A desistência de Joe Biden me fez refletir sobre a velhice. Não preciso dele; afinal, é dois anos mais novo que eu. Usaria o caso num debate sobre o tema de que participei no Museu do Amanhã. A mesa tinha um título atraente: “Quantas vidas há numa vida?”. Sugeria que podemos nos inventar muitas vezes. Comecei me distanciando um pouco do título, pois acho a velhice ativa uma exceção na sociedade moderna. Concordo com as teses básicas do melhor livro escrito sobre o tema: “A velhice”, de Simone de Beauvoir.
Num sistema econômico que valoriza o vigor e a beleza, há uma forte tendência a marginalizar os velhos. O vigor se vai com os anos, e nos tornamos fisicamente invisíveis, como se a vida fosse uma longa viagem no metrô de Londres. Biden fez bem em deixar o páreo. A campanha giraria em torno de sua idade e capacidade cognitiva. Agora, isso virou um problema de Trump.
O ensaio de Simone fala também de sociedades que valorizam os velhos. Não é nosso caso. De vez em quando, me chamam de velho maluco ou de múmia. Não me importo, pois na vida política sempre me chamavam de “viado” e “maconheiro”. De algo sempre chamarão, pois é inesgotável a lista de preconceitos.
A antropóloga brasileira Mirian Goldenberg trabalha há 30 anos com o tema da velhice. Segundo suas pesquisas, em circunstâncias de estabilidade financeira e com saúde, os velhos são tão felizes quanto os mais novos. Parece que o problema é a meia-idade.
Não tenho visão romântica nem pessimista. Um personagem que me impressionou na literatura americana é o velho Santiago, em “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Ela pesca um enorme peixe, mas, depois de tantas batalhas, chega à praia apenas com o esqueleto.
São felizes os que chegam à praia com filhos e netos queridos. Mas também alguns são alvejados por um sincericídio que assusta suas famílias. Clarice Lispector tem um belo conto chamado “Feliz aniversário”. É uma festa em torno da matriarca de 89 anos. Em determinado momento, ela cospe no chão. Há um constrangimento. Pede um copo de vinho, há certo espanto, e insulta toda a família:
— Cornos e vagabundas.
Ezequiel Neves contava em Minas a história de um avô que, no almoço de domingo, com toda a família reunida, disse para a filha:
— Olímpia, quer saber de uma coisa: “Vai tomar no cu”.
Biden fez bem em saltar do barco. Não tanto pelos lapsos que viriam, porque a memória sempre trai os muito velhos. O problema era sua condição de presidente e o poder do sincericídio:
— Putin, quer saber de uma coisa…
Ele deixará de ser o homem mais poderoso do mundo. Mas ainda será influente e poderá se dar ao luxo do tempo livre, do contato com os netos. No último debate presidencial de sua vida, afirmou que jogava golfe melhor que Trump. Não veremos uma partida entre os dois nos próximos meses. Mas é bom se preparar, pois Trump já está com 78 anos, tem seus lapsos de memória, e, quem sabe, os dois possam se encontrar em campo neutro para resolver essa grande questão que surgiu no debate presidencial: quem é melhor no golfe?
Naquele encontro no Museu do Amanhã, dedicado a professores, enfatizei algumas teses que favorecem uma boa relação com a velhice: exercício físico, alimentação saudável e um bom sono. Não são antídoto contra a monotonia e falta de graça. Nosso grande adversário, por causa dos anos e experiência vivida, é supor que sabemos tudo. A curiosidade pode nos manter vivos, com uma ponta de bom humor indespensável à reta final.
Como veem, posso falar algo edificante sobre a velhice que nos abre alguns horizontes no século XXI. Na Holanda, foi criado um bairro para pessoas com demência. Imaginem, enlouquecer daqui a pouco significará apenas mudar de bairro. Ou, se conseguirmos enlouquecer os vizinhos, nem será preciso mudar.
Artigo publicado no jornal O Globo em 29/07/2024
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