sábado, 30 de setembro de 2023

O PASSADO PRESENTE

Luiz Gonzaga Beluzzo, CartaCapital

A eterna repulsa dos endinheirados aos pobres e ao Estado

Nos idos de 1983, o senador Roberto Campos, avô do nosso Campos Neto, prolatou suas sabedorias na Ordem dos Economistas do Estado de São Paulo. Entre outras pérolas do conhecimento, afirmou que o Brasil “é uma sociedade criptossocialista, apesar do sistema privado teoricamente praticado no País”. Então parlamentar mato-grossense, o vovô Campos fundava sua escatológica denúncia na constatação de que o governo, no Brasil, era responsável por em torno de 45% do dispêndio total e 60% dos gastos em investimento.

Se aceitarmos os critérios do ilustre senador, vamos chegar à conclusão de que não só o Brasil, como a totalidade dos países do Ocidente, passou-se para o outro lado, sem se dar conta do que estava ocorrendo. Éramos todos socialistas e não sabíamos.

Senão vejamos. Apesar das políticas soi-disant liberais e antiestatizantes praticadas pela maioria dos governos ocidentais, a participação dos gastos públicos no dispêndio agregado cresceu consideravelmente na década de 70, superando as marcas, já elevadas, registradas nos anos 50 e 60. Na Alemanha Ocidental da Economia Social de Mercado, a participação dos gastos públicos nos gastos totais foi, em média, de 44% no período que vai de 1974 a 1982. Na Grã-Bretanha, esta cifra atingiu 44,5%, na França 41,6%, na Itália 43,1%, nos Estados Unidos 35,1% e no Canadá 39,40%. Os dados mencionados acima são de fácil acesso. Basta compulsar com competência os relatórios da OCDE. O senador Campos não poderia, a qualquer título, justificar a omissão dessas informações numa palestra pública, sob pena de estar destilando pura “ideologia” e armando jogo de palavras.

Estamos curiosos para saber qual seria a reação dos economistas da Faria Lima diante dessa burla escandalosa e grosseira dos cânones de procedimento científico. Os sábios da Crematística vêm reclamando seguidamente a adoção de posturas mais “científicas” e menos “ideológicas” no debate sobre a política econômica. Nada haveria de reprovável nisso, não fosse a flagrante contradição entre as palavras e as atitudes, entre o gesto e a intenção. Mas deixemos nossos pequenos sabichões entregues às suas grandes contradições. O grande Campos era coerente em suas omissões, porque persistente em seus propósitos. Vendia suas idéias, a bon marché, neste país onde são precárias as defesas do consumidor. Declarar guerra à intervenção do Estado na economia é uma forma cômoda de evitar uma análise mais circunstanciada das seguidas crises estruturais que atravessam as economias contemporâneas. Só o caos ideológico em que mergulhou o pensamento conservador pode explicar a identificação entre intervenção estatal e estatização. Ou entre estatização e planejamento.

Os anos da ditadura brasileira são o exemplo acabado de como a estatização nasce, exatamente, da falta de planejamento. A intervenção do Estado foi desordenada, casuística e, por isso mesmo, incontrolável. Esse “padrão” absurdo de interferência estatal na economia banqueteou-se no rega-bofes autoritário do regime, sem que o liberalismo do senador Campos se tenha manifestado sequer através da eructação. A ignorância cevada no obscurantismo e na literatura de segunda classe incentivou a ideia de que há uma oposição irredutível entre planejamento e democracia. Qualquer cidadão medianamente informado – e o senador Roberto Campos está acima desta categoria – sabe que um dos debates mais importantes deste século tratou do problema de como submeter a inevitável intervenção do Estado ao controle democrático. Estão aí as contribuições de Karl Mannheim, Schumpeter, Keynes e, mais recentemente, de Norberto Bobbio, Claus Offe, Herbert Marcuse e outros menos votados. Só figuras antediluvianas como Hayek e Milton Friedman acreditam nas funções alocativas do “livre-mercado”.

Essa metafísica do mercado se torna ainda mais ridícula quando confrontada com uma situação de crise estrutural, em que os preços sinalizam na direção contrária àquela desejável para a reconstrução da economia. Basta olhar o que está acontecendo, hoje, no Brasil e no mundo.

Eugênio Gudin passou boa parte de sua vida pregando contra a irracionalidade dos nacionalistas, ou comuno-nacionalistas, que pretendiam impor restrições ao capital estrangeiro ou que advogavam medidas intervencionistas para promover o desenvolvimento do País. O liberalismo à brasileira sempre combinou a rejeição (de todos os liberais) às intromissões da política na economia com uma profunda e dissimulada desconfiança na capacidade local de alcançar por conta própria as conquistas da sociedade industrial e seus padrões modernos de convivência.

Também neste capítulo, a atualidade de Gudin é notável. É a recorrência do tema da abertura comercial, do estímulo à entrada do capital estrangeiro, das ineficiências da indústria nacional que deve ser eliminada através da maior exposição à concorrência externa.

Agora, outra vez, a vulgata do pensamento dominante proclama a queda das fronteiras, a internacionalização dos mercados, os formidáveis movimentos de capitais. Isto, como o demonstra a obra de Gudin, não tem nada de novo. Vem de longa data a atitude basbaque da fração majoritária das camadas dominantes, da classe média para cima, com o que vem de fora para dentro. Os endinheirados, os letrados e os bem-postos na vida cultivam o cosmopolitismo avant la lettre, o que, na realidade, expressa uma secular e singular repugnância pelas condições reais do ­País, especialmente pelas condições miseráveis das classes subalternas.

Apesar disso, nos 50 anos que terminaram no início da década de 1980, a economia brasileira cresceu de forma acelerada e sofreu notáveis transformações, transitando do modelo primário exportador para a etapa industrial. O ethos do desenvolvimento nasceu da percepção – das camadas empresariais nascentes, do estamento burocrático-militar, de algumas lideranças intelectuais e do proletariado em formação – de que o objetivo de aproximar o País das formas de produção e de convivência não poderia ser alcançado através da simples operação das forças naturais do mercado.

É inteiramente falso, no entanto, atribuir um papel hegemônico a estas forças ditas progressistas na definição dos rumos do desenvolvimento. O projeto de industrialização foi sendo construído através de alianças políticas, regionais e de classe, que não só atraíram os interesses mais retrógrados e reacionários para o bloco desenvolvimentista, mas também selaram compromissos com as forças reais do internacionalismo capitalista.

Algumas características mais marcantes do desenvolvimento brasileiro decorreram da repactuação continuada desse compromisso: a espantosa persistência da estrutura agrária, a reprodução e ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade, o patrimonialismo da empresa industrial, o rentismo do sistema bancário, a eterna revolta contra o pagamento de impostos por parte dos endinheirados. Daí a dependência do financiamento externo, a desordem financeira do Estado, o protecionismo excessivo, a passividade tecnológica, o atraso organizacional, a posição subordinada da grande empresa privada nacional e o crescimento desmesurado do estatismo.

Durante 50 anos de industrialização acelerada, particularmente no pós-guerra até a crise da dívida externa em 1982, esse compromisso foi sendo continuamente renovado, apesar dos sucessivos conflitos entre os grupos dominantes, sempre acompanhados de agudas crises políticas. O fiador desse pacto instável foi a manutenção, ao longo de muitas décadas, de elevadas taxas de crescimento da economia.

A desorganização dos anos 80 não deve ser interpretada como uma crise que ocorre apenas no interior desse arranjo oligárquico. Desta vez, apesar das aparências, o estrago foi maior. Por um lado, caducou o consenso das camadas dominantes em torno do objetivo comum do desenvolvimento e, de outro, aumentaram as pressões das classes subalternas pelo reconhecimento integral de seus direitos políticos, sociais e econômicos.

Não é por outra razão que o ideário do liberalismo se transformou, outra vez, na força ideológica dominante. Diante da dificuldade de se reconstituir em novas bases um objetivo compartilhado, do visível enfraquecimento financeiro e da capacidade coordenadora do Estado, o liberalismo ressurge. Reaparece como a expressão imaginária e mágica do reconhecimento do interesse particular de cada grupo no interior das camadas dominantes e, ao mesmo tempo, como força política destinada a bloquear o avanço das classes subordinadas na conquista dos seus direitos.

O que vemos é a reiteração da crença no naturalismo do mercado, na rejeição da política, no cosmopolitismo. As possibilidades de crescimento estão todas depositadas no recuo do Estado, no ímpeto empreendedor do setor privado e, antes de mais nada, na força criadora do investimento estrangeiro. Roberto Campos parece ter razão quando diz que, finalmente, Gudin venceu. Ninguém sabe quanto tempo vai durar essa vitória. 

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

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O GENERAL QUE SABE TUDO

Alvaro Costa e Silva, Folha de S. Paulo

Para Mourão, tramar um golpe é mero blá-blá-blá

General da reserva, ex-vice-presidente e atual senador, Hamilton Mourão anda deitando cátedra sobre direito penal. À plebe ignara ele ensinou que não há gravidade quando o presidente da República, que se candidatou à reeleição e perdeu, convoca uma reunião com os chefes das Forças Armadas e, apresentando uma minuta adrede preparada, propõe um golpe de Estado, com novas eleições e prisão de adversários.

"É um mero blá-blá-blá", ilustrou o professor Mourão. Deu um exemplo: "Vão dizer que uma tentativa de homicídio tem que ser punida, mas uma investida de golpe é diferente de homicídio. No caso de quase assassinato, eu te dou um tiro e erro. Uma tentativa de golpe seria o quê?". A tese seduziu grupos bolsonaristas, que passaram a divulgá-la nas redes, deixando de chamar o general de melancia.

Com base no relato do tenente-coronel Mauro Cid à PF, a BBC Brasil ouviu especialistas em direito. Eles —que certamente não frequentaram a mesma universidade na qual Mourão estudou— apontam três crimes cometidos pelos participantes da reunião: tentativa de golpe de Estado, abolição do Estado democrático de Direito e prevaricação. As penas variam de quatro a 12 anos de prisão.

No Rio Grande do Sul, reclamam de que Mourão não dá a mínima para o estado. Nem com as recentes tragédias climáticas ele mandou um oi para seus eleitores. Com mais interações na mídia do que cantora traída pelo namorado, o senador se empenha no golpe de limitar os mandatos de ministros do STF, além do contraponto à descriminalização do porte de maconha para consumo próprio e à validade constitucional do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Quanto ao aborto, acha que dever ser escolha da mulher (nessa hora, volta a ser xingado de melancia).

Com tanto trabalho, Mourão ainda encontrou um tempinho para abraçar o general Heleno na CPI do 8 de Janeiro. Os dois sorriram de satisfação.

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SÓ RINDO... OU CHORANDO

Dora Kramer, Folha de S. Paulo

Otimismo do ministro Padilha contrasta com o realismo voraz das onças do Congresso

O ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) aparece em público sempre muito alegre e otimista. Diz que está tudo ótimo mesmo quando está tudo péssimo. Exibe sorriso permanente, faz piada com as dificuldades que enfrenta na cadeira a partir da qual busca domar as onças vizinhas na praça dos Três Poderes. Pois é, em determinadas situações, só rindo. Ou chorando.

Nesta semana, acossado em pleno Palácio do Planalto por parlamentares com cobrança para entrega de lotes na Funasa, levou o constrangimento meio à brinca, meio à vera: "Vocês não imaginam o que fazem comigo a portas fechadas".

A julgar pelo que dizem a portas abertas, é possível, sim, imaginar. No cerco a Padilha no "after" de cerimônia oficial, suas altezas felinas foram bastante explícitas na ameaça de derrubar a ministra da Saúde caso não tivessem seus apetites saciados. Isso uma semana depois de o presidente da Câmara proclamar-se dono da Caixa Econômica Federal e de suas 12 vice-presidências.

De natureza menos risonha que a de Padilha, o presidente Luiz Inácio da Silva revidou o tiro em sua autoridade dando por temporariamente suspenso o "acordo" aludido por Arthur Lira. Até quando, porém?

Para Lula, o tempo não tem sido senhor da razão. Levou quase três meses para tomar uma decisão improdutiva e paga com o preço alto da demissão de Ana Moser da pasta do Esporte. A entrega de ministérios ao PP e ao Republicanos não assegura votos nem cessa a pressão por cargos que garantem verbas.

Não é o assento do ministro que sustenta apoios no Congresso, mas o que os ministérios podem fazer por deputados e senadores dos respectivos partidos. Isso vimos agora na breve revolta da obstrução arruaceira em resposta ao que o centrão vê como aliança do Executivo com os "progressismos" do Supremo.

No papel, a base parlamentar foi ampliada. Na prática, contudo, como ensina o lugar-comum, a teoria é outra. É cada um por si, e o Orçamento por todos.

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UM CONGRESSO DE 11

Demétrio Magnoli , Folha de S. Paulo

Ao celebrar avanço de juízes sobre pautas do Legislativo, progressistas sacrificam futuro

O longo voto de Rosa Weber pela descriminalização do aborto apresenta-se, quase inteiramente, como um discurso parlamentar. A agenda definida pela magistrada para o Supremo –drogas, marco temporal, aborto– forma uma pauta de deliberações apropriada ao Poder Legislativo. Por aqui, o STF produz legislação enquanto o Congresso dedica-se a distribuir verbas de emendas a clientelas eleitorais e a indicar ministros ou diretores de estatais.

A alegação dos juízes supremos de que apenas interpretam a Constituição não resiste nem mesmo a um escrutínio superficial. Interpretar a Constituição é derrubar o que não pode ser feito; legislar é decidir regras positivas sobre o que deve ser feito. Weber determinou o período de aborto descriminalizado (12 semanas), os magistrados procuram consenso interno sobre o peso exato da maconha de uso pessoal, Fachin elabora regras específicas para atribuição de terras aos indígenas.

O STF embarcou no veleiro do neoconstitucionalismo, doutrina jurídica que, enfraquecendo a separação dos Poderes, atribui aos magistrados a missão de reformar a sociedade a partir de uma interpretação extensiva dos princípios constitucionais. O posto de timoneiro é ocupado por Barroso, um expoente da doutrina. Na equipe, Weber funciona como navegadora.

O neoconstitucionalismo equivale a uma declaração de guerra dos juízes contra Parlamentos conservadores ou reacionários que resistem à expansão de direitos sociais. Na sua fúria legiferante, o STF enxerga-se –e é enxergado– como representação do estrato mais progressista da sociedade. O problema é que, como os juízes não foram eleitos, sua campanha de reforma social tende a gerar consequências contraproducentes.

As regras de origem judicial são leis fracas, sujeitas a bruscos retrocessos. Na Itália, o aborto é um direito forte porque foi decidido pelo Parlamento e confirmado por plebiscito popular. Nos EUA, foi um direito fraco, estabelecido pela Suprema Corte em 1973 e revogado pelo mesmo tribunal, agora com maioria conservadora, ano passado. Ao celebrar o avanço dos juízes sobre prerrogativas parlamentares, os progressistas sacrificam o futuro no altar do presente.

Ruth Bader Ginsburg, icônica ex-magistrada progressista americana, identificou o equívoco. O crescimento explosivo do Movimento Pró-Vida, explicou, foi uma reação política ao voto da Suprema Corte de 1973. Concluiu daí que o caminho certo exigiria a articulação da maioria social para consagrar o direito ao aborto em legislação emanada do Congresso. Na prática, os progressistas que confiam suas pautas a juízes reformadores estão renunciando ao dever de persuadir os cidadãos.

No Brasil, os partidos de esquerda insistem nesse tipo de abdicação: Lula e Dilma recusaram-se a defender em campanha eleitoral o direito ao aborto ou a descriminalização da maconha. Na raiz do silêncio encontra-se a tese de que a maioria da sociedade é atavicamente conservadora –e, que, portanto, precisaria ser resgatada do inferno de suas próprias convicções pela mão providencial dos juízes.

Sondagens de opinião indicam maiorias contrárias à descriminalização do aborto e do uso recreativo de maconha. O Congresso espelha, de certo modo, essas inclinações gerais. Contudo, ideias arraigadas sobre tais temas podem mudar –com a condição de que as lideranças políticas progressistas tenham a coragem de reorganizar os termos do debate público. Impera, porém, o medo, que se traduz pela transferência da responsabilidade ao STF.

Quem ganha são os conservadores e, especialmente, os reacionários. Nos EUA, legislaturas estaduais engajam-se na criminalização irrestrita do aborto. Aqui, tenta-se reverter o direito à união homoafetiva. Nas eleições, ressoará o discurso do voto contra o "governo dos juízes". Um Congresso de 11 togados não reinventará o Brasil.

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LULA E O ACORDO ENTRE MERCOSUL E UNIÃO EUROPEIA

Rodrigo Zeidan*, Folha de S. Paulo

França faz exigências ambientais e Lula quer 'proteger' a indústria nacional

Parecehttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/rodrigo-zeidan/2023/09/lula-e-o-acordo-entre-mercosul-e-uniao-europeia.shtml que é hora da verdade. Vai sair o acordo entre Mercosul e União Europeia? O presidente paraguaio, Santiago Peña, deu um ultimato aos europeus: se o acordo não sair até o dia 6 de dezembro, quando Lula lhe entrega a presidência rotativa do Mercosul, o bloco vai encerrar as negociações.

Com o decoupling (dissociação) de economias como as americanas e europeias e a China, as cadeias globais de valor estão se rearranjando pelo mundo. A União Europeia é o maior investidor nas economias sul-americanas. Seria hora de estimular investimentos para revitalização da nossa indústria. Infelizmente, a chance de isso acontecer é mínima. As lideranças políticas regionais ignoram a integração comercial com o resto do mundo. No Brasil, estamos ainda presos no modelo de substituição de importações, um desastre há décadas.

O acordo Mercosul-UE está sendo costurado há 20 anos e uma versão inicial foi assinada em 2019. Em grande parte, as negociações estão paradas por causa dos europeus. A França, por exemplo, quer compromissos ambientais adicionais. Mas Lula também não quer ratificar o acordo, para "proteger" a indústria nacional. Se passar como está, o mercado de compras governamentais seria aberto: as empresas europeias poderiam ganhar contratos nas licitações de Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina e vice-versa. O argumento de Lula, saído diretamente da década de 70, é que nada poderia impedir o Brasil de fazer "política industrial soberana".

O modelo de substituição de importações começou na década de 30, mas foi turbinado pelos governos militares, cujo legado de hiperinflação e fechamento da economia é um desastre que nos acompanha até hoje. Nesse modelo, fecha-se o mercado local à competição, subsidiando-se empresas nacionais para que atinjam escalas adequadas de produção. Para funcionar corretamente, são três as condições principais: identificação correta dos setores a serem protegidos, tarifas substanciais e subsídios específicos para que a produção local cresça de forma eficiente e, principalmente, retirada dos mesmos à medida que as indústrias amadurecem.

O Brasil falhou nas três dimensões (quem não lembra da desastrosa Lei de Informática, que até hoje, indiretamente, faz com que computadores sejam muito mais caros que no resto do mundo?). O Brasil já é um país industrial há 50 anos, mas os empresários locais continuam com a ladainha de que, caso se abra o mercado, a indústria desaparecerá.

O resultado é que o Brasil é o país mais fechado do mundo para o comércio internacional (exceto pelo Sudão), com relação média entre a soma de exportações e importações e PIB, de 2010 a 2022, de menos de 28% (a média mundial é de 92%, e a mediana, 77%). Para países em conflitos, essa relação é de 51%. Países pobres altamente endividados? 56%. América Latina? 47%. Países de renda média? 48%.

Lula tem o cacife para desatar esse nó. Com redução de tarifas, algumas empresas brasileiras iriam sim à falência, mas várias outras aumentariam investimentos. Novas fábricas de iPhone? Índia. Os mais de US$ 150 bilhões investidos em fábricas de baterias elétricas? Fora alguns investimentos (pequenos, na escala global, da WEG e BorgWarner), não no Brasil.

A principal barreira ao acordo Mercosul-União Europeia não é a demanda ambiental dos europeus. É a vontade de "soberania da política industrial" dos sul-americanos. Que só entrega desindustrialização.

*Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

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OS DESAFIOS DE LUIS ROBERTO BARROSO NO STF

Ricardo Rangel, Veja

Como o presidente mais liberal que o Supremo já teve lidará com o Congresso mais retógrado que o Brasil já elegeu?

Luis Roberto Barroso assume a presidência do Supremo Tribunal Federal em um momento de crise entre o Congresso e o tribunal.

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, botou pra votar, e aprovou, o marco temporal das terras indígenas à revelia de declaração prévia do Supremo de que ele seria inconstitucional. Já adiantou que pretende apresentar projeto de lei para considerar crime a posse de toda e qualquer quantidade de maconha — a despeito de que o STF está na iminência de decidir sobre o assunto. E, enquanto o Supremo discute a descriminalização do aborto, o Congresso se movimenta para aprovar contra ele leis ainda mais duras.

A saia será particularmente justa para o novo presidente. Barroso é o mais liberal (no sentido correto do termo) entre os integrantes da corte, enquanto esse Congresso é o mais retrógrado que já tivemos. Afora isso, Barroso é o número 2 na lista dos ministros mais odiados pelos bolsonaristas — só perde para Alexandre de Moraes.

O ódio bolsonarista tem por base não apenas alguns dos maiores acertos que o ministro já teve, como a firmeza na defesa da democracia, mas também equívocos sérios, como subir ao palanque de um comício da UNE e afirmar que “derrotamos o bolsonarismo”.

Em um ambiente tão conflagrado, Barroso precisará de toda a habilidade e prudência para ser bem sucedido. Isso inclui combater decisões monocráticas e expedientes maliciosos, como vistas a perder de vista.

Inclui também falar pouco, ser cuidadoso com o que diz e com aonde vai. Melhor evitar reuniões políticas, jantares dados por banqueiros e festas frequentadas por empresários (sempre se pode deparar com alguém como Joesley Batista). Como providência geral, melhor evitar a famigerada tertúlia promovida por Gilmar Mendes em Lisboa.

Para seu bem e o nosso, deseja-se a Barroso toda a habilidade, prudência, sucesso e sorte em sua nova posição.

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LULA É UMA IDEIA

Eduardo Affonso, O Globo

Presidente é, ao mesmo tempo, o rei que ostenta a roupa nova e o menino que aponta que o rei está nu

Houve certa incompreensão quando, naquele longínquo abril de 2018, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou:

— Não sou mais um ser humano. Sou uma ideia. Uma ideia misturada com a ideia de vocês.

O tom parecia ser de empáfia — reforçado, talvez, pelo hábito que Lula tem de referir a si mesmo na terceira pessoa.

Como ensinou um sábio alagoano, o tempo é o senhor da razão. Hoje é possível entender o porquê do ileísmo, que nada tem de imodéstia. É que Lula são dois. Como nos casos de TDI (transtorno dissociativo de identidade), ora estamos diante de um, ora de outro. Por terem ambos o mesmo nome, quando Lula diz “O Lula”, tanto pode ser o Lula-ideia falando do Lula-pessoa-física (doravante, Lula-PF, para economizar caracteres) quanto o contrário.

O Lula-ideia fez os discursos da campanha e convenceu a maioria dos eleitores — mas, como o TSE não aceita candidaturas imateriais, o eleito e empossado foi o Lula-PF.

Lula-ideia subiu a rampa com um portador de deficiência; Lula-PF não esconde o que pensa da aparência de alguém com limitação motora. Reeditando aqueles anúncios da Benetton dos anos 1990, havia também um indígena — representando os povos cuja vida foi afetada pelo Lula-PF de Belo Monte e pelo que quer explorar petróleo na Margem Equatorial. E uma mulher — como a que seria escanteada pelo Lula-PF no Ministério do Esporte e as que foram e serão preteridas na composição do STF. Além de uma criança preta —que terá de viver num país ainda mais racista, porque o Lula-PF entregou o ministério que deveria combater o racismo a uma turma que acredita não só em raças, mas na existência de raças inferiores. E gasta quase toda a verba em viagens.

Aliás, Lula-ideia prometeu que pobre voltaria a andar de avião. Certamente não no novo Airbus de R$ 400 milhões (com suíte de casal) que Lula-PF quer comprar.

Lula-ideia defende os trabalhadores; Lula-PF os sindicalistas. Lula-ideia parece não temer o julgamento da História; Lula-PF precisa se blindar nos tribunais. Lula-ideia quer lustrar a biografia; Lula-PF se preocupa em salvar a pele.

Um se diz empenhado na construção de uma frente ampla; o outro passa na frente o Centrão e a primeira-dama. Um tem longo histórico de combate à ditadura; o outro apoia tantas quantas forem necessárias.

A coexistência de dois Lulas tão dessemelhantes num só ser demanda cuidados redobrados. Os que apoiam Lula-ideia precisam protegê-lo do Lula-PF boquirroto e de seus discursos de improviso. Lula é, ao mesmo tempo, o rei que ostenta a roupa nova e o menino que aponta que o rei está nu.

Pode-se discordar integralmente do ideário do Lula-ideia, mas ele é muito mais saudável para a democracia, pois poderia ajudar a desarmar os espíritos, de ambos os lados. Já o Lula-PF municia quem anseia que algum general venha terminar o serviço do capitão.

Em tempo: havia também o Jair-ideia (liberal na economia, anticorrupção etc.) e o Jair-PF (quem viveu os últimos quatro anos no Brasil sabe bem o que foi).

Um Lula coerente é uma ideia que só existe na cabeça dos militantes — e não tem a menor pretensão de acontecer.

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E SE O DETENTO NÃO FOR O CULPADO ?

Carlos Alberto Sardenberg, O Globo

Toda grande empresa brasileira está no Carf. Toda grande empresa tem litígios com a Receita

É assim: a empresa recebe uma autuação da Receita Federal, cobrando impostos, multa e juros. O advogado da empresa acha que a cobrança é indevida e resolve contestar.

Primeiro, reclama na auditoria que emitiu a notificação; perdendo, o que acontece quase sempre, vai para a instância superior, ainda dentro da Receita Federal. Perde de novo. Aí, antes de entrar na Justiça, a empresa pode tentar o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), criado justamente para reduzir a judicialização excessiva.

O Carf tem turmas para temas diversos, sempre com oito integrantes: quatro auditores fiscais e quatro representantes dos contribuintes. O presidente da turma é sempre um auditor. Pela primeira regra, quando dava empate, o presidente tinha o voto de Minerva, quase sempre a favor da Receita, claro. No governo Bolsonaro, o empate passou a favorecer o contribuinte. Agora, o desempate cabe de novo ao auditor-presidente, depois de bem-sucedida operação do ministro Fernando Haddad, com aprovação do Congresso. Com isso, o ministro espera arrecadar R$ 55 bilhões no ano que vem — um monte de dinheiro, algo como 0,5% do PIB.

Repararam? O ministro dá como certa a vitória da Receita no Carf. E justificou a validade do voto de desempate pró-governo de maneira direta. Imaginem, disse, “quatro delegados e quatro detentos para julgar um habeas corpus, sendo que o empate favorece o detento. Isso é Carf. São quatro delegados, os quatro auditores, e quatro detentos, as quatro pessoas que estão sendo julgadas”.

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CRÍTICA IMPLICA COM FILME CONSERVADOR

Pablo Ortellado, O Globo

Mario Frias, Damares Alves e Eduardo Bolsonaro se mobilizaram para divulgar 'Som da liberdade'

Depois de muita polêmica nos Estados Unidos, estreou no Brasil na quinta-feira passada “Som da liberdade”, do diretor mexicano Alejandro Monteverde. O thriller sobre um ex-agente que se dedica a resgatar crianças sequestradas em redes internacionais de abuso sexual infantil não é apenas um filme independente de sucesso. Foi lançado por meio de uma campanha política conservadora, e sua estratégia de promoção — meio comercial, meio militante — despertou reação muito negativa da crítica.

A produtora do filme, Angel Studios, começou como empresa que oferecia um serviço de filtragem que censurava (silenciava ou pulava) passagens profanas, violentas ou com nudez em conteúdos audiovisuais do streaming. O modelo fracassou depois de ser tragado numa série de processos por violação de direitos autorais. A empresa então se reinventou como produtora de conteúdos religiosos e conservadores, assentada num modelo econômico inovador com dois pilares: financiamento coletivo e compra antecipada de ingressos.

O nome Angel Studios, além da óbvia conotação religiosa, alude também à ideia de “investidores-anjo”. Uma de suas produções, a excelente série “The Chosen”, sobre os seguidores de Jesus, arrecadou mais de US$ 40 milhões com financiamento coletivo. Os doadores foram movidos pela missão religiosa da produção, que buscava difundir uma versão cristã-ecumênica dos evangelhos em linguagem audiovisual “maratonável”.

“Som da liberdade” também foi produzido com financiamento coletivo, tendo arrecadado US$ 5 milhões com 6,7 mil doadores individuais. O apelo aqui, porém, não era diretamente religioso. A motivação dos doadores era combater a exploração sexual infantil, preocupação importante para os conservadores religiosos, mas que vai além deles. O filme conta a história real de um agente federal que combate a pedofilia nos Estados Unidos e, frustrado com suas limitações legais, resolve armar independentemente uma operação de resgate de crianças exploradas sexualmente na Colômbia.

O lançamento nos Estados Unidos foi impulsionado por grandes celebridades conservadoras e trumpistas. No Brasil, Mario Frias, Damares Alves e Eduardo Bolsonaro se mobilizaram para divulgar o filme.

Além da divulgação militante, a produtora incentivou a compra antecipada de ingressos para doação. No final, enquanto os letreiros sobem, o ator Jim Caviezel aparece pedindo à plateia que escaneie um QR Code e, por meio dele, compre três ingressos, doados para mais pessoas verem. Depois, os ingressos gratuitos podem ser retirados pelos interessados na página da produtora. A combinação de financiamento, promoção e doação militantes fez com que o filme liderasse as bilheterias no Brasil nesta semana.

Foi também o caráter militante que, aparentemente, despertou a antipatia da crítica, que recebeu muito mal “Som da liberdade”. O filme é apelativo e tem algumas deficiências técnicas, mas o incômodo foi de natureza política. Embora não tenha nenhuma referência política direta e não faça nenhuma menção a teorias conspiratórias, foi acusado de veladamente promover a teoria da conspiração Q-Anon — segundo a qual, políticos de esquerda e artistas de Hollywood estão envolvidos em redes de exploração sexual infantil. Para esses críticos, a principal ligação entre a teoria da conspiração e o filme é a declaração de Jim Caviezel numa entrevista dizendo que via as ideias do QAnon como “uma coisa boa”.

A revista Rolling Stone sugeriu que o filme “promove o pânico moral com a ‘epidemia’ grosseiramente exagerada de tráfico sexual infantil, conduzindo a população a armadilhas conspiracionistas”. No Brasil, Tony Goes disse no site F5 que “o longa caiu nas graças da extrema direita, que viu representada na tela uma de suas fantasias mais delirantes: políticos do Partido Democrata americano estariam por trás do tráfico de crianças, para extrair delas um suposto soro da juventude”.

Tentar ver uma mensagem conspiratória no filme a partir da entrevista de um dos atores é, a meu ver, o mesmo que enxergar uma mensagem política subliminar na novela porque José de Abreu deu uma declaração em algum site petista.

Vamos parar de implicar com o filme e celebrar que os conservadores se mobilizam agora contra a exploração sexual infantil, causa nobre de direitos humanos. Há pouco tempo, os mesmos ativistas estavam convocando acampamentos nos quartéis para derrubar nossa democracia. É melhor assim.

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A HISTÓRIA POR TRÁS DO DÉFICIT

Alvaro Gribel, O Globo

Piora fiscal este ano era não só esperada, como inevitável. Governo precisa é garantir o reequilíbrio à frente

O setor público registrou déficit de R$ 79 bilhões no acumulado de janeiro a agosto deste ano, o pior resultado para um início de governo desde o início da série. Lula 1 herdou as contas em dia de Fernando Henrique, e apertou ainda mais o cinto sob Palocci. Manteve as contas no azul no segundo mandato, já sob Mantega. A deterioração das contas públicas aconteceu sob Dilma, passou por Temer e Bolsonaro, e voltou a piorar agora, com a recomposição de despesas represadas pelo teto de gastos. A fala do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na quinta-feira, que passou a fazer campanha pública por aumentos salariais dos servidores do banco, é a prova de que o funcionalismo federal foi sucateado pela regra do teto, que se mostrou extremamente draconiana. A piora fiscal agora, portanto, era não só esperada, como inevitável. O que é preciso é garantir o reequilíbrio à frente.

Previdência pesa

Os que os números fiscais divulgados pelo Banco Central mostraram é que a Previdência continua sendo a principal draga de recursos do país, mesmo com a aprovação da reforma de 2019. De janeiro a agosto, o governo federal teve superávit de R$ 127 bilhões nas suas contas, enquanto o INSS registrou déficit de R$ 227 bilhões. O rombo é maior do que os R$ 214 bi do mesmo período de 2022 e os R$ 210 bi de 2021. Como vários analistas vêm alertando, o país em breve terá que lidar com uma nova reforma, o que ainda não está no radar do governo Lula.

Desconfiança

O gráfico expõe o descompasso entre a promessa da equipe econômica de melhorar as contas públicas nos próximos anos e as expectativas do mercado financeiro. Quem também alertou para o problema foi o diretor de Política Econômica o Banco Central, Diogo Guillen, durante a divulgação do Relatório Trimestral de Inflação. Para o ano que vem, o mercado estima déficit primário de 0,7% do PIB, contra uma meta de déficit zero. Para 2026, a desconfiança é maior: meta de 1% de superávit contra projeção de 0,4% no vermelho. Para o governo Lula e o Ministério da Fazenda, os números são um problema, mas também uma oportunidade. Se o ajuste for feito, haverá uma forte melhora nas expectativas, com entrada de dólares, valorização do real e queda dos juros. O fiscal continua sendo a chave para o futuro do país.

Choque na energia

Com o petróleo do tipo brent chegando a US$ 92,14 e acumulando uma alta de 28,25% desde 12 de junho, já se pode dizer que o mundo está vivendo um novo choque no setor de energia. Esse forte aumento de preços pode pressionar novamente a inflação, manter os juros elevados por mais tempo e desacelerar o crescimento não só do Brasil mas do mundo.

Alívio nos reservatórios

A projeção do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é de que os reservatórios de água das hidrelétricas vão chegar ao fim do período seco no país, no final de outubro, no melhor nível em 14 anos, desde 2009. “Se o indicador do Sudeste/Centro-Oeste se confirmar, região que concentra 70% dos reservatórios mais relevantes, será o melhor outubro desde 2009 (69,2%) e 17 p.p. superior a outubro de 2022”, disse o órgão em relatório ontem.

Comida na mesa

Quem faz supermercado sabe que a vida não está fácil, a despeito dos números do PIB surpreendendo para cima e da queda do desemprego, que ontem recuou para 7,8%. Parte da explicação está na inflação de alimentos em domicílio, que disparou 44,8% entre 2020 e 2022, o dobro do IPCA no período. Este ano, a queda é de apenas 1,8%, segundo Diogo Guillen. Nem de longe devolve a forte alta. Isso ajuda a explicar porque para grande parte dos brasileiros continua difícil botar comida na mesa.

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PRIVATIZAÇÕES E A MUDANÇA DO PAPEL DO ESTADO (II)

Marcus Pestana, O TEMPO

Já discutimos aqui o papel do Estado no desenvolvimento da sociedade moderna e da economia capitalista, onde adquiriu formas variadas em função das peculiaridades históricas de cada país. Nas últimas décadas do século XX, o estrangulamento fiscal do “Welfare State”, a onda neoliberal liderada por Reagan e Thatcher, a dissolução da URSS e do bloco comunista, a globalização, a internet e a emergência da sociedade pós-industrial desencadearam um novo ciclo em que a “Reforma do Estado” ocupou espaço central.

No Brasil, a consolidação de nosso capitalismo tardio e o processo de industrialização por substituição das importações tiveram o Estado como protagonista para suprir as lacunas deixadas por um ainda débil setor privado.

Também, em nosso país, desencadeou-se, nos anos de 1990, um vigoroso processo de reforma do Estado, impulsionado tanto pela crise fiscal quanto pela necessidade de modernização do modelo de intervenção estatal. Programas de desestatização avançaram com a privatização de empresas estatais, venda de participações, concessões públicas e parcerias público-privadas (PPPs).

A provocação que levanto é que não se deve privatizar por privatizar, sem antes responder a três perguntas básicas: Por que? Como? Por quanto?

Vários motivos não excludentes levam governos a privatizar empresas estatais ou se desfazer de participações acionárias: a. convicção ideológica; b. ajuste fiscal; c. atração de investimentos; e, d. ganhos de eficiência e produtividade para o setor e para a economia como um todo.

Os liberais radicais defendem um Estado enxuto, mínimo, e, portanto, a privatização de todas as estatais. A esquerda, na maioria das vezes, confunde público com estatal, e resiste à ideia de que em muitos setores não faz sentido a presença estatal. A partir daí, advoga em favor de um Estado superdimensionado. Sou daqueles mais pragmáticos em busca do Estado socialmente necessário, definido segundo as circunstâncias históricas concretas. A competência e a eficiência não são monopólio público ou privado, e as Lojas Americanas estão aí para provar isto. Mas faria sentido manter estatais como a têxtil América Fabril ou a Livraria José Olympio Editora privatizadas no Governo Figueiredo? Ou a Aracruz Celulose e a Computadores Brasileiros (COBRA) vendidas no Governo Sarney? Teria nexo, em pleno século XXI, o Estado brasileiro produzir diretamente aço, fertilizantes, aviões, minério, telecomunicações, papel entregue à iniciativa privada nos governos Collor, Itamar Franco e FHC? Claro que não. Mas, pragmaticamente ainda faz sentido manter ferramentas como o BNDES, o Banco do Brasil ou a CEF, a Petrobrás e outras poucas estatais.

Certamente, as privatizações atenderam não apenas às convicções ideológicas, mas também atraíram novos investidores e melhoraram a eficiência setorial e da economia como um todo. É só avaliar o desempenho da EMBRAER, da Vale do Rio Doce ou das empresas de telecomunicações. Mesmo os governos do PT privatizaram o Banco do Estado do Ceará, as Usinas de Jirau e Santo Antônio e o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). Já o governo Bolsonaro privatizou a BR Distribuidora e a Eletrobrás.

Falta explorar a privatização como instrumento de ajuste fiscal e as formas de modelagem e precificação no processo de desestatização. Faremos isso.

*Economista e Professor. Ex-Deputado Federal pelo PSDB-MG. Secretário de Estado de Saúde de Minas Gerais (2003-2010). Diretor-Executivo do IFI – Instituição Fiscal Independente do Senado.  

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POR QUE É QUASE IMPOSSÍVEL CORTAR GASTOS ?

Maílson da Nóbrega*, Valor Econômico

A rigidez orçamentária é o verdadeiro calcanhar de Aquiles do regime fiscal da União

Tem sido comum a demanda por corte de gastos do governo federal. No mercado financeiro, alega-se que a isso é necessário, dado que o novo arcabouço fiscal depende excessivamente da elevação de receitas para cumprir metas de resultado primário e de endividamento. Gente com experiência no governo federal diz o mesmo. Outros argumentam que a reforma administrativa reduzirá despesas da União, o que está longe de ser totalmente verdadeiro.

Teoricamente, o clamor está correto. Vários estudos demonstram que o melhor ajuste fiscal é aquele realizado via despesa, pois pode se concentrar em áreas menos essenciais e poupar dos cortes os investimentos e outros programas fundamentais. A opção pela receita eleva a participação do governo na economia e acarreta alocação menos eficientes dos recursos, o que afeta negativamente a produtividade e o potencial de crescimento.

Sucede que no campo das finanças públicas não somos um país normal. A partir da Constituição de 1988, construímos uma rigidez orçamentária (gastos obrigatórios) sem paralelo no planeta. Criamos ou ampliamos a vinculação de recursos para educação, saúde, assistência social, ciência e tecnologia e outras áreas. Instituímos um generoso sistema previdenciário - que hoje consome metade das despesas primárias da União, uma participação sem correspondência no mundo -, elevamos o custo da folha pessoal e estabelecemos programas sociais justificáveis, mas sem avaliar sua viabilidade orçamentária.

A vinculação de recursos a certas atividades, apoiada por grande maioria da sociedade, é um dos absurdos das finanças públicas do Brasil. Trata-se de uma forma primitiva de definir prioridades, que condiciona os parlamentos para sempre. Será que daqui a algumas décadas, com muito menos jovens em idade escolar em virtude da queda da taxa de natalidade, a educação necessitará de tantos recursos quanto hoje ou haverá outras prioridades? O grande apoio da sociedade a essa regra reflete, na verdade, uma desconfiança na capacidade do Congresso de apoiar a destinação de recursos a essa área. Se admitirmos que o Congresso não sabe exercer sua função primordial, qual seja a de aprovar anualmente o Orçamento, que é a peça legislativa mais relevante, como acreditar que possa bem exercer outras funções?

A União é obrigada a destinar à educação 18% da arrecadação líquida de seus impostos. O percentual dos Estados e municípios sobe para 25%. Cometem crime de responsabilidade fiscal os governantes que não obedecerem a tal determinação legal. Poderão parar na cadeia. Em municípios onde a emigração e a queda da fertilidade têm gerado escolas com poucas crianças, não há como gastar toda a verba em atividades normais associadas à educação. Os prefeitos são levados a inventar gastos como pintar várias vezes as escolas ou criar programas que gerem novas despesas. No campo da educação, não faz sentido aplicar no Brasil a moderna técnica de gestão orçamentária, a spending review (revisão periódica de gastos). Se for possível reduzir gastos, a folga terá que ser mandatoriamente despendida, pois é preciso cumprir a regra da vinculação.

No exercício de 2022, os itens obrigatórios representaram 91% dos gastos primários do governo federal, que excluem os encargos financeiros. Agora, a situação se agravou, pois se restabeleceu a política de reajuste do salário mínimo acima da inflação, o que terá forte impacto na Previdência e nos benefícios de prestação continuada. Pior, a política se tornou permanente, pois se eliminou o prazo de duração quando de sua oficialização no governo de Dilma. Sua renovação periódica permitia a discussão sobre a conveniência de continuá-la. Isso não acontecerá doravante. Finalmente, o novo arcabouço fiscal criou um piso para o investimento, o qual, segundo interpretação de muitos, pode ser contingenciado. Mesmo que assim o seja, a maior parte do piso será ocupada pelo Novo PAC, que, segundo o presidente Lula, não estará sujeito a contingenciamento.

Diante de tudo isso, o Orçamento de 2024, recentemente enviado ao Congresso, reservará apenas R$ 55 bilhões para gastos discricionários, ou seja, aqueles sob controle do governo. Desse modo, no próximo exercício, os desembolsos obrigatórios corresponderão a inacreditáveis 98% dos gastos primários. Se considerarmos os encargos financeiros da dívida pública, que são na prática igualmente obrigatórios, a rigidez atingirá 99% das despesas. Claro, o governo pode cortar gastos como os relativos ao café nas repartições públicas e a viagens de servidores em tarefas de fiscalização ou para participar de reuniões fora de Brasília. Pode diminuir pousos e decolagens de aviões da Força Aérea, o consumo de diesel dos navios da Marinha e os exercícios realizados pelo Exército, entre outros. Nada disso será relativamente importante para reduzir despesas.

A inaceitável e insustentável rigidez orçamentária foi criada com amplo apoio do Congresso ao longo do tempo. É coisa rara encontrar parlamentares que conheçam ou liguem o mínimo para o conceito elementar da restrição orçamentária, que significa reconhecer um limite para ampliar o gasto, dado pela arrecadação tributária e pela capacidade de endividamento público. Agora mesmo, está em curso um novo trem da alegria baseado numa emenda constitucional que vai integrar, aos quadros da União, funcionários dos antigos territórios de Rondônia, Amapá e Roraima.

A rigidez orçamentária explica a quase impossibilidade de cortar gastos, bem como a dependência da arrecadação para cumprir metas de superávit primário e a dificuldade de estabilizar e depois de reduzir a relação entre a dívida pública e o PIB. A rigidez é o verdadeiro calcanhar de Aquiles do regime fiscal da União. Sem reduzi-la drasticamente, o Brasil tem um encontro marcado com uma grave crise da dívida pública. Não há, todavia, qualquer preocupação com esse risco, nem no governo nem no mercado financeiro, que nesse campo tem-se guiado, ao contrário, por simples complacência.

*Maílson da Nóbrega foi ministro da Fazenda. É sócio da Tendências Consultoria.

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CHANCE PARA PENSAR EM FAXINA GERAL NOS GASTOS

Claudia Safatle, Valor Econômico

Para Arminio Fraga, não basta ter um ajuste fiscal que coloque a dívida em trajetória de queda

Quase 80% do gasto no Brasil é com Previdência Social e com a folha de pagamentos dos três níveis de governo e nos três Poderes.

Esse é um dado que chama a atenção por ser fora da curva. Na grande maioria dos países a soma das duas despesas se situa na casa dos 60%.

O gasto com saúde, no Brasil, fica aquém dos 4% do Produto Interno Bruto (PIB). Esse é outro número que surpreende. É impossível pretender ter um sistema de saúde universal e gratuito com esse padrão de gasto. Apenas para ter uma ideia, no Reino Unido, ele é de 8% do PIB.

Foi avaliando os números fiscais do Brasil que Arminio Fraga concluiu que não basta ter um ajuste fiscal que coloque a dívida em trajetória de queda. E nota-se que ela não está em queda.

É preciso ir além disso e promover uma faxina geral nos gastos, repensar as prioridades.

“Começou a ficar claro para mim que não era só produzir um saldo primário positivo. O atual governo fala em zerar o déficit, mas o primário”, diz Armínio. Pelo conceito primário não se leva em conta a despesa com juros da dívida.

Aqui, é bom lembrar que Lula teve a oportunidade de discutir zerar o déficit nominal em 2005, no seu primeiro mandato. Na ocasião, o déficit nominal - que é a expressão mais ampla da real situação de solvência do Estado brasileiro - era de 2,96% do PIB e a proposta em discussão era a de zerar esse déficit num prazo de até dez anos.

Estavam envolvidos na articulação dessa proposta, a pedido de Lula, os ministros da Fazenda, Antonio Palocci, do Planejamento, Paulo Bernardo, e Delfim Netto. Foi quando Dilma Rousseff, autorizada por Lula chamou a proposta de “rudimentar” e o assunto foi encerrado.

“ Fiz a contabilidade de fontes e usos de recursos públicos”, prosseguiu Arminio. “E daí para a constatação de que precisamos fazer um redirecionamento geral do gasto foi um pulo”, disse.

Há um bloco potencial de recursos que viria de mais reformas na Previdência, na folha de salários e corte nos subsídios. Se o governo conseguisse eliminar metade dos subsídios, que custam um total de 4% do PIB, e que são injustificáveis do ponto de vista da produtividade e da desigualdade, sobrariam recursos para dar uma acalmada na macroeconomia, com redução dos prêmios de risco e da taxa de juros. E canalizaria o gasto público para as áreas que seriam positivas, seja para a produtividade, seja para a redução das desigualdades. Áreas como saúde, educação e de melhoria da infraestrutura.

Outra área que precisa de mais recursos é a de investimentos, que já foi de 5% do PIB no governo militar e, atualmente, não passa de 1% do PIB. Mesmo o mais liberal dos liberais vai concordar que há necessidade de investimento público, acredita ele.

Nos dois blocos de gasto - Previdência e folha de pagamento - deve ser possível, num período de dez anos, passar dos 80% para 70% do PIB, ou para 60%, que é onde a maioria dos países está.

“E isso traria espaço para se redirecionar os gastos de uma maneira socialmente mais justa,” concluiu Arminio.

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CRÔNICA DE UM ESGARÇAMENTO FISCAL

Rogério F. Werneck, O Globo

Governo aposta que poderá continuar esticando a corda da irresponsabilidade fiscal

Já há material de sobra para se começar a escrever o que promete ser uma longa crônica do preocupante esgarçamento do quadro fiscal que vem tendo lugar no país.

A história remonta ao final de março, quando o governo delineou sua proposta de um novo arcabouço fiscal, com que pretendia se livrar dos rigores do teto de gastos. Prometia conter o déficit primário em 0,5% do PIB, em 2023, zerá-lo, em 2024, e gerar superávits primários de 0,5% e 1% do PIB, respectivamente, em 2025 e 2026.

No frigir dos ovos, uma promessa pífia de um superávit primário acumulado de não mais que 1% do PIB ao longo de todo um mandato presidencial.

Passados não mais que seis meses, o que hoje se constata é que mesmo essa promessa tão pífia parece a cada dia menos crível. Não duraram muito as fantasias de que o governo gastaria bem menos do que lhe permitia o limite ampliado para dispêndio primário que conseguira assegurar com a provação da PEC da Transição.

E que o déficit primário de 2023 poderia ser contido em 0,5% do PIB. A própria equipe econômica desconversou. E já nem fala mais disso.

Na verdade, toda a sequência de metas fiscais acenadas pelo governo em março perdeu credibilidade. Basta ter em conta as expectativas da última Pesquisa Focus, do Banco Central, sobre resultados primários que seriam gerados entre 2023 e 2026. A se julgar pelos valores medianos, o que se espera é que todas as metas prometidas sejam largamente descumpridas.

E que, ao longo do atual mandato presidencial, o governo incorra, de fato, em um déficit primário acumulado de nada menos que de 2,7% do PIB.

O que vem alimentando tamanha deterioração das expectativas sobre a condução da política fiscal?

Em primeiro lugar, a constatação de que, no afã de se livrar a qualquer custo do teto de gastos — sem qualquer preocupação com modulação — e de fazer amplo uso da licença para gastar que lhe facultara a PEC da Transição, o governo se permitiu desencadear um juggernaut de expansão de dispêndio primário recorrente, cujos efeitos avassaladores só agora começa a perceber.

Basta ter em conta que, ao mesmo tempo em que restabeleceu de chofre a vinculação constitucional de gastos com saúde e educação à receita corrente, voltou a impor expansão despropositada aos dispêndios com benefícios previdenciários, ao superindexar de novo o salário mínimo.

Em segundo lugar, a descrença na capacidade do governo de extrair do Congresso a colossal elevação de carga tributária de que agora alega precisar para fazer face à expansão de gastos que deflagrou.

Pode até ser que, a despeito das pressões políticas em contrário, o Congresso, em alguma medida, aceite corrigir iniquidades mais óbvias na legislação tributária vigente. Mas é difícil que se disponha a entregar todo o aumento de carga tributária recorrente que o Planalto almeja.

Inclusive porque, ao sabor de um turbilhão de lobbies de todos os tipos, o Congresso vem aprovando, com grande empenho, sob o olhar, por vezes, atônito, por vezes, conivente do governo, onerosa e caótica distribuição de benesses tributárias, além de farto leque de expansões irresponsáveis de gasto.

Por último, mas não menos importante, não parece nada claro que, à medida que as contas públicas continuem a se deteriorar, haverá um momento em que serão deflagrados mecanismos eficazes de correção de rumo, capazes de repor a política fiscal em rota mais consequente. O governo não parece ter o grau de convicção requerido para fazer a correção que se fará necessária. E, a essa altura, suas prioridades já serão bem outras.

Tudo indica que, na esteira do avanço do ciclo eleitoral, a ala política do governo (leia-se presidente Lula da Silva) estará cada vez mais vidrada na importância crucial de se sair bem nas eleições municipais de 2024, de olho no grande jogo da reeleição, em 2026.

E pronta a continuar apostando que, enquanto houver só esgarçamento, e não ruptura, sempre será possível esticar um pouco mais a corda da irresponsabilidade fiscal.

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BARBÁRIE LIBERADA

Editorial O Estado de S. Paulo

ONU omite-se diante de limpeza étnica do Azerbaijão contra armênios de Nagorno-Karabakh

O enclave armênio de Nagorno-Karabakh ruiu sob o poderio militar da ditadura do Azerbaijão e o silêncio das Nações Unidas e das potências diante de agressões motivadas pelo inconteste objetivo de limpeza étnica. O êxodo de mais de dois terços da população local para a República da Armênia em apenas cinco dias, sob o temor de um novo genocídio, expõe a gravidade de uma crise humanitária que se desenhava havia nove meses e que, agora, se tornou um desafio concreto. Ao omitir-se, a comunidade internacional expôs seu fracasso em promover uma solução civilizatória para um conflito latente há pelo menos três décadas. E pior: consentiu com a barbárie.

Ao final de nove dias de ofensiva azeri, o governo não reconhecido da República Artsakh, como se autodenomina o enclave armênio, emitiu decreto no último dia 28 sobre sua extinção até o fim deste ano. O presidente Samvel Shahramanyan incluiu no texto a orientação para as famílias armênias decidirem sobre sua permanência, sob domínio do Azerbaijão, ou retirada do país. Mais de 65 mil já haviam tomado a única via de conexão da região com a República da Armênia – e com o resto do mundo – em busca de refúgio. Ao restante da população, de 120 mil habitantes, não há alternativa senão abandonar o local onde gerações de cristãos armênios viveram por quase dois milênios.

A dimensão da crise humanitária, portanto, está ainda pela metade. O espectro do genocídio de mais de 1,5 milhão de armênios promovido pelo Império Otomano em 1915 paira com clareza na memória coletiva de um povo que, a duras penas, sobrevivia ao domínio de Estados muçulmanos. Na era soviética, o enclave no Azerbaijão encontrou proteção em Moscou. Mas o desmoronamento da União Soviética desencadeou conflitos entre o Azerbaijão e a República da Armênia sobre o domínio de Nagorno-Karabakh, que se desdobraram em extermínios de civis.

A independência da República de Artsakh, declarada em 1994, jamais foi reconhecida pelas Nações Unidas. Preferiram não mexer nesse vespeiro geopolítico no Cáucaso, onde Irã, Turquia, Rússia, Síria e Estados Unidos se movimentam. A rigor, vigorava um pacto de cessar-fogo desde 2020, até que o governo azeri bloqueou, em dezembro passado, a ligação da região à República da Armênia para impedir o acesso de remédios, combustíveis, alimentos e organizações humanitárias. O quadro estava armado desde então para a violenta expulsão dos armênios de Nagorno-Karabakh, sob ameaça de extermínio.

A operação militar do Azerbaijão durou apenas oito dias – sem que o Conselho de Segurança das Nações Unidas emitisse uma mínima condenação. As Chancelarias das potências não foram além de apelos ao cessar-fogo, alcançado no último dia 20 com mediação russa e desconsiderado pelo ditador Aliyev. O silêncio do Conselho de Segurança – fruto de considerações geopolíticas complexas, entre as quais certamente não figura com destaque a aflição dos armênios étnicos de Nagorno-Karabach – dá a entender que o processo de limpeza étnica na região está liberado. Compreende-se que não é uma situação simples, mas é forçoso notar que, mais uma vez, a ONU se mostra inútil para impedir a barbárie.

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BARRICADAS CONTRA O DIÁLOGO

Editorial O Estado de S. Paulo

Ao valerem-se de piquetes, estudantes em greve na USP agridem o direito de docentes e colegas, extrapolam o espírito de liberdade da universidade e afrontam a história da instituição

A Universidade de São Paulo (USP) tornou-se alvo de uma greve de uma parcela de estudantes indignados e prejudicados pela perda de mais de 800 professores nos últimos nove anos. Nada mais justo que se cobre eficiência do ensino de uma instituição mantida pelos contribuintes paulistas. Porém, ao levantar barricadas nas escolas da USP, inclusive no “território livre” da Faculdade de Direito, os alunos extrapolaram a essência da vida universitária e da cidadania em um Estado Democrático de Direito. Abandonaram o diálogo para aderir à agressão.

Universidades são, por natureza, espaços livres de difusão do conhecimento, do estímulo ao pensamento crítico e do debate respeitoso de ideias. O convívio em seus campi pressupõe perseverança no diálogo, conduzido sob argumentação fundamentada e racional. Tal princípio obviamente não presume nenhuma forma de violência, interna ou externa. Quando optaram por impedir professores de ministrar aulas e colegas de assistir a elas presencialmente, os grevistas escolheram o caminho da força em detrimento da razão.

O movimento levou a direção de faculdades da USP a suspender temporariamente as aulas. Porém, barricadas foram montadas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e em outras unidades, sob a conivência dos docentes que aderiram à greve. Nas Arcadas do Largo de São Francisco, onde há pouco mais de um ano houve comovente ato em defesa da democracia contra os arreganhos bolsonaristas, o professor titular de Direito Financeiro Fernando Scaff foi barrado por estudantes, como reportou o Estadão. “São alunos de Direito impedindo um direito fundamental, de ir e vir”, constatou.

Não há dúvidas sobre a relevância da pauta de reivindicações. A USP perdeu 818 acadêmicos entre 2014 e 2023, algo em torno de 15% de seu corpo docente, enquanto manteve constante seu total de alunos. O período para a graduação foi postergado pela ausência de professores para ministrar disciplinas, e cursos como o de línguas japonesa e coreana acabaram cancelados pela mesma razão.

A demanda pela elevação do valor das bolsas para os estudantes de baixa renda, em uma universidade cujo acesso deve se expandir e diversificar cada vez mais, tem mérito. Da mesma forma, há consistência na reivindicação por melhorias no Hospital Universitário, acrescentada pelos alunos da Faculdade de Medicina. Tais pautas não são refutadas, mas endossadas pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior, que se recusou a responder com força policial a um movimento que se vale da força das barricadas. Suas ponderações e pedidos de paciência, porém, não tiveram a repercussão esperada na mais recente tentativa de diálogo.

A rigor, a USP não pode ser acusada de negligência. A universidade enfrenta crise financeira há anos, refletida em uma folha de pagamentos equivalente à maior parte de sua receita, advinda de parte da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). À situação fiscal somou-se a suspensão de contratações durante a pandemia. Uma vez reaberta, a absorção de novos professores deve seguir regras protocolares, e não há alternativa expedita senão a absorção de docentes temporários – outra queixa dos estudantes.

O reitor Carlotti prometeu repor todas as 818 vagas em aberto até o fim de 2024. Não há dúvidas sobre o longo período. Mas, em se tratando de uma instituição pública ciosa de sua liberdade de cátedra e imbuída de seus princípios de responsabilidade, tampouco pode haver improvisos. Não foi por acaso, mas reflexo de sua integridade e sua produção acadêmica, a recente inserção da USP entre as 100 melhores universidades do mundo em dois rankings internacionais.

A agressividade do movimento estudantil não condiz com os 89 anos de uma instituição de excelência no ensino superior e na pesquisa científica ao desenvolvimento de São Paulo e do Brasil. Barricadas e agressões verbais e virtuais não fazem sentido quando se dão em uma casa onde imperam a liberdade e o diálogo. “Prefiro pensar a USP como uma universidade que defende a liberdade, até de divergir, mas conversando”, ponderou o reitor Carlotti ao Estadão. “Formamos os nossos alunos para que sejam críticos, mas esse tipo de movimento, que usa a força, não cabe dentro da USP.”

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O STF ENTRE O IDEAL E A REALIDADE

Editorial O Estado de S. Paulo

Barroso apelou à independência e à harmonia entre os Poderes. Espera-se que seja coerente e contenha abusos que transformaram o Judiciário de poder moderador em poder tensionador

Segundo os apresentadores da TV Justiça, a posse de Luís Roberto Barroso como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) foi das mais emocionantes da história. Entre a abertura, com o Hino Nacional, e o encerramento, com Todo Sentimento, na voz de Maria Bethânia, o decano Gilmar Mendes falou em “democracia defensiva” (eufemismo para “democracia militante”, categoria da Constituição alemã, não da brasileira), fez uma ofensiva contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e brindou o “grande estadista” Lula da Silva. Na presença dos presidentes da República, da Câmara e do Senado, pediu harmonia e pacificação. Enquanto isso, na Câmara tramitava uma PEC dando poder ao Congresso de derrubar decisões do Supremo, e o Senado aprovava o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, que o STF havia declarado inconstitucional. O choque de realidade dimensiona o desafio do novo presidente.

Barroso louvou a Justiça brasileira como uma “das mais produtivas do planeta”, julgando 30 milhões de processos por ano. Mas quantidade não significa produtividade. Ela é também das mais caras e lentas. Nenhuma corporação no Brasil (quiçá no mundo) extrai tantos privilégios da lei quanto a responsável por aplicá-la igualmente a todos. O Brasil está mal nos rankings de segurança jurídica. Uma pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros revela que 52% dos juízes de primeiro grau não consideram a jurisprudência e 55% dos ministros de tribunais superiores não se pautam por súmulas. Ou seja, em sua maioria, os juízes do piso não seguem as cortes e os do topo não seguem nem a si mesmos.

Tudo isso se dá no contexto do tumulto político e institucional que tomou o País nos últimos anos. Desde que Barroso é ministro do Supremo, o Brasil passou pelas Jornadas de Junho, o petrolão, o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro. Muitas vezes o STF ajudou a restaurar a normalidade institucional – por exemplo, garantindo prerrogativas dos Estados na pandemia ou pondo fim ao orçamento secreto –, mas, no afã de combater abusos ou omissões do Ministério Público, do Congresso e do Executivo, cometeu abusos que minaram essa normalidade.

Em meio à espiral de judicialização da política, retroalimentada pela politização da Justiça, Barroso falou em contenção do Judiciário, mas deu mostras de incontinência ao listar prioridades, como se fosse candidato num palanque: combate à pobreza, desenvolvimento sustentável, investimentos em educação básica, ciência, saneamento e moradia e retomada da liderança ambiental do Brasil. São metas louváveis, claro, mas para um presidente da República, e não para o presidente do STF. O povo já elegeu seus representantes no Executivo e no Legislativo. Boas ou ruins, as decisões são desses mandatários. À Corte cabe, se provocada, garantir sua consonância com a Constituição.

O problema é como entender essa consonância. Barroso, em sua obra Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, afirma que o Direito é política, enquanto produto da vontade da maioria na Constituição, e não é política, porque não se pode submeter “a noção do que é correto e justo à vontade de quem detém o poder”. Entre esse “é” e o “não é” seria natural deduzir a demarcação entre os Poderes: o Direito é política porque o Legislativo tem autonomia para positivar a vontade da polis, e não é porque o Judiciário tem autonomia para interpretá-la nos conflitos particulares. Mas Barroso conclui pela “fluidez da fronteira entre política e justiça”: porque o Direito é política, ante insuficiências do Legislativo, cabe ao Judiciário normatizar o que é “correto e justo”. Com esse tipo de hermenêutica, a Corte já deu mostras de impaciência com seu papel de guardiã da Constituição e quis ser sua reformadora.

Barroso aludiu à sua fórmula predileta para descrever a magistratura: a “vanguarda iluminista que empurra a história na direção do progresso civilizatório”. Mas, como sempre e mais do que nunca, o País precisa é de um Judiciário que se atenha às normas e competências traçadas pela Constituição.

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BOA ENERGIA

Editorial Folha de S. Paulo

Matriz brasileira é ímpar, mas não berço esplêndido para ignorar crise climática

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como todo o Brasil, tem motivos para comemorar a posição privilegiada do país na transição energética de que o planeta necessita. Mas isso não dá direito a ufanismo nem miopia fora de hora.

"Nós já passamos eles [sic] no milho, já passamos em soja e já passamos em algodão. Nós vamos passar na questão energética", vangloriou-se o mandatário, em comparação com os Estados Unidos, ao assinar na quarta-feira (27) contratos de transmissão de eletricidade.

A verdade é que não precisamos nos medir com os EUA, porque já os batemos nesse quesito, e faz tempo. Não há no mundo economia de grande porte com matriz energética de fontes renováveis comparável à do Brasil.

Por aqui temos ainda 50,8% da energia consumida proveniente de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral), que agravam o efeito estufa. Já as fontes renováveis (hidroeletricidade, biomassa, eólica, solar) respondem por 47,4% da demanda, segundo o Balanço Energético Nacional 2023.

A energia mobilizada nos EUA tem 79% de origem fóssil, ante meros 13% renováveis. No mundo, a proporção fica em 80% e 15%, respectivamente (as diferenças para 100% correspondem a outras fontes não renováveis, como a nuclear).

Quando se tem em mente a transição energética no contexto da emergência climática, porém, os combustíveis fósseis ganham proeminência por serem, de longe, os principais emissores de carbono no mundo. Não é o caso do Brasil, cuja maior contribuição para o aquecimento global está no uso da terra.

Em poucas palavras, é o avanço da fronteira do agronegócio que propulsiona o desmatamento, nossa maior fonte de poluição climática. Também pesam o metano emitido na pecuária, os fertilizantes e manejo inadequado do solo, mas a parte do leão cabe à abertura de áreas para pastos e agricultura.

Lula até teria vantagem para contar aqui também, dada a redução de 48% na devastação da Amazônia nos oito primeiros meses de seu governo —ainda que a boa notícia seja esmaecida por altas em derrubadas do cerrado. E a estiagem na floresta amazônica faz temer por uma explosão das queimadas.

O governo petista se contradiz ao vender transição energética com a mão esquerda e investir na extração de petróleo novo com a direita. Se a meta é contribuir para enfrentar a crise climática, essa prioridade tem de ser revista.

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A ORDEM DOS FATORES

Editorial Folha de S. Paulo

Diálogo do governo com BC é positivo, mas alcance da queda do juro depende do 1º

É positivo que tanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, falem em harmonia na política econômica. Foi assim que se manifestaram por ocasião da reunião que tiveram com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na quarta-feira (28).

O BC vem alertando para o risco de descumprimento das metas fiscais, em especial do intento improvável de zerar o déficit orçamentário do governo federal em 2024. Qualquer deslize nessa frente poderá pressionar a inflação e limitar o espaço para a queda da taxa Selic, hoje em 12,75% ao ano.

A autoridade monetária e o próprio Campos Neto foram alvo de repetidos ataques de Lula, que questionou o nível dos juros e a meta de inflação, felizmente mantida em 3% para os próximos três anos. Desde a posse, o petista ainda não havia concedido audiência ao chefe do BC. A disposição ao diálogo agora pode abrir novos caminhos.

Haddad, por seu turno, vê-se isolado no governo na defesa do déficit zero. Interessa mostrar unidade com o BC para convencer o Palácio do Planalto de que não há espaço para flertes com a irresponsabilidade fiscal. Como sempre, gastar mais é o que querem o PT e a ala política do Executivo.

Com a união das duas autoridades da área econômica em defesa da preservação das metas fiscais, é mais provável que o presidente se disponha a apoiá-las, ao menos por ora. Para tanto, ajuda que a economia continue a mostrar vigor e que a popularidade do governo se mantenha satisfatória.

Cumpre explorar, no entanto, o que querem dizer Campos e Haddad quando falam em harmonia. Apesar das juras de alinhamento, o equilíbrio entre ambos é precário.

A lógica da Fazenda até aqui foi a de sancionar as prioridades de gasto do governo e buscar fechar as contas por meio de significativo e improvável aumento da arrecadação. Haddad indica desejar que o BC se mostre flexível e conceda o benefício da dúvida, aliviando os juros com base na meta fiscal.

Já Campos não quer antagonizar o governo, no que acerta. Mas há limites para o que o BC pode fazer. Qualquer afrouxamento em desalinho com a mecânica do sistema de metas de inflação poderia impactar os juros de longo prazo e a taxa de câmbio, o que levaria a efeito oposto ao que se busca.

Na ótica da política monetária, harmonia implica que a gestão das finanças públicas faça a sua parte, preferivelmente por meio de controles mais austeros nos gastos para que então haja espaço para juros menores de modo sustentável.

Na conjuntura atual, diante do crescimento exacerbado das despesas e do déficit orçamentário, a ordem dos fatores importa.

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A OPORTUNIDADE DE BARROSO NO COMANDO DO STF

Editorial O Globo

Novo presidente poderá contribuir para resgate da normalidade institucional e Judiciário mais ágil

O ministro Luís Roberto Barroso assume a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) diante de um ambiente político bem menos conflagrado que o encontrado pela antecessora, Rosa Weber. Durante a gestão de Rosa, o país passou pela eleição mais polarizada de sua História recente, o STF foi alvo dos ataques do 8 de Janeiro, e a democracia brasileira resistiu em boa parte graças à ação do próprio Supremo perante a ameaça golpista. Esse momento — ainda bem — passou. Agora cabe a Barroso, afastada a ameaça antidemocrática, aproveitar o clima mais sereno para continuar, em sua gestão, a promover o resgate da normalidade institucional.

Em seu discurso de posse, ele demonstrou entender a missão e adotou um tom conciliador ao tratar dos temas que hoje polarizam a sociedade. “O combate eficiente à criminalidade não é incompatível com o respeito aos direitos humanos. O enfrentamento à corrupção não é incompatível com o devido processo legal”, afirmou. “Estamos todos no mesmo barco e precisamos trabalhar para evitar tempestades e conduzi-lo a porto seguro. Se ele naufragar, o naufrágio é de todos.”

Resgate da normalidade institucional, vale dizer, não significa ausência de conflitos. Numa democracia, eles são esperados e naturais. Desde que arbitrados dentro das regras, apenas traduzem a vitalidade das instituições em seu zelo por atender às demandas da sociedade. O essencial é que cada uma cumpra seu papel, uma equilibrando a outra, como na célebre imagem dos freios e contrapesos que ilustra os mecanismos intrínsecos à democracia. Freios e contrapesos, por sinal, sempre exercem força uns sobre os outros, ainda que pareçam estáticos.

O Congresso, com representantes eleitos pelo povo, é e continuará a ser a instituição mais importante da democracia. Em princípio, deve ser o palco das discussões sobre as questões mais relevantes e controversas. E, na maioria das vezes, é. Mas é inegável que o Supremo adquiriu nos últimos anos protagonismo em inúmeros casos, despertando críticas à judicialização excessiva ou acusações de politização e ativismo judicial que não podem ser ignoradas.

Muitas vezes isso se deve tão somente à omissão do Parlamento, que faz acorrer ao STF demandas espinhosas evitadas pelos congressistas. Mas não apenas. Em seu discurso, Barroso chamou atenção para uma característica que distingue o Brasil de outros países. Nossa Constituição é exaustiva ao tratar dos assuntos mais diversos: sistemas econômico, tributário e previdenciário, educação, meio ambiente, cultura, comunidades indígenas, família, criança, adolescente, idoso e por aí afora. “Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política e trazê-la para o Direito”, disse. “Nenhum tribunal do mundo decide tantas questões divisivas da sociedade. Essa é a causa da judicialização ampla da vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional.”

Além de decidir questões constitucionais, a Corte ainda conduz inquéritos e julga ações penais. Tudo isso se acumula num acervo de quase 24 mil processos que aguardam julgamento. É verdade que esse estoque tem diminuído, como resultado em parte de restrições ao foro privilegiado, em parte de julgamentos das ações penais pelas turmas de ministros. As novas regras adotadas na gestão de Rosa Weber para pedidos de vista e decisões monocráticas (com prazos mais rígidos) também contribuirão para trazer maior agilidade. O desafio de alcançá-la persiste, porém. Não apenas no STF, mas em todo o Judiciário.

Barroso demonstrou ter plena consciência disso. Comprometeu-se a “aumentar a eficiência e a celeridade da tramitação processual” e disse já mapear “gargalos e pontos de congestionamento”. “Vamos enfrentá- los”, afirmou. “Não há lugar para celebração aqui: precisamos melhorar a qualidade do serviço que prestamos à sociedade brasileira.” Quanto ao próprio Supremo, ele já defendeu no passado que o tribunal deveria julgar não mais de 500 processos por ano (tem julgado mais de 70 mil). Tal meta dependeria de alterações na lei, mas mudanças regimentais já ajudariam a dar maior agilidade à Corte.

Um efeito paradoxal dos ataques à democracia e do 8 de Janeiro foi terem contribuído para fortalecer o espírito de união entre os ministros do STF. Basta notar o discurso repleto de elogios do decano do tribunal, ministro Gilmar Mendes, saudando em nome da Corte o novo presidente, outrora seu desafeto. Barroso deveria aproveitar o momento de união para pôr em marcha sua agenda de agilidade no Judiciário. O Brasil só teria a ganhar.

Mais importante foi a atitude conciliadora que adotou no discurso, proferido ao lado dos presidentes dos demais Poderes — Luiz Inácio Lula da Silva, da República, Rodrigo Pacheco, do Senado, e Arthur Lira, da Câmara. É verdade que o Supremo brasileiro, em contraste com outras cortes constitucionais do mundo, tem o dever de analisar as mais variadas questões sempre que instado. Mas é fundamental que, nessa hora, o tribunal mantenha o comedimento e, sem se furtar a seu dever, evite invadir atribuições dos legisladores. Novamente, Barroso demonstrou ter ciência do desafio: “É imperativo que o Tribunal aja com autocontenção e em diálogo com os outros Poderes e a sociedade, como sempre procuramos fazer e pretendo intensificar. Numa democracia, não há Poderes hegemônicos. Garantindo a independência de cada um, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais pelo bem do Brasil”. Que ele saiba transformar suas palavras em atos.

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DAR O EXEMPLO

Cristovam Buarque, Veja

Lula trouxe o Brasil de volta ao mundo, mas só discurso não basta

Na recente reunião do G20, o presidente Lula apresentou três eixos para o mundo: desenvolvimento sustentável, reforma das instituições de governança global e inclusão social com combate à desigualdade. Na semana seguinte, na ONU, reafirmou a necessidade desse esforço internacional. Graças à sua história pessoal, às características do Brasil e ao vazio de outras lideranças, nesses nove meses de governo Lula se afirmou como o líder mundial na luta contra a desigualdade social. Essa liderança será consolidada quando, além do discurso, ele mostrar que é capaz de conduzir o país na direção do que defende para o planeta.

Mas, quando ouvem o discurso contra a desigualdade, os demais presidentes olham para Lula sabendo que somos campeões em concentração de renda, nosso IDH está na 87ª posição, que esse quadro social não mudou ao longo das últimas décadas. Têm conhecimento de que a última edição do Estudo Internacional de Progresso em Leitura (Pirls) mostra os alunos brasileiros no 4º ano com média equiparada à pior pontuação entre todos os países. Sabem que essa péssima média esconde a tragédia da desigualdade conforme a classe social da criança. Eles são informados de que sucessivos governos das últimas décadas não tentaram corrigir essa realidade; e, por experiência histórica em seus países, sabem que a educação de base com qualidade para todos é o caminho para superar a pobreza e a desigualdade.

“O presidente precisa mostrar que a desigualdade social é fruto da desigualdade escolar”

Para consolidar sua liderança, Lula precisa convencer o Brasil de que a desigualdade social é produto da desigualdade escolar, e de que a distribuição de renda passa por educação de qualidade igual para todos. O Bolsa Família reduz a penúria e tira o Brasil do mapa da fome, mas é uma solução sem impacto estrutural sobre a concentração de renda, como pode ser observado nos quase 25 anos desde sua adoção inicial no Brasil. Basta governo insensível ou inflação para trazer a fome e a penúria de volta. Só com educação de base com qualidade para todos — o morador da periferia em escola de máxima qualidade equivalente ao morador dos condomínios — será possível dispor de estrutura social distributiva.

O presidente trouxe o Brasil de volta ao cenário mundial, mas seu carisma não é suficiente para manter sua liderança. Precisa não apenas defender boas causas, mas também inspirar o mundo com boas práticas. Precisa ser aplaudido pelo discurso e respeitado pelo exemplo: iniciar a implantação de estratégia para a construção de um sistema nacional de educação de base com qualidade e equidade, independentemente da renda e do endereço. Ele não terá tempo para fazer essa revolução em todo o país, mas pode mostrar que está executando, por cidades, a estratégia que levará o país a contar, dentro de alguns anos, com um Sistema Nacional de Educação de Base que atenda igualmente a todos os brasileiros. Nos três anos que faltam de seu mandato, ele pode implantar esse sistema nacional em até 500 pequenas cidades.

O mundo verá que, além de denunciar a desigualdade, ele executa política pública que encorpa seu discurso. Caso contrário, a fala cairá no vazio, tanto quanto as falas de presidentes americanos falando de paz e, simultaneamente, promovendo guerras.

Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861

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sexta-feira, 29 de setembro de 2023

SEM POSE PARA FOTO

Editorial O Estado de S. Paulo

Reunião entre presidente Lula e Roberto Campos Neto indica transigência, não aproximação real

O mínimo que se espera da relação entre os presidentes da República e do Banco Central (BC) num regime democrático é o diálogo constante. Não para que o Planalto imponha uma linha de atuação à autoridade monetária, muito menos que o BC opine sobre as composições políticas do Executivo. A interlocução frequente é a forma de endossar a busca por um objetivo comum no governo.

Nesse sentido, a aproximação de Lula da Silva e Roberto Campos Neto é carregada de simbolismo num momento em que encontrar soluções para atingir o equilíbrio fiscal é uma das tarefas mais complexas do governo. Obviamente o sinal teria sido mais adequado se refletisse de fato uma agenda comum, e não apenas uma concessão de Lula a seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como ficou claro.

Haddad teve de insistir sobre a necessidade do encontro, Campos Neto apelou em carta por uma audiência, e Lula da Silva afinal aceitou receber no Planalto o presidente do BC. Pela primeira vez estiveram frente a frente, em reunião fechada, com retardo de nove meses e sem a divulgação da tradicional foto de aperto de mãos entre sorrisos. Foi uma condescendência, não a celebração de uma nova fase.

Até agora o que se sabe da reunião é apenas o que Haddad se permitiu falar. Foi, segundo afirmou, um encontro institucional “produtivo e cordial”. Aproveitou para deixar nítida sua torcida para que se torne periódico. De qualquer forma, um avanço. Principalmente para o ministro, que poderá recorrer com maior desenvoltura ao presidente do BC para auxiliá-lo no convencimento de parlamentares sobre a importância da aprovação no Congresso de medidas para aumentar a arrecadação.

O ritmo de afrouxamento da taxa básica de juros (Selic) depende também, em grande parte, das expectativas sobre quão próximo de cumprir a meta fiscal estará o governo. Na última decisão, o Comitê de Política Monetária deixou muito claro que o corte de juros não ficará acima do 0,5 ponto porcentual nas últimas duas reuniões previstas para este ano.

Não fossem, aliás, os dois cortes recentes, nessa mesma magnitude, dificilmente o presidente Lula teria aceitado receber Campos Neto, a quem criticou inúmeras vezes, de forma rude e impaciente, por causa da opção do BC pela austeridade monetária como garantia de uma inflação sob controle. Mesmo nas críticas, raras vezes dirigiu-se a Campos Neto pelo nome, preferindo usar a desrespeitosa expressão “aquele cidadão”.

Indicado para o cargo pelo governo anterior, Campos Neto permanecerá no BC até o fim do ano que vem, por força dos mandatos não coincidentes. É a primeira vez que isso acontece desde que a lei da autonomia do Banco Central entrou em vigor, em 2021. Não está sendo um início amistoso, mas, ao menos, tem servido para evidenciar que as decisões da autoridade monetária têm conseguido se revestir de critérios técnicos, apesar da grande pressão política.

Não é possível saber por quanto tempo a bandeira branca ficará hasteada no Planalto. Mas, enquanto estiver suspensa a artilharia contra o Banco Central, é possível que se reduzam as especulações no mercado financeiro. Deveria ser esse o padrão.

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