Nos últimos 20
anos, para quem tem capital, mesmo pequeno, foi mais fácil e seguro viver de
renda do que tentar empreender
Este texto é sobre
uma história simples, mas que sugere reflexão, contada pelo senhor D. Ele
começa com um agradecimento aos três presidentes do Banco Central dos últimos
dez anos: Alexandre Tombini, Ilan Goldfajn e Roberto Campos Neto,
respectivamente nomeados por Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro.
No início, a
narração dele parece irônica, própria de um crítico da política de juros altos
do BC. Mas em seguida ele faz um relato detalhado de seus ganhos financeiros em
dez anos. Fica uma dúvida sobre a ironia.
O senhor D conta que
em 2014, aos 55 anos, decidiu antecipar sua aposentadoria como empregado
celetista para abrir um negócio, uma pequena metalúrgica de precisão, sua área
de especialização. Ficou animado com a expectativa de criar a empresa com o
dinheiro que receberia de Fundo de Garantia, férias atrasadas e outras
indenizações. Mas surpreendeu-se ao ver que, feitas as contas, acabou com uma
bolada de R$ 3 milhões, incluindo aí poupança que já tinha no banco e indenização
da mulher, a senhora D, que também optou pela aposentadoria antecipada.
Após
aplicar os R$ 3 milhões em um fundo de renda fixa - ele não aceitou a sugestão
do gerente de diversificar a aplicação -, D decidiu tirar algumas semanas de
descanso com a mulher antes de começar a cuidar de burocracias para abrir a
empresa, alugar galpão e comprar ferramentas e máquinas, além de buscar a
contratação de cinco ou seis empregados para iniciar a operação.
Dois meses se
passaram e D observou que o saldo do fundo de renda fixa havia aumentado para
R$ 3,06 milhões, ou seja, havia ganho R$ 60 mil em dois meses sem mexer uma
palha. “Bateu uma preguiça de abrir a metalúrgica”, escreveu D, que foi adiando
os planos de se tornar um pequeno empresário. Dois anos depois, no fim de 2017,
o saldo da aplicação havia subido para quase R$ 4 milhões, na verdade exatos R$
3,84 milhões, embora ele tenha feito resgates de uns R$ 230 mil ao longo dos
dois anos para complementar as aposentadorias dele e da mulher.
À preguiça juntou-se
a “gula”, e D decidiu tentar viver de renda. Ficou assustado durante a
pandemia, quando os juros nominais caíram para 2% ao ano, e os reais ficaram
negativos, mas considera que até hoje está dando certo. Por isso, D e a mulher
agradecem aos três presidentes do Banco Central desses dez anos, que mantiveram
os juros elevados. No mês passado, o saldo do fundo estava em R$ 6,19 milhões,
mesmo com D fazendo resgates mensais que variaram de R$ 12 mil a R$ 17 mil.
Claro que, ao ter
falta de coragem para abrir a metalúrgica, D perdeu a chance de se tornar um
multimilionário, o que ocorreria se tivesse sucesso no empreendimento,
conseguisse crédito barato e mostrasse competência para enfrentar a
concorrência de peças importadas. Mas ele está feliz. Preferiu a segurança de
viver de renda e ter uma trajetória mais simples de pequeno milionário em vez
de assumir riscos para tentar ser grande. Não abriu a empresa e não criou
empregos, mas teve dez anos tranquilos, vivendo de renda. E o país deixou de
ganhar uma indústria, ainda que pequena.
O caso do senhor e
da senhora D ajuda a entender um dos efeitos dos altos juros reais no país nos
últimos 20 anos: para quem tem capital, mesmo pequeno, foi mais fácil e seguro
viver de renda do que tentar empreender. Desde 2003, as taxas fixadas pelo
Banco Central sempre superaram a inflação, com uma única exceção, em 2020, por
causa da pandemia da covid-19 (ver gráfico).
No período citado
por D, de 2015 até agora, a inflação acumulada atingiu 70,6%. O saldo do fundo
de renda fixa escolhido por ele, mesmo não sendo um campeão de rentabilidade,
cresceu 106%, embora D tenha feito resgates que somaram mais de R$ 1,4 milhão
nos dez anos. Por isso, irônicos ou não, ele e a esposa são gratos a Tombini,
Ilan e Campos Neto. Apreciam a atual expectativa do mercado de elevação da
Selic, principalmente depois do crescimento surpreendente do PIB no segundo
trimestre, e esperam que o próximo presidente do BC, Gabriel Galípolo, mantenha
a política de juros reais.
PS: A
narração do senhor D pode ser fictícia, mas os números são verdadeiros e
qualquer semelhança com fatos reais não é mera coincidência.
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