Ultimamente, ando um pouco estafada de comentar sobre episódios em que o racismo fica evidenciado por colocações de pessoas brancas que dormem em berço esplêndido. Tenho certeza que muitas e muitos de vocês aqui acompanharam a última da vez: as falas racistas do ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet sobre o piloto e maior campeão de todos os tempos na categoria, Lewis Hamilton.
Em uma entrevista, o brasileiro comentava sobre um acidente em um circuito e em nenhum momento falou o nome de Hamilton, referindo-se a ele apenas como "neguinho".
Como disse Adilson Moreira, brilhante intelectual brasileiro, em uma rede social: "Nelson Piquet precisa harmonizar sua convicção de superioridade racial com o fato de que um homem negro é infinitamente superior a ele. Ele chama Lewis Hamilton de 'neguinho'. A convicção de superioridade racial de Nelson Piquet está restaurada".
Vemos isso reiteradas vezes na mídia, e eu mesma já escrevi sobre Serena Williams, a maior vencedora da história da era aberta do tênis. Agora, o alvo da vez foi Hamilton, um homem negro consciente de que é o maior de todos os tempos em um esporte de elite. Após sofrer consequências, o brasileiro emitiu uma nota na qual diz: "Vou deixar claro que o termo é um daqueles largamente e historicamente usados de forma coloquial no português brasileiro como sinônimo de 'cara' ou 'pessoa' e nunca com intenção de ofender".
De fato, pessoas brancas —e me refiro no geral, de todas as vertentes políticas, não apenas ao ex-piloto brasileiro, um convicto eleitor do atual presidente do país— se sentem confortáveis para serem racistas no Brasil e utilizam em larga escala e historicamente as palavras "neguinho", "nego" e "negão".
Contudo, essas expressões não são sinônimas de "pessoa", uma vez que a marcação do outro é justamente um modo de desumanizar. Na própria entrevista, enquanto Hamilton é apenas um "neguinho", não existe "o branquinho" para se referir a um piloto branco.
E é importante notar que o uso de "nego" é sempre para salientar algo negativo. "Daí nego vai e estaciona em lugar proibido", "nego acha que pode fazer o que quer". Nunca é "nego tirou as melhores notas" ou "nego é o melhor no que faz", há sempre uma conotação negativa enfatizando a reprodução do racismo. Por isso é importante estudar, para conhecermos como a linguagem carrega valores da sociedade de que fazemos parte.
Certa vez, publiquei um artigo chamado "Linguagem, Gênero e Filosofia", a partir de uma abordagem wittgensteiniana para elucidar, a partir da obra "Investigações Filosóficas", como a linguagem cria formas de vida. Uma coisa é dizer a palavra "menina" ou empregá-la numa frase: "aquela menina é esportista". Outra coisa é dizer para um menino: "você joga feito menina", querendo afirmar que ele joga mal. "Menina", aqui, não é o feminino de menino, mas carrega o peso da misoginia que atrela a meninas e mulheres valores negativos. A mesma lógica se aplica à palavra "neguinho", isto é, o modo como foi empregada pelo ex-piloto foi para desumanizar.
E dizer que o termo é largamente utilizado não é argumento, sobretudo em um país que naturaliza violências. O fato de acontecer não significa que seja correto. No caso de Piquet, não há nada que o exima de responsabilidade, uma vez que ele se referiu a outro piloto pelo nome.
Sábia Lélia González, que dizia que pessoas negras devem ter nome e sobrenome, senão o racista põe o nome que quiser.
Sabemos que cinismo não falta. Em sua defesa, brancos lembram Neguinho da Beija Flor, grande intérprete carnavalesco e patrimônio da escola de samba, na tentativa de absolver o ex-piloto. Uma falácia, uma vez que esse é o nome artístico, registrado inclusive, do cantor.
Além do mais, a escola de samba é um espaço negro. O fato de uma pessoa negra, de forma carinhosa, se referir a outra como preta, neguinha, é totalmente diferente, pois aí há uma ressignificação —aquela palavra que é usada para aviltar acaba sendo usada para empoderar. Isso acontece em muitas comunidades, como a LGBTQIA+, por exemplo, na qual homens homossexuais chamam os outros de gays nessa mesma perspectiva.
Meu pai não admitia ser chamado de negão nem por pessoas negras. Mas esse era meu pai. Para aqueles que dizem não ligar de serem chamados assim, principalmente por pessoas brancas, a questão não é ligar ou não, e sim o peso histórico daquela palavra e daquela ação. Não é um debate individual, mas o desvelamento dos processos históricos que fazem com que pessoas brancas se sintam autorizadas a aviltar a humanidade de pessoas negras.
Para aqueles que dizem que o mundo está ficando chato, lidem com isso, o mundo segue desigual para pessoas negras em diversos níveis e a gente precisa seguir enfrentando uma série de violências. Chato para alguns, violento para a maioria, a falsa simetria é tão abismal que realmente não podemos dar a mínima para tal.
Djamila Ribeiro - Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.