Escassos dezembros. Outros meses também não se repetirão
muito. Mas o clima de fim de ano sempre nos força a um balanço, ao suspiro de
como passa rápido o tempo, ao espanto com as surpresas da vida
Considero-me feliz por ter passado um fim de semana colado à
TV, vendo o fim de uma longa ditadura, as pessoas festejando nas ruas de Damasco, os
presos saindo das masmorras, bandeiras, gritos, exilados preparando a volta.
Pensei em escrever sobre a Síria. Na verdade,
estou lendo o livro de Clarissa Ward, uma repórter de TV que conta suas
incursões clandestinas para documentar a oposição a Bashar
al-Assad. À noite, depois de enviar suas reportagens, ela costumava se
indagar como os americanos receberiam aquilo, na hora do jantar, ou mesmo
levando as crianças para a cama. Tudo tão distante.
Imagina escrever sobre a Síria para o Brasil, sobretudo para
nossa cidade envolta numa onda de violência arrasadora. Há algum tempo, o Rio
tem uma Faixa
de Gaza, e as pessoas já morrem baleadas dentro de hospitais, como a médica
da Marinha Gisele Mendes de Souza e Mello. Ela foi atingida por um tiro de
pistola. Bala perdida, como tantas outras que acham corpos inocentes.
Vivemos numa cidade distópica, e o absurdo de seu cotidiano
se espalha para o Brasil com incrível rapidez. Em São Paulo, a PM
joga o homem de uma ponte; na Bahia, um vereador joga dinheiro pela janela na
chegada da Polícia
Federal. Nas comunidades do Rio a polícia combate uma quadrilha forte de
ladrões de carro, dirigida por Fernandinho Beira-Mar, que está encarcerado há
23 anos. Em Brasília,
deputados fazem uma rebelião para manter suas emendas sem rastreabilidade e
transparência.
Não cabe mais a pergunta ingênua: onde vamos parar? Já
estamos numa situação inaceitável, e as elites ainda não descobriram que é
preciso desvendá-la com urgência. E finalmente fazer alguma coisa; antes que as
pessoas deixem de se importar com o que é real e o que é fantasia, antes que
simplesmente deem as costas para os acontecimentos. Vamos usar uma tática de
avestruz? Fogos ou bombas? Os gatos são mais sábios, correm dos dois.
Vivemos o momento em que a dívida da redemocratização com
uma política democrática e eficaz de segurança precisa ser paga, ou ela ameaça
devorar a própria democracia. Não sei se a pura criação de um sistema nacional
de segurança pública, associando governos federal e estaduais, resolverá o
problema. No momento, a ideia caminha muito lentamente. Um projeto desse tipo
demanda discussão ampla. Secretários de Segurança fazem sugestão. Ótimo. Alguns
governadores rejeitam a ideia com medo de perder autonomia.
Pode chegar um momento em que a maioria dos estados aceita o
projeto. Por que não realizá-lo apenas com os que aceitam? Por que não
antecipá-lo com governos que pedem socorro, como o Rio de Janeiro? As pesquisas
mostram que, ao lado da economia, a segurança é o problema central para a
maioria dos brasileiros. Por que não tratá-lo com a urgência necessária?
Sempre haverá alguém argumentando que a violência é um
fenômeno superficial com causas profundas. Por que não defender essa tese
abertamente, apontar as causas e os caminhos para resolvê-las? A hipótese de
que as pessoas estão preocupadas com algo que não merece um esforço de peso é,
no fundo, uma arrogância intelectual que não leva em conta o que se passa no
cotidiano. Vivemos numa cidade ocupada parcialmente por milícias e traficantes.
Para grande parte de nosso povo, não existe outra lei que não a dos grupos
armados: é preciso sobreviver em silêncio e cabisbaixo.
É reconfortante ver a ditadura síria ir para o espaço, mesmo
sabendo que o futuro do país ainda é uma incógnita. O fim de uma ditadura é
algo para celebrar. Mas quando mesmo nos livraremos dos pequenos tiranos que
dominam nossas comunidades? Quando veremos o povo festejar sua liberdade?
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