debitada à ausência de legislação. Além dos artigos 37, parágrafos 4º e 5º, e 85, da Constituição da República e do Código Penal, temos a Lei nº 1.079. de 10/4/1950, que “Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento”, a Lei nº 12.846, de 1º/8/2013, que “Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública nacional ou estrangeira, e dá outras providências”,

Se não há falta de leis, como se explica o número mínimo de agentes da Administração Pública processados e punidos por atos de improbidade administrativa? A resposta vamos encontrar no Padre Antônio Vieira que, no Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, apontou o dedo para o pecado da omissão, quando pregou: “A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete e com mais dificuldade se conhece; e o que mais facilmente se comete e mais dificultosamente se conhece, raramente se emenda”.

Exemplo extremo de malversação de dinheiro público encontra-se em São Paulo, à vista de todos. Refiro-me à Linha 17- Ouro do monotrilho em obras sobre a Av. Jornalista Roberto Marinho, destinado a ligar o Aeroporto de Congonhas à Estação Jabaquara e à Estação São Paulo-Morumbi.

O trajeto original de 17,7 km, com 17 estações, foi reduzido a 7,7 km, entre o Morumbi e o Jardim Aeroporto. Planejado pelo ex-governador Geraldo Alckmin, deveria ter sido inaugurado em 2014, antes da Copa do Mundo.

A construção se destaca pelas dimensões exageradas. Ignora-se quanto dinheiro foi consumido nas fundações, nas pilastras de muitos metros de altura, nas estações, no leito, onde se diz que em futuro incerto e não sabido circularão trens de alta velocidade. Em toda a extensão, debaixo de dezenas de árvores, habitam famílias sem teto e moradores de rua. Explorada por traficantes, a venda do crack prospera no local.

O art. 37 da Constituição ordena que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. No caso do Linha Ouro do Monotrilho, há fortes indícios de transgressão dos princípios de moralidade, publicidade e eficiência,

No exercício de função institucional (Constituição, art. 129, III), o Ministério Público de São Paulo deve promover Inquérito Civil para investigar se há crime de peculato, de corrupção ou de malversação e denunciar os responsáveis à Justiça.

É a exigência que se faz em defesa da probidade administrativa.

Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

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OS INFLUENCIADORES INSENTÕES

Mariliz Pereira Jorge, Folha de S.Paulo

Há um fenômeno interessante nas redes sociais. Os influenciadores isentões. Talvez não seja novidade para ninguém e eu seja só a tia atrasada do rolê. Talvez todo mundo ache que a vida é assim, mas quando percebi a mutreta, achei muito esperto e, também, bastante desonesto.

São celebridades e perfis que ganharam projeção com fofocas do meio artístico, cobertura sobre a programação de TV, que hoje abrange o streaming, alguns com comentários bem-humorados e, muitas vezes, críticas bastante ácidas. Eu passei a seguir algumas dessas páginas, que muitas vezes nem rosto tem, por causa do humor e das sacadas geniais para zombar da vida e de gente famosa. De uns tempos para cá, parecem ter perdido a verve e a aposta passou a ser a neutralidade. Viraram as "Sonia Abrão" sem opinião.

Não foi de cara que percebi a repetição do mesmo padrão. Foto ou vídeo postados não vêm mais com uma legenda opinativa, mas com a descrição do episódio —às vezes, nem isso, e uma pergunta: "o que vocês acharam disso?", "qual dos dois está certo?", "fulano tem razão?" Quem está distraído pode até pensar que a boa alma, que quase sempre tem milhões de seguidores, quer dar voz ao seguidor, abrir espaço para que todos deem sua opinião, democratizar o debate.

Na prática, é só um jeito de conseguir muito engajamento sem expor a própria opinião, sem fazer nenhum esforço de reflexão, sem correr o risco de ser cancelado por desagradar a A ou B. Muitos desses perfis romperam a barreira do assunto entretenimento e tem também conteúdo político. Quem resiste, não é mesmo? Parece que se você não falar de política nos dias de hoje, você nem existe. Mas como falar do assunto sem espantar a audiência que só estava ali porque quer ver as tretas sobre o BBB ou a Juma virar onça? Posando de isentão.

Se fosse só a infantilização do "debate" no campo do entretenimento, já seria um sinal claro da imbecilização da sociedade, mas é muito pior. Como a política virou pauta de páginas e de influenciadores nesse ecossistema da fofoca, é comum dar de cara com o seguinte conteúdo: "Você acha que Lula vai ganhar a eleição?" ou "Bolsonaro se elege no primeiro turno?", além de posts de celebridades que se manifestam politicamente.

É o tipo de coisa que aparece na mesma página que acabou de perguntar "vocês estão curtindo a reviravolta da Maria Bruaca?" (personagem da novela "Pantanal"). Trata-se de uma manipulação aparentemente inocente, mas basta ver o que acontece na caixa de comentários. Cada post que divide opiniões se transforma numa arena com xingamentos, emojis de vômito, militância inflamada. E o isentão, que administra aquele conteúdo, só observa de camarote sem sofrer um arranhão.

A apropriação da política por páginas e influenciadores que vivem da fofoca foi batizada de "fofocariado político" pelo professor Fabio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos Sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). No começo de abril, em reportagem da Folha, ele falou do impacto que isso pode ter nas candidaturas.

Não tenho dúvida de que as redes sociais vão ditar novamente o resultado das eleições, ditar o comportamento dos candidatos que tentam cada vez mais falar a língua das redes. Por ora, a maioria dessas páginas só joga gasolina na polarização, inviabiliza o debate, não tem compromisso com a informação e nem responsabilidade social. Os seguidores são apenas massa de manobra para catapultar sua audiência e o seu faturamento com publicidade.

Vocês shippam essa duplinha, página de fofoca e política?

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POUCO A APRESENTAR

Editorial Folha de S.Paulo

É da natureza do governo Jair Bolsonaro (PL) a fidelidade aos interesses de grupos aliados —sejam policiais, militares, defensores de armas, ruralistas, evangélicos ou caminhoneiros— em detrimento da atenção ao interesse público.

Entre inúmeros exemplos, nesta terça-feira (31) a administração federal esteve novamente às voltas com o impasse criado pela insistência do mandatário em conceder reajustes salariais para as carreiras da área de segurança pública.

Como um governo previdente seria capaz de prever, a benesse injustificada despertou demandas das demais corporações do funcionalismo, cujos protestos e paralisações hoje prejudicam a prestação de serviços à sociedade.

Previu-se, então, um reajuste linear de 5% para todos os servidores, e a conta para os cofres públicos saltou do R$ 1,7 bilhão inicial para algo mais próximo dos R$ 8 bilhões —dinheiro que terá de ser remanejado de outras áreas.

Agora, muito tardiamente, constata-se o óbvio: para elevar os salários de profissionais que dispõem de estabilidade no emprego e remunerações das mais elevadas do país, é preciso retirar recursos da saúde, da educação, da ciência. E o presidente hesita diante de uma crise criada por ele próprio.

Boas políticas públicas dependem de providências cotidianas e invisíveis para a maioria. Trata-se de cotejar custos e resultados, fixar metas, negociar com os envolvidos, persistir nos rumos traçados, aprender com a experiência.

Avesso ao trabalho, Bolsonaro prefere o barulho. Troca duas vezes o comando da Petrobras em poucas semanas a fim de parecer fazer algo contra a alta dos combustíveis, assim como empilha ministros na Saúde e no MEC. Mesmo o Auxílio Brasil, de objetivos corretos, foi introduzido sem os devidos cuidados de elaboração e gestão.

O programa não tem sido capaz de reverter a impopularidade do presidente entre os eleitores de renda mais baixa. Segundo o Datafolha, 50% dos que ganham até dois salários mínimos consideram o governo ruim ou péssimo, e 20%, ótimo ou bom. Na faixa acima de dez mínimos, aprovação (45%) e reprovação (44%) são equivalentes.

Que fiquem claras, porém, as proporções: o primeiro contingente corresponde a 52% da amostra da população utilizada pelo instituto, e o grupo mais rico, a apenas 3%.

A maioria pobre ou mal remediada sofre os efeitos mais dolorosos da inflação acelerada, que ora parece o maior obstáculo às pretensões eleitorais de Bolsonaro.

A escalada de preços é fenômeno global, decerto, mas seu controle é dificultado aqui pelo enfraquecimento da disciplina orçamentária e pelo abandono das reformas.

Na campanha, o mandatário terá pouco a apresentar além da dedicação a pautas de aceitação minoritária na sociedade —do acesso a armas ao ensino domiciliar, do combate a multas de trânsito à recusa dos cuidados contra a Covid. Precisará apostar, ao que parece, na rejeição ao principal adversário.

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segunda-feira, 30 de maio de 2022

GUINADA COLOMBIANA

Editorial Folha de S.Paulo

Realizado no domingo (29), o primeiro turno do pleito que escolherá o novo presidente da Colômbia foi marcado pela rejeição, por parte expressiva dos eleitorado, do establishment político que vem governando o país nas últimas décadas.

Trata-se de um desfecho que não chega a surpreender. O descrédito dos partidos tradicionais e a crescente insatisfação popular, acentuadas durante a pandemia, tornaram-se patentes no ano passado, quando imensos protestos disparados por uma proposta de reforma tributária incendiaram diversas cidades colombianas.

Direcionado agora às urnas, esse anseio por mudanças deu ao ex-guerrilheiro Gustavo Petro a liderança na corrida eleitoral. Com cerca de 40% dos votos, ele confirmou as expectativas e agora busca tornar-se o primeiro presidente esquerdista do país.

A surpresa ficou por conta de seu contendor, o populista Rodolfo Hernández, que, numa ascensão vertiginosa, desbancou nos últimos dias o candidato da direita tradicional, logrando 28% dos sufrágios.

Embora os dois candidatos representem um voto de repúdio à política tradicional colombiana, a trajetória e as ideias de ambos não poderiam ser mais diferentes.

Disputando a Presidência pela terceira vez, Petro integrou o grupo rebelde M-19, que depôs as armas em 1990. Percorreu desde então uma carreira política exitosa, tendo sido eleito senador e prefeito da capital do país, Bogotá.

Suas principais propostas estão em torno de uma reforma econômica, incluindo a renegociação de tratados de livre comércio e investimento na economia verde. Ele promete também acelerar a implantação do acordo que resultou no fim das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia.

Hernández, por sua vez, é um rico empresário que já governou a cidade de Bucaramanga. Tendo como plataforma básica acabar com a corrupção na política, o populista fez uma campanha centrada em bordões disseminados pelas redes sociais —e não à toa é comparado a Jair Bolsonaro e Donald Trump.

Numa eleição considerada a mais tensa das últimas décadas, marcada por episódios de violência e ameaças de morte contra candidatos, analistas preveem uma disputa renhida nas próximas três semanas, com as forças à direita se aglutinando em torno de Hernández.

O cenário prenuncia desafios para a governabilidade, qualquer que seja o vencedor do pleito.

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DE QUANDO AS OFENSAS LEVAM À RUÍNA POLÍTICA

Luiz Carlos Azedo, Nas entrelinhas, Correio Braziliense

No embalo das pesquisas e dando sequência à coluna de sexta-feira (Quando a fortuna governa a política, e a virtude, não), voltamos ao clássico dos clássicos da política, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, para falar do governo Bolsonaro e das próximas eleições. O astuto florentino foi associado ao vale tudo na política por uma frase que lhe é atribuída, mas que nunca dissera: “Os fins justificam os meios”. Essa interpretação errônea (ou de má-fé) é fruto do seu realismo, ao desvincular o Estado do Direito Divino.

É lugar comum o conselho atribuído a Maquiavel de que o mal deve ser feito de uma só vez. “Por isso, é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios. Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem sempre necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança diante das novas e contínuas injúrias”.

Arremata sabiamente: “Portanto, as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam mais bem apreciados. Acima de tudo, um príncipe deve viver com seus súditos de modo que nenhum acidente, bom ou mau, o faça variar. Porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não estarás em tempo de fazer o mal, e o bem que tu fizeres não te será útil — eis que, julgado forçado, não trará gratidão”.

O Príncipe era o livro de cabeceira de Napoleão Bonaparte, cujos comentários sobre a obra estão acessíveis em algumas boas edições. Não conheço político que não tenha a obra prima de Maquiavel. Bolsonaro e seu estado-maior, formado por generais de quatro estrelas, não devem ser exceções.

Entretanto, pode-se concluir que Bolsonaro está fazendo tudo errado. Governou o tempo todo contra a maioria da opinião pública e com ofensas ao Supremo Tribunal Federal (STF), além da imprensa e dos adversários. Agora, às vésperas das eleições, tenta oferecer benefícios de uma só vez, o que não está conseguindo, diante da conjuntura adversa. Nem mesmo para seus aliados mais orgânicos, como os caminhoneiros e os policiais, cujas demandas estão acima das possibilidades reais do governo.

Maquiavel dizia que “contra a inimizade do povo um príncipe jamais pode estar garantido, por serem muitos; dos grandes, porém, pode se assegurar porque são poucos”. As pesquisas eleitorais, porém, estão tendo um efeito corrosivo junto aos aliados políticos de Bolsonaro, porque sua vantagem estratégica no Brasil meridional, onde está a sua mais sólida base de sustentação, está sendo reduzida progressivamente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em contrapartida, a vantagem de Lula se ampliou tremendamente no Nordeste, o eixo geográfico da aliança de Bolsonaro com os caciques do Centrão, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mestres da baldeação política.

Governo civil

Essa desvantagem de Bolsonaro no Nordeste (17% contra 56% de intenções de votos a favor de Lula) se reproduz em outros segmentos importantes do eleitorado, segundo o Datafolha de quinta-feira passada: mulheres, 23% a 49%; jovens (16 a 24 anos), 21% a 58%; baixa renda (até dois salários mínimos), 20% a 56%; pretos, 23% a 57%; desempregados, 16% a 57%; beneficiários do Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família): 20% a 59%.

A situação somente se inverte entre evangélicos, onde a vantagem de Bolsonaro se reduziu a quase um empate técnico: 39% contra 36% de Lula. Mas se mantém bem dilatada entre os empresários, 56% a 23%, e os eleitores de renda acima de 10 salários mínimos, 42% a 31% contra Lula.

Na medida em que sua expectativa de poder se reduz, o sistema de alianças de Bolsonaro ameaça ruir: “O pior que pode um príncipe esperar do povo hostil é ser por ele abandonado. Mas dos poderosos inimigos não só deve temer ser abandonado, como também deve recear que os mesmos se lhe voltem contra, pois que, havendo neles mais visão e maior astúcia, contam sempre com tempo para salvar-se e procuram adquirir prestígio junto àquele que esperam venha a vencer”, ensina Maquiavel.

Bolsonaro não consegue domar a inflação. Como o cenário eleitoral permanece adverso, mantém sua rota de colisão com as urnas eletrônicas. Recrudesceu os ataques aos ministros Edson Fachin, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e Alessandro de Moraes, que o substituirá durante as eleições. Também faz ataques diretos ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaça não cumprir suas decisões, o que é uma quebra do juramento de posse na Presidência. Com isso, suas declarações reforçam as suspeitas de que prepara um golpe de estado para se manter no poder, caso perca as eleições. É um momento perigoso.

Ao falar dos governos civis, Maquiavel tratou do assunto: “Amiúde esses principados periclitam quando estão para passar da ordem civil para um governo absoluto (…), porque os cidadãos e os súditos, acostumados a receber as ordens dos magistrados, não estão, naquelas conjunturas, para obedecer às suas determinações, havendo sempre, ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas nas quais ele possa confiar”. Fica a dica.

Estarei de volta no primeiro domingo de julho.

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VIOLÊNCIA DAS CHACINAS É INEXPLICÁVEL

Artigo de Fernando Gabeira

O mês de maio é muito bonito no Rio. Desfruto as manhãs e, no restante do dia, mergulho nos livros. Ensaios, romances, biografias, tudo que consigo ler antes que o cansaço me derrube.

Férias.

Coincidência ou não, apesar da beleza dos dias de maio, preparava um texto sobre violência, das chacinas às agressões verbais de nossos tempos.

É mais fácil explicar por que o velho Santiago do livro de Ernest Hemingway pesca um imenso peixe e o perde no caminho da praia do que entender as razões do jovem Salvador  Ramos, que matou 19 crianças e duas professoras em Uvalde, no Texas.

Também é muito difícil entender por que uma operação de inteligência resulta na morte de 23 pessoas, na Vila Cruzeiro, no Rio.

Será que estamos falando da mesma palavra quando dizemos inteligência?

No fundo, é possível dizer que políticas públicas estão por trás dessas mortes: a que coloca nas mãos do jovem Salvador dois fuzis; ou a que antevê no fuzilamento em grande escala um trunfo eleitoral.

O que estava preparando para explicar não trata diretamente de massacres, mas sim das condições que tornaram nossas vidas tão expostas à violência.

Meus temas eram a polarização e a violência verbal. Baseado numa análise de Milan Kundera do romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann, achei que havia ali algo para compartilhar.

É um momento em que muitos se perguntam quando tudo começou. Foi com a internet, foram certas mudanças na própria estrutura da internet ou as revoltas ao longo do planeta, inclusive a de 2013 no Brasil?

Segundo Kundera, o romance de Thomas Mann, passado na véspera da Primeira Guerra Mundial, foi um terrível questionamento das ideias, um grande adeus à época que acreditou nas ideias e na sua faculdade de dirigir o mundo.

Dois importantes personagens do romance, um democrata e um autocrata, Settembrini e Naphta, são muito inteligentes, discutem intensamente suas ideias e, diante de seu pequeno auditório, extremam os argumentos, a tal ponto de não se saber mais quem reclama do progresso; quem, da tradição; quem, da razão; quem, do irracional.

Algumas páginas depois, já próximo à eclosão da guerra, os personagens sucumbem a irritações irracionais. Settembrini ofende Naphta, batem-se num duelo que acabará pelo suicídio de um deles.

Kundera afirma que o romance não mostra o irreconciliável antagonismo ideológico, mas uma agressividade extrarracional, “uma força obscura e inexplicada que impele os homens uns contra os outros, para a qual as ideias não passam de um guarda-chuva, de uma máscara e de um pretexto”.

Assim, o grande romance de ideias de Thomas Mann é uma espécie de despedida da esperança de que a discussão racional das ideias possa nos levar a bom termo. Havia certo pessimismo naquele momento em que a guerra se aproximava. Mas o que Thomas Mann queria dizer no princípio do século passado seria tão estranho assim aos nossos dias?

É possível dizer que a ampla discussão nas redes sociais passa ao largo dessas forças irracionais, é possível dizer que o confronto ideológico não é mais que um disfarce para o exercício do ódio?

Toda essa digressão não nos exime de criticar as políticas públicas que potencializam a violência: a liberação geral de armas, o estímulo ao fuzilamento de suspeitos. Talvez seja necessário ir mais longe em nossa reflexão. Se é verdade que o choque de ideias já revelava um fracasso na véspera da Primeira Guerra Mundial, aquelas forças destrutivas de qualquer consenso tornaram-se mais ativas.

Não é outro o objetivo das técnicas desenvolvidas na campanha de Trump e exportadas para a extrema direita do mundo, o uso do troll, descrito também como a quantidade de tempo usada para intervir numa conversa e dinamitar as possibilidades de diálogo.

Os tempos em que as ideias dirigiam o mundo já estavam em declínio. Imaginem agora, em que forças políticas se dedicam à lacração ou atuam apenas para impedir qualquer consenso: sobre a forma da Terra, o perigo de um vírus, a importância da vacina. O processo de autodestruição, tão nítido no meio ambiente, é também assustador na trajetória democrática.

Artigo publicado no jornal O Globo em 30/05/2022

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MORRE MILTON GONÇALVES

Luiz Antônio Costa, g1 Rio e TV Globo

Milton Gonçalves, ícone da TV brasileira, morre aos 88 anos

O ator e diretor Milton Gonçalves, ícone da TV brasileira, morreu no Rio nesta segunda-feira (30), aos 88 anos.

Conhecido por trabalhos marcantes em novelas como "O bem-amado" (1973) e as primeiras versões de "Pecado capital" (1975) e "Sinhá Moça" (1986), ele morreu em casa por volta de 12h30, segundo a família, por consequências de problemas de saúde decorrentes de um AVC sofrido em 2020. Na ocasião, o ator ficou três meses internado e precisou de aparelhos para respirar.

O velório acontecerá a partir das 9h30 desta terça-feira (31) no Theatro Municipal, no Centro do Rio. A cerimônia será aberta ao público. Às 13h, o corpo do ator segue para o Cemitério do Caju, onde será cremado.

Em mais de seis décadas de carreira, Milton Gonçalves também venceu preconceitos e lutou pelo reconhecimento do trabalho dos negros (leia mais abaixo). Ele integrou, junto com Célia Biar e Milton Carneiro, o primeiro elenco de atores da TV Globo, onde fez mais de 40 novelas.

Estrelou ainda programas humorísticos, minisséries e outras produções de sucesso, como as primeiras versões de "Irmãos Coragem" (1970), "A grande família" (1972) e "Escrava Isaura" (1976). Também se destacou em "Carga Pesada" (1979) e "Caso verdade" (1982-1986).

No ramake da novela "Sinhá Moça" (2006), repetiu o personagem Pai José que tinha feito na versão original e, desta vez, conseguiu indicação para o prêmio de melhor ator no Emmy Internacional. Na cerimônia, apresentou o prêmio de melhor programa infanto-juvenil ao lado da atriz americana Susan Sarandon. Foi o primeiro brasileiro a apresentar o evento.

Sua última novela foi "O tempo não para" (2018), no papel de Eliseu, um catador de materiais recicláveis. Depois, esteve na minissérie "Se eu fechar os olhos agora" (2019), inspirada na obra homônima de Edney Silvestre, e interpretou o aposentado Orlando, que com a ajuda da neta se tornava Papai Noel no especial de Natal "Juntos a magia acontece" (2019).

No cinema, Milton Gonçalves estrelou mais de 50 filmes, como "Cinco vezes favela" (1962), "Gimba, presidente dos Valentes" (1963), "A rainha Diaba" (1974), "O beijo da mulher aranha" (1985), "O Que é isso, companheiro?" (1997) e "Carandiru" (2003).

Em nota na qual classificou o ator como "ícone da dramaturgia brasileira", a TV Globo lembrou: "'Quem tem fé, voa', dizia Zelão das Asas, personagem eternizado por Milton Gonçalves em 'O bem-amado', de 1973. Em plena ditadura, o talento inconfundível de Milton encarnou a metáfora criada por Dias Gomes em um país que clamava por liberdade".

Viúvo, Milton Gonçalves deixa três filhos e dois netos.

Chegou à Globo em 1965

Nascido na pequena Monte Santo (MG), Milton Gonçalves mudou-se ainda criança com a família para São Paulo, onde foi aprendiz de sapateiro, de alfaiate e de gráfico. Fez teatro infantil e amador. Sua estreia profissional acorreu em 1957, no Teatro de Arena, na peça "Ratos e Homens", de John Steinbeck.

"Sofri todos os percalços entendendo, mas não concordando, com o preconceito racial, que foi um trauma na minha vida. Assim, o teatro para mim foi a grande salvação", afirmou em entrevista ao site Memória Globo.

Ele chegou à Globo a convite do ator e diretor Otávio Graça Mello, de quem fora companheiro de set no filme "Grande Sertão" (1965), dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira.

"Não tinha inaugurado nada ainda. Os três estúdios, aquele auditório, pareciam para mim os estúdios da Universal. O primeiro salário foi 500 cruzeiros. E eu fiquei feliz", recordou Milton em um depoimento à TV Globo.

No comunicado divulgado nesta segunda, a emissora cita: "Antes da fundação da Globo ele já era ator e não escondia o orgulho de seu crachá de número 141 na empresa".

Ao longo das décadas seguintes, deu vida a inúmeros personagens marcantes, como o Professor Leão, do infantil "Vila Sésamo" (1972); o médico Percival, de "Pecado capital" (1975); o Filé, da primeira versão de "Gabriela" (1975); e o promotor Lourival Prata, de "Roque Santeiro" (1985).

Trabalhou nas minisséries como "Tenda dos Milagres" (1985), "As noivas de Copacabana" (1992), "Agosto" (1993) e "Chiquinha Gonzaga" (1999).

Seu primeiro trabalho como diretor de TV foi na novela "Irmãos Coragem" (1970), de Janete Clair. Da mesma autora, dirigiu os primeiros capítulos os primeiros de "Selva de pedra" (1972).

Luta por bons papéis para negros

Filho de Milton Gonçalves, o também ator Maurício Gonçalves lembrou que o pai venceu preconceitos e lutou pelo reconhecimento do trabalho dos negros.

"Esse Milton que as pessoas não conhecem, batalhador. Nunca deixou cair a peteca no que tange aos filhos. O maior ensinamento meu pai me passou: ser guerreiro, nunca abaixar a cabeça a não ser para os sábios, mas lutar o tempo todo", afirmou.

Maurício disse que sempre teve o pai como herói. Quando criança, viu o personagem Zelão das Asas e ficou ainda mais impressionado.

"Ele sempre voou e gerou esses frutos. A gente tenta fazer o melhor possível, a gente tenta honrar essa memória do meu pai. A gente tenta fazer o melhor, mas é lutar para tentar chegar perto", descreveu.

Outro personagem marcante foi no longa "Rainha Diaba". Era a época da ditadura, nos anos 1970, Maurício diz que não deve ter sido fácil, para o pai, interpretar um fora da lei, negro e homossexual, num tempo difícil, cheio de preconceitos.

Política

O ator também teve importante militância política. Simpatizante do Partido Comunista Brasileiro na juventude, chegou a se candidatar ao governo do Rio de Janeiro em 1994, pelo PMDB.

Sua experiência no universo da política o ajudou a compor o personagem Romildo Rossi, um político corrupto, em "A Favorita" (2008), de João Emanuel Carneiro.

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HOJE A FESTA É NOSSA !

Em 30 de maio de 2005 estreava esse blog político Sou Chocolate e Não Desisto. Um dos primeiros blogs de política do país, atrás apenas do blog do jornalista Ricardo Noblat que teve suas atividades iniciadas em abril de 2004.

Com 6.210 dias no ar, mais de 34 milhões de visitas dos seis continentes, a cada dia o blog tem se destacado na blogosfera. Nesses 17 anos, o blog Sou Chocolate e Não Desisto participou de alguns prêmios, entre eles o TopBlog, a maior premiação voltada para a blogosfera brasileira.

Desde a criação do Prêmio TopBlog em 2009, o nosso blog tem ficado entre os 100 blogs (2009, 2010, e 2012) mais votados na categoria política/pessoal pelo júri popular. Em 2011, em segundo lugar pelo júri acadêmico.  Em 2013 ficamos em terceiro lugar pelo júri popular. Neste ano, ficamos entre os 100 blogs mais votados pelo júri popular.

É uma honra ter o reconhecimento desse  trabalho. A responsabilidade a cada dia aumenta. Obrigado a todos os leitores, amigos que nos fortalece a cada dia. Valeu, galera!

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GARGALO ECONÔMICO

Editorial Folha de S.Paulo

Entre os muitos fatores que contribuem para o mau desempenho de Jair Bolsonaro (PL) na mais recente pesquisa Datafolha, a situação da economia tem lugar de destaque.

Dois de cada três brasileiros aptos a votar consideram que o quadro econômico piorou nos últimos meses, mesmo resultado da pesquisa anterior, em março. Entretanto a parcela dos que consideram que sua situação pessoal teve deterioração subiu de 46% no levantamento de março para 52% agora.

Dado o quadro de inflação e desemprego elevados, sem grande perspectiva de melhora rápida, é ainda mais danoso para o presidente que 77% dos brasileiros declarem que a economia vai ter muita influência (53%) ou alguma influência (24%) em sua decisão de voto.

Embora 7 de cada 10 eleitores digam que não pretendem mais alterar seu voto se a economia piorar, a possibilidade de mudança é quase 10 pontos percentuais maior entre os eleitores de Bolsonaro (32%) do que entre os do petista Luiz Inácio Lula da Silva (23%).

A inflação se mantém em dois dígitos —nos 12 meses encerrados em abril, a alta do IPCA ficou em 12,13%, o maior patamar desde outubro de 2003. Tal dinâmica é sempre danosa para a aprovação de qualquer incumbente, mas o perfil da escalada de preços hoje é particularmente negativo.

Desde o ano passado são os itens de primeira necessidade, como alimentos, energia e combustíveis, que subiram mais, afetando em especial os estratos de baixa renda.

Em tal cenário, mesmo o efeito favorável da criação de empregos é enfraquecido. A taxa de desemprego marcou 11,1% no trimestre de janeiro a março, num recuo considerável ante os 14,9% de um ano antes. Os salários, porém, não conseguem acompanhar a inflação.

A renda média mostrou algum aumento no ano, de R$ 2.510 para R$ 2.548 mensais, em valores corrigidos. Entretanto o valor permanece muito abaixo dos R$ 2.928 do pico registrado no terceiro trimestre de 2020, quando os preços apresentavam maior estabilidade.

A julgar pelas projeções atuais para as principais variáveis econômicas nos próximos meses, dificilmente haverá algum grande alento para a candidatura de Bolsonaro.

A inflação tende a cair, mas seu impacto negativo no poder de compra da população não será superado rapidamente. Ademais, a alta dos juros do Banco Central tende a esfriar a atividade econômica de modo mais intenso doravante.

É o que explica a ânsia de Bolsonaro em baixar os preços de combustíveis e eletricidade, mesmo recorrendo a métodos que tendem a provocar problemas econômicos ainda mais graves no futuro.

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PRIMEIRO PASSO

Editorial Folha de S.Paulo

Algo como 2,9 milhões de pessoas adultas no Brasil se declaram homossexuais ou bissexuais, conforme o dado central de pesquisa realizada pela primeira vez pelo IBGE.

Trata-se de 1,8% da população brasileira acima de 18 anos de idade, em que 1,1% corresponde à parcela de homossexuais, e 0,7%, de bissexuais. Outros 2,3% preferiram não responder à pergunta, e 94,8% se disseram heterossexuais.

Nota-se que a idade dos respondentes influencia a autodeclaração sobre a orientação sexual, o que parece indicar uma diferença geracional relevante quanto ao tema. Na faixa entre 18 e 29 anos, 4,8% se declaram homossexuais ou bissexuais, e a proporção despenca para 0,2% entre os de 60 anos ou mais.

O percentual cresce conforme aumenta o rendimento domiciliar per capita e o grau de instrução.

A pesquisa do IBGE decerto pode ser aprimorada, mas constitui iniciativa importante. Levantamentos do gênero ainda são incipientes em grande parte do mundo.

Em 2020, o departamento de estatísticas da vizinha Colômbia publicou dados pela primeira vez sobre o tema, apontando que 1,2% da população entre 18 e 65 anos que vive em centros urbanos se identifica como homossexual ou bissexual e 0,05% como transgênero.

Neste ano a Argentina passou a incluir questões sobre diversidade, inclusive identidade de gênero, em seu censo nacional. No Canadá, o levantamento de 2021 revelou que 1 em cada 300 pessoas com idade de 15 ou mais se identificou como transgênero ou não binário.

A sondagem do IBGE foi realizada em uma amostra de 108 mil domicílios, como parte da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019. Uma das falhas apontadas por especialistas foi a não investigação da população transgênero.

Uma questão fundamental a considerar é como estabelecer um ambiente confortável para que os entrevistados falem sobre sexualidade. O percentual relativamente alto de pessoas que escolheram não responder chama a atenção.

O avanço no conhecimento do tema é importante para que se superem preconceitos e se possam formular políticas públicas para esse estrato da população. Até aqui, os progressos nesse sentido vieram de decisões do Judiciário.

Entre eles podem-se citar o reconhecimento das uniões homoafetivas, de 2011, a autorização para que pessoas trans possam alterar seu nome no registro civil sem necessidade de cirurgia, de 2018, e o enquadramento da homofobia entre os crimes de racismo, de 2019.

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domingo, 29 de maio de 2022

O BRASIL NO PESADELO DE ALICE

Weiller Diniz, OS DIVERGENTES

Com o título original “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, a instigante obra publicada em 1865 por Lewis Carroll – pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson – alcançou um merecido reconhecimento mundial. A leitura proporciona múltiplas interpretações e analogias infindáveis. Os diálogos são intrigantes e as reflexões complexas. A singularidade da obra – pretensamente infantil – resistiu à ação corrosiva do tempo e ainda hoje ganha adaptações, reedições e leitores de todas as idades. Na essência o livro aborda a naturalização do absurdo, as crises de identidade, a tirania monárquica, os desvarios dos personagens, as falsidades, a desordem, as armadilhas ensejadas pelo desejo irrefletido do novo, o valor do tempo e, principalmente, as consequências de julgamentos injustos. No estranho mundo onírico de Alice, animalizado por sapos, porcos e ratos falantes, estão todos os componentes da literatura disruptiva brasileira atual: bizarrices, autoritarismo, crises de identidade, caos, diversionismos, mentiras, irracionalidade, a loucura, a estupidez, o terror, a insegurança e manipulações judiciais.

O enredo surreal banalizando a lógica do absurdo é inaugurado quando Alice, atraída – ou traída – por uma imprudência irrefletida, fruto da curiosidade infantil, mergulha em uma toca perseguindo o coelho branco do relógio sem pesar as consequências ou se será possível reverter o caminho escolhido. O sonho que se transformou em pesadelo. A invocada racionalidade de Alice se torna presa fácil para o apelo do novo e do desconhecido. O insólito coelho, reluzindo a falsa novidade, é a alegoria da passagem inevitável do tempo, de seu caráter fluído, inapreensível e não reembolsável. Ao entrar na toca, Alice cai em um buraco escuro e sofre uma queda prolongada até atingir as profundezas de um mundo bizarro que a desconecta da realidade.

Nesse fosso caótico, Alice flutua em dois mundos antagônicos e se bate em dicotomias: a mentira, a verdade, a transgressão e as normas, o absurdo e a racionalidade, a loucura e a sanidade, a morte e a vida, a insegurança e a previsibilidade, o caos e a ordem, os surtos e o equilíbrio, as bizarrices e a normalidade, a anarquia e a lógica, o terror e a estabilidade, o grotesco e a padronização, o ódio e a tolerância, a negação e a realidade e a tirania e a democracia.

O distorcido universo do subterrâneo de Alice foi o caminho escolhido por perto de 39% dos brasileiros, contaminados por uma síndrome de Alice inconsequente. Eles nos mergulharam em uma toca sombria em 2018 e condenaram o Brasil a um vertiginoso retrocesso à idade média. O tempo desperdiçado na aventura inconsequente não será reposto jamais. A novidade Jair Bolsonaro traiu seus seguidores, suas Alices choram, mas as vidas que perdemos, a economia que implodiu, os empregos fechados, o tempo desperdiçado são irrecuperáveis. O apelo simplista da mudança, a sedução pelo novo, a ilusória esperança no desconhecido, de mudar por mudar ou por inquietação, conduzidas pelo terror da desorientação sempre nos legarão desassossegos, ameaças graves e desintegrações profundas.

Agora estamos muito mais “atrasados”, como repete o roedor branco, objeto da curiosidade de Alice. Da cartola bolorenta do chapeleiro maluco Jair Bolsonaro saíram as mortes, o mal, a miséria, as milícias, os maus militares, as malversações, o medo e as mamatas. São 3 anos asfixiando em um buraco sombrio, distorcido, destrutivo, absurdo e animalizado pelos cavernícolas que povoam o bolsonarismo. Nesse mundo disparatado, o “país das maravilhas” deve ser visto como o gênero do esdrúxulo, assombroso, jamais na acepção de admirável.

Para se adaptar ao ambiente inóspito e esquisito, Alice ingere um líquido para diminuir de tamanho, mesmo processo de encolhimento generalizado do Brasil após escolher se atirar na toca fascista de Bolsonaro. Em suas vertigens, Alice desanda a falar coisas desconexas e, temendo estar perdendo a sanidade, chora copiosamente e quase se afoga nas próprias lágrimas geradas por uma escolha errada, uma aventura impensada. Sufocada pela estranheza incômoda da nova atmosfera, o desconforto com personagens destrambelhados e caóticos, Alice mergulha em outra toca, a da confusão mental, e se põe a questionar a própria identidade e já quase não se reconhece. É confundida pelos personagens do livro com a empregada Mary Ann e até com uma serpente. “Por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e dirigiu-se a Alice com voz lânguida e sonolenta: “Quem é você?” Alice respondeu muito tímida: “Eu… já nem sei, minha senhora, nesse momento… Bem, eu sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que mudei tantas vezes desde então…” A lagarta, cuja essência é a metamorfose, arrisca que ela acabará se acostumando. Na ficção de Caroll, uma das leituras deste episódio é a transição de Alice da fase infantil para puberdade. Na tormenta brasileira, o buraco fascista e a ignorância oficial representaram a involução, a diminuição da estatura brasileira na geopolítica mundial, a desconexão da realidade e o embaçamento da identidade nacional.

A reflexão de Alice reproduz a crise de identidade que fustiga o Brasil após o “chá de loucos”, realizado diariamente na farra despudorada da estupidez no centro do poder. São cada vez mais assíduos e procedentes os questionamentos sobre a fragmentação da identidade brasileira e o esfarelamento antropológico. A partir de uma literatura da intolerância, do ódio, da má-fé, de realidades paralelas, da tirania e das mentiras – replicadas pela maior caixa de ressonância dos sistemas presidencialistas – foram sendo pulverizados os atributos positivos dos brasileiros reconhecidos mundialmente: a boa índole, a harmonia, a mistura humanizada, a identidade social miscigenada, a interação generosa, a diversidade acolhedora e amistosa, a graça, a capacidade criativa e a cordialidade. O buraco pantanoso do bolsonarismo se incumbe de enterrar essas virtudes diariamente para substituí-las por um país habitado por criaturas rústicas e bestializadas que, literalmente, colocaram Brasil de “cabeça para baixo”, como no mundo incompreensível e caótico de Alice.

Nossos “desaniversários” são melancólicos, com as janelas fechadas para o mundo, atolados na ignorância, no desprezo, no isolamento subterrâneo e no sadismo. O absurdo, rotineiro e desproporcional, não choca mais de tanto ser reiterado. Todos vão dessensibilizando, se habituando à normalização da esquizofrenia, da insanidade e da homogeneização do mal. O desvario virou um comando único, rotineiro, inercial, de quem pretende nos condenar à morte e deseja que ela seja silenciosa e consentida. Tornar-se medíocre passou a ser moralmente tolerável e a convivência com a estupidez, obrigatória. Houve um rebaixamento generalizado de expectativas e exaltação da desesperança através de maniqueísmos redutores. Nesse buraco humanitário os obscurantistas se sentem em casa, intimamente confortáveis em suas tocas escuras ecoando suas demências. O país se tornou estranho, sombrio, imoral, fantasmagórico, colérico, surreal, crepuscular e hostil. Somos uma Nação-buraco soterrada por ruínas civilizatórias, subterrâneos socioeconômicos e escombros da loucura. “Mas eu não quero me encontrar com gente louca”, observou Alice. “Oh, não se pode evitar”, disse o Gato, “todos são loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.” “Como sabe que eu sou louca?” indagou Alice. “Você deve ser”, respondeu o Gato, “ou então não teria vindo aqui.”

Alegoria máxima da insanidade e do absurdo encontra-se no julgamento do Valete de Copas e no mandamento despótico da Rainha de Copas na perseguição habitual e única aos adversários que ousam enfrentá-la: “Cortem-lhe a cabeça”, uma metáfora da eliminação autoritária das ideais e ideologias divergentes. Equivale a “minha especialidade é matar” de Bolsonaro. A trama e os personagens guardam uma desconfortante similitude com o pesadelo brasileiro. O julgamento do Valete de Copas é precedido por uma estridência de elevados decibéis, correrias, exatamente como na publicidade opressiva, nos vazamentos seletivos e conduções coercitivas abusivas patrocinadas pela 13 Vara de Curitiba. O ex-juiz Sérgio Moro é o espelho arquetípico do Rei de Copas que, mesmo envergando a peruca branca dos juízes, responsável pela observância dos preceitos legais, é o símbolo da tibieza, da manipulação, da subserviência, da transgressão e da mediocridade. O método, tanto no País das Maravilhas quanto na nossa barbárie, é a fixação antecipada da sentença e a condenação, mesmo sem provas. Nas masmorras da esdrúxula torre de Curitiba os capítulos das decapitações ilegais foram escritos a muitas mãos. Várias cabeças de inocentes rolaram em nome de uma fábula política estapafúrdia, rabiscada pelo Rei de Copas e alguns valetes de naipes fascistas do Ministério Público.

O Coelho Branco, condutor fantástico que transita temeroso entre os dois mundos, lê a acusação. O Valete de Copas era, fraudulentamente, acusado de roubar as tortas da Rainha colérica. As testemunhas convocadas parecem escolhidas fortuitamente para condenar, já que não sabem nada sobre a situação. Alice, que no começo mostrava-se animada para assistir a um julgamento, fica cada vez mais irritada com todos os absurdos que presencia. Fica ainda mais revoltada quando descobre que a falsa prova que existe contra o Valete é um bilhete sem a sua caligrafia nem assinatura. Durante todo o julgamento, Alice não se intimida com a histeria autoritária da Rainha e passa a defender o Valete de Copas contra as falsas imputações. Estimulados pela atitude de Alice as cartas se rebelam e inicia-se a batalha das cartas. O episódio é uma sátira ao sistema judicial, revelando a injustiça, a miséria e o absurdo dos processos judiciais. No pesadelo brasileiro, o Rei de Copas – Sérgio Moro – já foi declarado incompetente e parcial pelo STF. Ele rasteja em popularidade, que supunha ser superior à da Rainha. A tocaia jurídica contra o ex-presidente Lula expôs uma caudalosidade de absurdos, mostrando tratar-se de um jogo de cartas marcadas, com propósitos políticos para decapitar o favorito das eleições e passar o cetro e o trono para Rainha de Copas do fascismo.

A Rainha de Copas é a autoridade máxima daquele território assombroso, aterrorizando todos os personagens e forçando-os a obedecer a suas ordens desarrazoadas e satisfazer os seus caprichos autocráticos. Além de encarnar a iniquidade de um sistema com pendores monárquicos, ilustra o autoritarismo e o abuso de poder dos tiranetes. Chamada de “velha tirana” por Alice, a Rainha é a caricatura do terror imperial, caprichosa, egocêntrica, absolutista, eruptiva, impulsiva e aterrorizante. De pavio curto e deformada, governava através do medo, guiada por uma fúria cega, por gritos, ameaças e sempre bajulada por súditos acríticos. Suas sentenças monotemáticas de degola eram genéricas e arbitrárias. Todos os atributos de Jair Bolsonaro: autoritário, colérico, belicoso, genocida, despreparado e bravateiro que comanda um universo grotesco de súditos bestializados, assassinos, corruptos e milicianos que só atormentam o país.

Na bizarrice monárquica, assim que é ordenada a decretação da sentença do Valete de Copas antes mesmo do veredito dos jurados, Alice desafia a Rainha, mostrando que perdera o medo. Vai além, expondo o absurdo e a loucura de toda a situação: “Vocês não passam de um maço de cartas!”. Quando finalmente assume a coragem de confrontar aqueles que a atacavam, afirmando a sua força e determinação, Alice acorda e percebe que tudo foi um sonho, uma agonia aterrorizante. No pesadelo brasileiro as cartas da estranheza já estão com data de validade vencida, marcadas e amarfanhadas. Se prestaram a todo tipo de truques, ilusionismo, malversações, mortes, mentiras e surrupios. No apagar das luzes desse buraco civilizatório, muito nos foi subtraído, sobretudo vidas, esperanças e dias perdidos. Os mágicos desse pesadelo transformaram a diversão em trapaça, a magia em fraude e o entretenimento em tormenta golpista.

Uma das passagens mais emblemáticas no suplício de Alice, que nos é assustadoramente íntimo, é retratada no diálogo com gato risonho, símbolo de independência e da mudança. “Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?” “Depende muito de onde você quer chegar”, disse o Gato. “Não me importa muito onde…” foi dizendo Alice. “Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá”, disse o Gato. “…Desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice, explicando. “Oh, esteja certa de que isso ocorrerá…Alice não disse nada: sentou-se com a cabeça entre as mãos, indagando a si mesma se alguma vez as coisas voltariam a ser como antes”. Em outubro os brasileiros irão embaralhar e distribuir as cartas para decidir se permanecem nesse buraco fantasmagórico e asfixiante ou despertam do pesadelo através do voto consciente, realista e democrático para tudo voltar a ser como antes.

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TANCREDO NEVES: O SEGREDO

José Sarney, OS DIVERGENTES

Fez parte das articulações para conter as resistências, na área militar, à candidatura de Tancredo Neves, um encontro dele com o então Ministro do Exército, General Walter Pires.

Ficou encarregado de fazer esse contato e articular a reunião o Secretário da Receita Federal, Francisco Dornelles — depois ministro, senador, governador —, que tinha boas relações com o general. Foi tudo organizado em sigilo absoluto, de forma que ninguém jamais soubesse desse encontro, que não teria boa repercussão em nossas hostes.

Feito o agendamento, Tancredo foi visitar o General Walter Pires em sua residência. Quando desceu do apartamento do general, Tancredo viu que um número considerável de jornalistas o aguardava embaixo do prédio, indicando que haviam descoberto aquele encontro e até a hora da visita de Tancredo.

Ao sair do elevador, um jornalista perguntou a Tancredo: “Dr. Tancredo, como foi a conversa com o General Walter Pires?”

Tancredo respondeu-lhe, sem vacilar: “Ele mora aqui?”

Dito isso foi saindo, e todo mundo começou a gargalhar e louvar a agilidade mental do nosso candidato.

Tancredo Neves contou essa história na casa do Ulysses, em minha presença e na de Zé Aparecido, Aluízio Alves, Renato Archer e Dona Mora. Quando ele acabou de contar a façanha, Dona Mora argumentou: “Mas, Dr. Tancredo? Se o Aluízio e o Aparecido sabiam dessa visita, o senhor achava que a imprensa também não iria saber? Lembre-se da lei do Golbery: ‘Segredo só não conta quem não sabe!’”

Em outro dia, Tancredo, numa tarde em sua casa, com Thales Ramalho, Affonso Camargo e Aecinho, perguntou: “Vocês, que são muito sabidos, digam: quem será o meu Chefe da Casa Civil?”

Thales Ramalho respondeu-lhe: “José Hugo Castelo Branco.”

Aí Tancredo exclamou: “Antônia me traiu!”

E Thales explicou: “Não, Tancredo, quem, como eu, o conhece sabe que deve ser escolhido um homem habilidoso, que também o conheça e a Minas Gerais, que tenha boas relações com sua família, além de ser do seu jeito. Já que somos os sabidos, a minha sabedoria me diz que vai ser o Zé Hugo. Não culpe a Antônia disso não.”

Por outro lado, o Affonso Camargo, que tinha tido uma atuação proeminente em favor de Tancredo dentro do PMDB, também desejava ser o Chefe da Casa Civil. Desconfiando de que o Tancredo já o tinha escolhido para Ministro dos Transportes e querendo reverter a situação, disse a Tancredo: “Tancredo, eu só não quero o Ministério dos Transportes.”

Achava que, com isso, levaria Tancredo a escolhê-lo para a Casa Civil. Mas Tancredo disse-lhe: “Não, tenho uma missão especial nessa área de transporte e só tem um homem capaz de assumir essa responsabilidade: você! Você será o Ministro dos Transportes.”

O Affonso Camargo ficou meio murcho, mas sentiu que Tancredo já tinha feito o que planejara: escolhera o Zé Hugo para a Casa Civil.

Havia também uma grande pressão para o Ministério do Interior. O pessoal do Nordeste, comandado pelo grupo pernambucano, queria indicar o ministro. Mas havia uma reação do Ulysses e de grande parte do Grupo Autêntico do PMDB.

Quando a confusão se estabeleceu e Ulysses levou a Tancredo o nível da divergência, Tancredo respondeu-lhe: “Ulysses, enquanto vocês discutem, eu ponho o Ronaldo Costa Couto lá… até vocês se entenderem.”

José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado, escritor da Academia Brasileira de Letras

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ACIDENTE FATAL

Alba Valéria Mendonça, Karol Caparelli e Guilherme Santos, g1 Rio e TV Globo

Ex-assessor que denunciou vereador Gabriel Monteiro morre em acidente em Teresópolis, na Região Serrana

O ex-assessor Vinícius Hayden Witeze, que denunciou o vereador Gabriel Monteiro pela prática de assédio moral e sexual, morreu na noite de sábado (28), num acidente de trânsito em Teresópolis, na Região Serrana.

Segundo informações da polícia, o carro de Hayden capotou na RJ-130, que liga a cidade de Teresópolis a Nova Friburgo, e ele morreu na hora. A mulher que estava com ele - e que ainda não foi identificada - foi levada para o Hospital das Clínicas de Teresópolis.

De acordo com o registro feito na 110ª DP (Teresópolis), no interior do carro de Hayden foram encontradas cópias do termo de declaração de dele em ocorrência envolvendo o vereador do Gabriel Monteiro. Foi feita uma perícia no local do acidente.

A mulher que acompanhava o ex-assssor afirma que Vinicius perdeu a direção na curva ao frear, o que causou o capotamento do veículo. A polícia vai apurar se ele estava em alta velocidade. A passageira descartou em termo de declarações a alta velocidade do veículo - o que foi uma interpretação inicial de equipes que estiveram no local.

Ela disse, em depoimento, que o veículo apresentava problemas relativo a gasolina de baixa qualidade e vinha devagar. Também mencionou desconhecimento de rodovia, escuridão e sinalização precária.

A vítima sobrevivente já foi ouvida informalmente e recebeu alta. Ela ficou de formalizar as informações, ainda neste domingo, na 110ª DP (Teresópolis), segundo a polícia.

Vinícius foi multado ainda no sábado (28), pela manhã, por ter sido pego dirigindo com carteira vencida.

Por requisição do delegado titular da 110ª DP, foi designada pelo diretor do Departamento-Geral de Polícia Técnico-Científica uma equipe do Instituto de Criminalística Carlos Éboli para em conjunto com peritos do PRPTC de Teresópolis realizarem uma perícia que constate eventual adulteração na parte mecânica, elétrica ou do sistema de alimentação de combustível que pudesse contribuir para a ocorrência do acidente.

Depoimento de colete à prova de balas

Na quarta-feira (25), Hayden prestou depoimento contra o vereador no Conselho de Ética da Câmara do Rio. Ele chegou de colete à prova de balas e disse que estava andando com escolta e sofrendo ameaças, tinha perdido o direito de ir e vir e não conseguia mais nem visitar a filha.

Na ocasião, ele não quis dar entrevistas, mas gravou um vídeo dizendo que também está recebendo ameaças.

"Perdi a minha liberdade. Tenho que andar de carro blindado, colete à prova de balas. Tenho que cercear o meu direito de ir e vir, de sair a hora que eu quero porque o vereador gravou vídeos expondo o meu número pessoal, me colocando como se fosse uma pessoa que tivesse negociado com uma pseudo máfia do reboque, que ele vive falando que é tudo a máfia do reboque dele", disse Hayden no vídeo.

"Então, é basicamente isso: ele conseguiu hoje me prejudicar de uma forma que eu não consigo nem visitar a minha filha", completou.

Neste domingo, Gabriel Monteiro se pronunciou sobre a morte do ex-assessor. Ele lamentou o acidente e disse que "jamais torceria por esse fim", mas lembrou acusações que fez sobre Vinicius.

O vereador responde a um processo disciplinar na Câmara, que pode levar à cassação de seu mandato.

As denúncias contra Gabriel envolvem acusações de estupro, assédio sexual e vídeos forjados para a internet.

Em seu depoimento à polícia, Vinícius Hayden disse que Gabriel não ligava para a política e que seu foco principal era a produção de vídeos para ganhar dinheiro na internet. O ex-assessor também contou que o vereador sabia que a menina que aparece em um vídeo fazendo sexo com ele era menor de idade.

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O BRASIL NA CÂMARA DE GÁS

Cristina Serra, Folha de S.Paulo

Na cidadezinha do Nordeste, Genivaldo de Jesus Santos é assassinado no porta-malas da viatura transformada em câmara de gás. Um dos assassinos lança o veneno sobre Genivaldo como quem aplica inseticida para eliminar uma barata.

Genivaldo grita e se debate em desespero. Suas pernas pedem socorro. Genivaldo pede socorro. Mas não será ouvido. Vai desmaiar e morrer nos próximos minutos o cidadão de Umbaúba, Sergipe. Brasil. Os agentes da Polícia Rodoviária Federal não fizeram uma "abordagem policial". Cometeram um crime, sem dar chance de defesa à vítima. Homicídio qualificado, segundo o Código Penal.

Também está errado referir-se à chacina na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, como "operação de inteligência". Não podemos repetir essa ignomínia e, muito menos, aceitá-la, sob pena de nos tornarmos cúmplices. Nossa indignação tem que dar às coisas os nomes que elas têm: carnificina, mortandade, matança, morticínio, assassinato em massa. Quais os crimes atribuídos aos mortos? Sua culpa, sua máxima culpa, foi terem nascido pretos e pobres.

O governador Cláudio Castro e as autoridades de (in)segurança têm que responder por essas execuções. Sem qualquer freio ou controle, excitada pelo frenesi de violência do bolsonarismo, a polícia do Rio age sem se distinguir de esquadrões da morte ou grupos de extermínio.

O massacre foi planejado para deixar rastros de sangue e terror, intimidar e imobilizar a sociedade e as instituições. Na chacina da Vila Cruzeiro, como na do Jacarezinho, um ano atrás, os comandos policiais desafiaram explicitamente a ordem do STF de só fazer incursões nas favelas em situações excepcionais.

Nesta semana funesta, não pode passar em branco a hostilidade de empresários do Rio Grande do Sul que levou ao cancelamento da viagem do presidente do STF, Luiz Fux, para evento no estado, por questão de "segurança". O bolsonarismo arreganha os dentes e prenuncia a radicalização extremista do período eleitoral.

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sábado, 28 de maio de 2022

TAPEAÇÃO DE BOLSONARO DÁ SINAIS DE ESGOTAMENTO COM ESTRESSE DE TRUQUES E FARSAS

Janio de Freitas, Folha de S.Paulo

O impacto sísmico do recente Datafolha eleitoral deveu-se, além dos números em si, à contradição neles implícita com quase todas as outras pesquisas das últimas semanas.

A simplicidade aparente das divergências percentuais aumenta, porém, os problemas para o eleitorado orientar-se, para a contenção do golpismo e ainda para o acompanhamento, pela Justiça Eleitoral, dos procedimentos de pesquisa.

Os 56% do eleitorado conscientes da ação antidemocrática de Bolsonaro são um alento.

Em proporção aos respectivos totais, esse segmento é muito maior do que a parcela dos que se contrapõem de fato, no alto dos Três Poderes, ao golpismo projetado pela Presidência da República sobre o país e, em especial, sobre as Forças Armadas.

O caminho legal afunila-se para a recandidatura de Bolsonaro. Suas possibilidades de uso eleitoral das verbas e concessões são imensas, mas levariam a efeitos econômicos e políticos condenatórios do candidato.

Não há o que apresente como realizações de governo no interesse da população. Muito ao contrário, a fome que se alastra, o encarecimento do custo de vida, o desemprego, a violência e a insegurança são forças eleitorais que Bolsonaro não pode encarar.

Resta-lhe, na senda legal, a agitação impune.

A crise de direção da Petrobras, por exemplo, não é por aturdimento ante a alta dos combustíveis. É proposital.

Para que Bolsonaro urre em acusação a hipotéticas resistências a seu ataque aos preços. Agora é nomeado para a empresa um já indicado lá atrás, no primeiro passo da crise, e barrado por lhe faltar experiência na área, exigida em lei.

Volta ao palco porque é certa a sua rejeição pelo Judiciário, e Bolsonaro terá mais o que urrar. A tapeação, no entanto, dá sinais de esgotamento, em meio ao crescente estresse público com truques e farsas.

Dado o potencial de Lula até para se eleger já no primeiro turno, como indica o Datafolha, a natureza de Bolsonaro só pode acirrar sua desinteligência golpista.

Pelo mesmo motivo, os generais que o veneram estarão a seu lado. Importa saber que presença têm, nesse bloco, os da ativa. E que domínio têm dos seus compartimentos, porque a história nega sua presumida carta branca. Equação em que entram os 56% antigolpistas constatados pelo Datafolha.

Esse e outros números da mesma pesquisa conflitam com o noticiado nas últimas semanas.

A proliferação recente de organizações de sondagem eleitoral, atraídas pela dinheirama do Tesouro Nacional dada aos partidos e candidatos, tanto traz competição saudável quanto implica riscos de manipulação eleitoral. Estamos no Brasil.

Várias pesquisas vinham indicando pequenas e sucessivas quedas de Lula, com Bolsonaro em movimento positivo. A persistência da queda desorientou o PT e o comentarismo político na busca de explicação.

Uma das culpas imaginadas foi a soma de espontaneidade e franqueza dos improvisos de Lula, a ponto de chegarem no PT ao ridículo de fazê-lo discursar de papel na mão, por leitura de texto alheio.

A mesma interpretação obtusa das tais quedas sujeitou o PT à orientação, cúmulo inesquecível, do Paulinho da Força desejoso de ver Lula falando como alguém do PSDB ou MDB, insincero e bajulador da "elite".

À falta de Leonel Brizola e Jânio Quadros, grandes improvisadores políticos, não pode ser esquecido também o talento oratório que foi, e é, o caminhão do pau-de-arara e a ferramenta do metalúrgico Lula para derrotar preconceitos e as artimanhas de domínio social e político.

As falas de Lula não foram a causa das quedas seguidas em várias pesquisas, nem se sabe quais foram.

Certo é que a alegada diferença de métodos nada explica: se há diferentes percepções da realidade pesquisada, há pesquisa certa ou menos errada. E as demais se dividem entre métodos errados, ou mal aplicados, e trapaças.

A repercussão do último Datafolha foi fruto da combinação de números e do histórico de seriedade que construiu. Em caso de dúvida, possível e respeitável, sobre o lado certo nas pesquisas divergentes, o que resta é aguardar as próximas. Atitude que a agitação bolsonarista não terá.

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SELVAGERIA INSTITUCIONAL

Editorial O Estado de S.Paulo

“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, disse Joaquim Nabuco. Parafraseando-o, pode-se dizer que os porões da ditadura permanecerão por muito tempo como um traço persistente de parte do aparato de segurança do Estado brasileiro. Muito além da selvageria de três policiais, gravada em chocantes imagens que rodaram o mundo, o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos em uma câmara de gás improvisada em uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Sergipe expõe a conivência de estruturas de poder, até o seu topo, com o desprezo pela lei e pela humanidade.

Já imobilizado – depois de, segundo os policiais, ter reagido agressivamente à abordagem –, Santos, que estava desarmado, foi jogado na parte de trás da viatura e asfixiado com gás lacrimogêneo. 

O episódio em si já é suficientemente revoltante, mas a reação da PRF conseguiu ser ainda pior. Em lugar de reconhecer a barbárie registrada em incontestáveis imagens e de pedir desculpas à família da vítima e ao País, a autoridade policial entendeu que era o caso de justificar a ação de seus agentes. Num misto de crueldade e escárnio, a PRF declarou, em nota oficial, que “foram empregadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo”.

A menos que o superintendente da PRF aponte em que seção dos manuais da corporação constam essas “técnicas” desumanas, ele deve ser imediatamente afastado. Os policiais “transformaram um instrumento de contenção em área aberta (gás lacrimogêneo) em uma prática que pode ser classificada como tortura, porque (Santos) já estava contido”, disse ao Estadão Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nem era preciso a opinião de um especialista. As imagens falam por si.

Santos não oferecia nenhum risco real aos policiais. Ademais, sofria de transtorno mental e tentou dizer isso aos policiais, mas foi ignorado. No entanto, mesmo que fosse um perigoso criminoso a ameaçar a integridade dos agentes, Santos não poderia ter sido tratado daquela maneira. O Estado não pode simplesmente assassinar suspeitos desarmados e rendidos; sua tarefa é prendê-los e levá-los a julgamento. É isso o que diz a lei.

Essa mesma lei havia sido ignorada no dia anterior, quando uma operação policial na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, deixou 25 mortos – nenhum deles da polícia. Mesmo que todos fossem bandidos – o que, já se sabe, não era o caso –, o morticínio já seria, por si só, evidência de que a operação foi malsucedida.

Mas esse caso do Rio, como o de Sergipe, confirma que o valor da vida caiu drasticamente com o triunfo da necropolítica bolsonarista. O presidente Jair Bolsonaro tratou logo de congratular os “guerreiros” da polícia por sua ação na Vila Cruzeiro. Das 197 palavras de sua mensagem radiante no Twitter, dedicou apenas quatro à família da mulher morta por um tiro de fuzil dentro de casa. Como não há imagens dessa ação, será a palavra da corporação policial contra a dos poucos cidadãos comuns que ousarem questionar os procedimentos da polícia.

Ou seja, não fosse pelas imagens registradas pela população local, o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos já teria se dissolvido nas estatísticas como mais uma morte em “confronto”. Não é à toa que bolsonaristas defendem o fim das câmeras nos uniformes policiais, como as adotadas em São Paulo, pois esse equipamento obriga a polícia a agir dentro da lei. Sem elas, os cidadãos ficam à mercê do arbítrio de policiais nem sempre comprometidos com padrões mínimos de civilidade.

“Existem dois currículos nas forças de segurança”, disse à Rádio Eldorado Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da PM de São Paulo. “Um, oficial, escrito pelas normas (...) que tutelam os direitos humanos, as garantias constitucionais e a preservação da vida. E existe um outro ‘currículo oculto’ e cultural, que é o que existe no dia a dia, que ensina aos alunos a promover a segurança pública dentro de uma lógica de eliminação do inimigo.” É preciso impedir, de uma vez por todas, que esse estímulo à barbárie, exatamente como nos piores momentos da ditadura militar, continue a animar o guarda da esquina. 

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CONFUSÃO PARA NADA

Editorial Folha de S.Paulo

A agitação golpista promovida pelo presidente da República produz efeito deletério sobre sua imagem pública. Não foi a primeira vez que o Datafolha detectou coincidência entre um surto de arruaça, de um lado, e a impopularidade elevada de Jair Bolsonaro (PL), do outro.

O auge da avaliação ruim ou péssima da administração federal (53%) foi registrado nas pesquisas de setembro e dezembro de 2021, posteriores à epifania subversiva do Dia da Independência.

À relativa trégua do mandatário se seguiu um princípio de recuperação —apurado na pesquisa de março, quando a reprovação baixou para 46%—, abortado agora (48%), após nova investida contra as instituições da democracia.

As imprecações obstinadas de Bolsonaro contra a votação eletrônica mostraram-se igualmente inúteis para desmobilizar a vasta maioria de brasileiros que afirma confiar nas urnas. Ela caiu de 82% para 73% de março para cá, basicamente pela dúvida incutida na própria base bolsonarista, que ainda assim mais confia (58%) que não confia (40%) no sistema.

Pregar para convertidos em tema de insubordinação aos cânones democráticos afugenta do apoio ao presidente largos contingentes do eleitorado nacional. A rejeição maciça a Bolsonaro por seu turno se reflete em sua larga desvantagem na corrida para a reeleição, o que torna ainda mais postiças e débeis a gritaria sobre fraudes e as insinuações sobre viradas de mesa.

É a economia, no fim das contas, que vai minando a viabilidade da administração Jair Bolsonaro. Se a algazarra golpista se destina a despistar a atenção do público desse terreno minado para o situacionismo, também falha no objetivo.

A aceleração inflacionária deflagrada pela guerra no leste da Europa, novo choque externo a abater-se sobre o Brasil, escancarou —como havia feito a pandemia de coronavírus— a profunda incompetência da equipe ministerial e do presidente da República em especial.

Os cabeceios populistas contra a Petrobras e governadores de estado são sintomas dessa deficiência insanável de capacidade técnica e política para organizar uma saída crível que mitigue os efeitos da carestia sobre a metade mais pobre da população, justamente a que rejeita Bolsonaro em altíssimo grau.

Mas para isso seria necessário um presidente capaz e que trabalhasse de sol a sol —este não desperdiça oportunidade de passear de motocicleta e gozar folgas douradas no litoral à custa do contribuinte.

O golpismo e a agitação fácil também tecem uma manta conveniente para quem não se estabelece pelos próprios méritos. O que as pesquisas de opinião estão mostrando objetivamente é que nada disso funciona. É confusão para nada.

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AMAZÔNIA E ELEIÇÕES

Izabella Teixeira, Roberto Waack, Renata Piazzon e Lívia Pagotto, O Estado de S.Paulo

Neste ano, quando o Brasil reafirma seu compromisso democrático, a iniciativa Uma Concertação pela Amazônia definiu uma missão: construir, ao longo do ano, com toda a sua rede de organizações e de iniciativas parceiras, propostas de desenvolvimento sustentável para a região amazônica que possam ser adotadas nos primeiros cem dias de governo pelo Executivo federal, o subnacional e pelo Congresso Nacional.

Criada em 2020, a Concertação pela Amazônia reúne atores dos mais diversos setores – público, privado, academia, imprensa e sociedade civil – na busca de alternativas para a região. Para a rede, pensar a Amazônia vai além de resolver questões locais, mas é a possibilidade de criar um caminho de desenvolvimento para o Brasil e, também, para o mundo.

Hoje, o necessário e urgente combate ao desmatamento é protagonista do debate, mas não pode encerrar uma abordagem para a Amazônia. Não dá para falar de desmatamento sem falar de desenvolvimento. E isso significa ter um olhar sistêmico para o território, capaz de conectar as diferentes agendas sociais e ambientais relevantes para a população local. Para combater o desmatamento, portanto, é preciso pensar em ações estruturantes nos campos da educação, da saúde, da economia, da cultura, da segurança pública, da infraestrutura, da ciência e tecnologia e de cidades.

A experiência brasileira já provou que é possível reduzir o desmatamento com ações de comando e controle. Mas ainda permanece o desafio de como transformar mentalidades e criar as condições para que os brasileiros, principalmente as populações que vivem nas áreas de floresta, conciliem o capital natural, qualidade de vida e prosperidade econômica.

Por isso a conexão entre desmatamento e educação, por exemplo, faz tanto sentido. Somente incorporando as peculiaridades culturais da região e o valor da natureza em sua estrutura é que o ensino será capaz de gerar oportunidades de desenvolvimento humano e de condições de vida que sejam mais atrativas, quando comparadas a atividades prejudiciais ao meio ambiente ou mesmo a atividades ilegais.

Na mesma linha, não há como dissociar o desmatamento da necessidade de criar mecanismos para o estabelecimento de uma economia voltada para a conservação. Se não houver opções econômicas para substituir o desmate, ele vai se apresentar como alternativa mais vantajosa no curto prazo. Daí a importância de pensar soluções como uma política fiscal, uma política de crédito para fomentar uma economia sustentável que inclua a floresta em pé.

A conectividade no território também ilustra com clareza como um elemento, o acesso à internet, por exemplo, está relacionado a múltiplas dimensões ligadas às oportunidades de desenvolvimento na Amazônia. No combate ao desmatamento, a conectividade ajuda a criar uma dinâmica de monitoramento comunitária. E também é crucial para dar suporte ao processo de educação, para acompanhar os dados da saúde ou para permitir que as pessoas possam criar condições de trabalho na Amazônia. Assim, abordar a conectividade é acionar a dimensão de comando e controle, a de progresso e a de bem-estar das pessoas.

Novo paradigma. Olhar a Amazônia por essa abordagem sistêmica exige um modelo disruptivo de desenvolvimento que concilie diferentes perspectivas sobre uma agenda comum para a região.

A construção desse paradigma depende de espaços de troca, de diálogo, da convivência de vários interesses, da convergência e, principalmente, do reconhecimento do valor da diversidade.

A Amazônia é um convite para criar um novo paradigma de desenvolvimento para o País, baseado na relação com o capital natural, mas com um forte componente social (a exemplo de soluções de desenvolvimento que acelerem a erradicação da pobreza e da fome na região). O que muita gente enxerga como uma imensa mancha verde no mapa brasileiro abriga quase 30 milhões de habitantes e, portanto, sonhos, expectativas e histórias de vida.

Esse novo paradigma demanda, ainda, um rearranjo do ambiente institucional, um olhar inaugural sobre as responsabilidades nos diversos níveis de governança – municípios, Estados e Federação. A definição dessas novas regras passa, inclusive, pela conexão do Brasil com o resto do mundo. A comunidade internacional tem interesse em saber como conectar o capital natural com o desenvolvimento, a justiça social e o bem-estar e como avançar nesse modelo.

Justamente por ser o país da Amazônia – ou, melhor, das Amazônias –, o Brasil talvez seja um dos poucos com potencial de fundar esta nova relação entre pessoas e a natureza com a vitalidade e a dimensão necessárias. Amazônia é solução!

*

RESPECTIVAMENTE, EX-MINISTRA DO MEIO AMBIENTE E FELLOWSHIP DO INSTITUTO ARAPYAÚ; PRESIDENTE DO CONSELHO INSTITUTO ARAPYAÚ E COFUNDADOR DA ‘UMA CONCERTAÇÃO PELA AMAZÔNIA’; DIRETORA DO INSTITUTO ARAPYAÚ E SECRETÁRIA EXECUTIVA DA ‘UMA CONCERTAÇÃO PELA AMAZÔNIA’; E GERENTE DE CONHECIMENTO DO INSTITUTO ARAPYAÚ E PARA A REDE ‘UMA CONCERTAÇÃO PELA AMAZÔNIA’

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O RABO BALANÇANDO O CACHORRO

Iva Velloso, OS DIVERGENTES

Li com incredulidade a notícia de que o ex-juiz Sérgio Moro se tornou réu em uma ação popular impetrada por parlamentares do PT, cobrando indenização aos cofres públicos pela conduta do ex-juiz frente à extinta Operação Lava Jato. Seria cômico se não fosse trágico. Revela apenas que o partido não aprendeu nada com os escândalos e que, se retornar ao poder, poderá fazer tudo de novo.

Ao entrar com essa ação, o PT, na verdade, tenta comprovar a narrativa criada pelo partido de que houve perseguição política na Lava Jato e que o Petrolão – mesmo após a devolução de mais de R$ 6 bilhões à Petrobras resgatados dos bolsos dos envolvidos-, não existiu. Há também a intenção de que a ação seja pedagógica para intimidar futuras investigações de corrupção envolvendo políticos e empresários.

A ação foi recebida na última segunda-feira pelo juiz Charles Renaud Frazão de Morais, da 2ª Vara Federal Cível da Justiça Federal do Distrito Federal, que intimou o ex-juiz Sérgio Moro a apresentar sua defesa. É verdade que houve falhas na Lava Jato, a vaidade engoliu alguns dos seus integrantes mais proeminentes, mas dizer que o que causou prejuízos à Petrobras foi a conduta do juiz e não a roubalheira desenfreada que tomou conta da estatal durante anos é uma inversão total de valores. É o rabo abanando o cachorro.

Por meio das redes sociais, Sérgio Moro disse que “todo mundo sabe que o que prejudica a economia é a corrupção e não o combate a ela. A inversão de valores é completa: Em 2022, o PT quer, como disse Geraldo Alckmin, não só voltar a cena do crime, mas também culpar aqueles que se opuseram aos esquemas de corrupção da era petista.”

Já os advogados dos petistas alegam que “Moro é um dos grandes responsáveis pelo rastro luminoso de destruição e de miséria que o lavajatismo deixou no país. Foram quase 5 milhões de desempregos e aproximadamente 200 bilhões de reais de prejuízos à nossa economia. Precisa, pois, responder pelos atos que praticou na condução da Força tarefa de Curitiba”.

Só esquecem de dizer que quem levou a economia do Brasil à bancarrota a partir de 2015 não foi a Lava Jato, mas a desastrada gestão Dilma Rousseff. Também não reconhecem que a corrupção corrói não apenas os recursos públicos, mas a credibilidade do país aqui e lá fora.

Esse tipo de atitude por parte de parlamentares petistas preocupa muito aqueles que querem um Brasil melhor, mais justo e sem corrupção. E deixa angustiados os eleitores não devotos do Lula que tendem a votar no petista apenas para expurgar Bolsonaro do cargo, por pura falta de opções. É como se fossem obrigados a aceitar a corrupção com normalidade.

Pedir desculpas à população pela corrupção em seus governos e fazer uma autocritica nem passa pela cabeça dos petistas. Uma lástima!

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sexta-feira, 27 de maio de 2022

O ADEUS A BOLSONARO

Camila De Mario, Folha de S.Paulo

Doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de sociologia política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/Universidade Cândido Mendes

Estamos em campanha. E, por isso, tão angustiados quanto engajados.

Aqueles que se espantaram com os resultados das eleições de 2018 ao menos agora estão mais conscientes do que representa Jair Bolsonaro e o bolsonarismo para o Brasil.

Para os que apostaram até o último segundo que fração importante da sociedade brasileira não se alinharia ao totalitarismo e ao fascismo, hoje, a cada pesquisa eleitoral divulgada, surge o temor de olhar a dança dos números de intenções de votos e cogitar que talvez não seja em 2022 que poderemos dar adeus a Bolsonaro.

Entretanto, mesmo que possamos, é bom que tenhamos claro: o adeus será à figura de Bolsonaro enquanto presidente, mas não à de Bolsonaro como líder popular autoritário, desleal e violento. Menos ainda (o que é mais preocupante) ao bolsonarismo como presença de longo prazo na sociedade brasileira.

Após a redemocratização, a despeito das muitas conquistas sociais e da garantia de importantes direitos sociais, é importante lembrarmos que o cotidiano de nossas periferias continuou marcado por violência e insegurança social.

Os trabalhadores mais pobres, apesar da possibilidade de ascensão e inclusão social, que se deu essencialmente pelo consumo, foram obrigados a se adequar à voracidade e à exploração do trabalho informal, precarizado, uberizado.

Os pobres, obrigados a se virar para sobreviver, encontraram apoio em algumas políticas públicas, mas sobretudo em redes dentro de suas comunidades, dentro das igrejas e nas milícias.

A frustração com as tentativas de integração social não concretizadas gerou uma reação ressentida, em um tecido social esgarçado. A reação se estruturou nas periferias, se fortaleceu nas igrejas –principalmente as neopentecostais, nos rincões da internet.

A reação também partiu de frações das classes médias, que se sentiram ameaçadas com o movimento de ascensão social das classes baixas (observado de 2003 a 2014), e das elites financeiras e conservadoras, desgostosas com os rumos políticos e econômicos do país, até eclodir nas ruas e nas páginas dos jornais em 2013.

Uma guerra cujos contornos foram ficando mais claros apenas a partir de 2016 e, principalmente, após 2018.

Violência, abandono, indignação, injustiça e ressentimento. Esses são os afetos que orientam a ação política pelo ódio ao outro (diferente) e por um senso de justiça primário, que requer que o injustiçado faça justiça com as próprias mãos.

Ressentimento social gerado pelo sentimento de injustiça causado por uma promessa não cumprida é uma manifestação coletiva desafiadora, de difícil solução, pois o ressentido localiza no outro a culpa pela sua situação, por aquilo que perdeu ou não conquistou.

Nesse caso, aqueles que se sentem prejudicados não se percebem autores do pacto social, nem capazes de alterá-lo. Sem potência política, tendem também inconscientemente a buscar por governantes que possam protegê-los, uma autoridade tal como as figuras parentais da infância.

Buscam por um messias redentor.

A CONTINUIDADE DO BOLSONARISMO PARA ALÉM DE BOLSONARO

Esses sentimentos estão mais vivos do que nunca na sociedade brasileira e tendem a aflorar novamente, fortes, fazendo com que a política –justo ela, por quem o brasileiro nunca nutriu muito apreço– volte ainda mais ressentida aos perfis do Facebook, aos grupos de família do WhatsApp, mas também às mesas do almoço de domingo, às filas do supermercado, da padaria, do ônibus, do metrô, do trem.

Por meio de opiniões formadas nas redes sociais, em grupos de WhatsApp, pelos influencers do YouTube, ou por figuras de autoridade totalmente descompromissadas com os fatos, com os dados divulgados pelos institutos de pesquisa, com a ciência, com qualquer fundamento de verdade.

Certamente um dos grandes problemas que precisaremos enfrentar é o descrédito socialmente generalizado nos meios formais de comunicação, nas instituições, na ciência, nas escolas e professores (acusados de doutrinadores).

Ao longo dos últimos anos, na onda do ódio à política, vimos crescer uma massa de pessoas revoltadas com veículos de comunicação –muitos deles inclusive alinhados a valores de direita–, alguns associados a hashtags pejorativas, como o termo "lixo", e aos "esquerdistas doutrinadores comunistas". "Lixo!", gritaram.

Em meio a uma guerra cultural e política, veículos de comunicação foram queimados na fogueira do negacionismo, e formadores de opinião, intelectuais públicos e "influencers" (também eles) passaram a queimar nas fogueiras do cancelamento.

Universidades, escolas e professores viram-se publicamente achincalhados, acusados de doutrinação ideológica, "tomadores de partido".

Ter e enunciar publicamente uma opinião política passou a ser ato abominável, motivo de profunda cisão entre o "nós, cidadãos de bem", e o "eles, esquerdistas, marxistas culturais, bandidos".

Meu ponto é: esse cenário não foi desmontado, e as opiniões e ações que ele cria e alimenta não estabelecem qualquer relação com a ciência, com os dados, com os fatos da economia ou com a política dos gabinetes e partidos.

São informados por micropercepções de mundo e por concepções teológicas do que é o bem, que se apresentam como verdades incontestes. Assim não há discurso, não há argumento capaz de fazer frente ao que se sente e à reação indignada que se constrói, justificada a partir de valores e palavras de ordem redentoras.

Nessa lógica, é preciso resistir aos problemas e ser perseverante, pois para resgatar os valores da pátria e salvar o Brasil ainda é preciso muita luta.

Enquanto isso, a realidade desafia. ​

Os dados e as manchetes de jornais insistem: a inflação disparou, o desemprego também, a fome voltou. O carrinho de compras está vazio, e as dimensões dos produtos das prateleiras (apesar do aumento de preços) encolheram. A gasolina e o gás de cozinha estão com preços impraticáveis.

Doenças voltaram: o sarampo, a poliomielite, a explosão da dengue em 2022. A mobilidade social regrediu, nos últimos cinco anos vivemos o descenso sócio-ocupacional, voltamos a patamares das décadas perdidas, dos anos 1980 e 1990.

Nunca é demais lembrar das decisões de gestão da pandemia tomadas pelo governo Bolsonaro e das denúncias constantes no relatório da CPI da Covid.

Não esqueçamos do luto coletivo e dos mortos e órfãos da pandemia, ou dos atrasos de escolarização e privação de socialização de nossas crianças, dos traumas que serão enfrentados por toda uma geração marcada pela gestão de um governo que se voltou de costas para o coletivo, para o social e para o sofrimento.

A aposta é que as dores da realidade impeçam a reeleição de Bolsonaro, mas o bolsonarismo e todo o ressentimento social do qual ele se nutre seguirão vivos, pulsantes. Temos o dever histórico de encará-los.

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