sábado, 31 de dezembro de 2022

MOURÃO TENTA LIMPAR A PENÚLTIMA SUJEIRA DEIXADA PELO FUJÃO BOLSONARO

Andrei Meireles, OS DIVERGENTES

Jair Bolsonaro só é corajoso para a tribo que ainda o idolatra e acreditou na lorota de que ele seria um mito capaz de eliminar os maus costumes políticos e a escandalosa corrupção brasileira. Nessa sexta-feira (30), enquanto seus adoradores perdiam de vez o prumo, ele aproveitou sua última mordomia presidencial para fugir de crimes e pesadelos para a Flórida, paraíso de déspotas e corruptos de variados matizes das republiquetas de banana da América Latina. Vergonha.

Com todos seus desmandos, ele cometeu a última covardia ao nem tentar justificar a seus mais fiéis seguidores, acampados na porta de quartéis, porque estava caindo fora. Essa galera, na maioria enganada, segue sendo iludida por uma trupe que alimenta seus delírios e até ganha grana com isso. Como em outras pregações dos mais variados naipes, crenças e ideologias, o nicho da extrema direita também é rentável. Que o diga a turma que segue faturando na esteira do finado guru Olavo de Carvalho.

Antes de cair fora, Bolsonaro falou em uma live de quase uma hora em que não falou da fuga para os Estados Unidos e nem da morte do Pelé. De maneira patética, com pose de vítima, tentou escapar de possíveis acusações criminais pelos estragos da turba que estimulou a fazer vandalismo contra as instituições da República.

O mais maluco nesse desfecho de história é que Bolsonaro pegou um voo para seu suposto exílio sem sequer combinar o vácuo de poder com o vice-presidente Hamilton Mourão. Começou por ter viajado uma dia antes do previsto no Diário Oficial. Talvez uma ilusória última cartada que seus adeptos nas redes sociais apregoam que será dada pelo general general Augusto Heleno, o derradeiro golpista que segue à frente do Gabinete de Segurança Institucional.

É mais um fracassado delírio. Assim que o voo presidencial em direção a Orlando, onde Bolsonaro pode frequentar parques temáticos da Disney, saiu do espaço aéreo brasileiro, o vice Mourão assumiu o leme. Convocou cadeia nacional de rádio e televisão para na noite desse sábado (31) fazer o pronunciamento institucional que todos os presidentes deveriam fazer antes de repassarem o bastão para seus sucessores.

Mourão tá limpando a penúltima sujeira da desastrada gestão de Bolsonaro. Mas até agora se nega a assumir o vexame final e passar a faixa presidencial a Lula. A interlocutores Mourão afirma que sequer irá à cerimônia de posse, para o qual foi convidado, e deve passar o domingo em casa.

— Se o presidente Bolsonaro tivesse renunciado, aí a responsabilidade seria minha. Ou se ele tivesse, na live hoje de manhã, dito: “determinei ao vice-presidente que ocupe o meu lugar e passe a faixa”. Mas ele não fez nada disso — justificou Mourão.

Até pagar mico tem limite.

O país espera que, afora responsabilidades criminais, essa triste página da nossa história seja virada.

A conferir.

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CONCRETIZAR DEMOCRATICAMENTE O NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO

Luiz Werneck Vianna*, INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS

Até aqui, tudo bem, teriam sido, no registro anedótico de Millor Fernandes, as palavras proferidas por um desastrado ao cair do 10º de um prédio ao passar pelo 9º, tal como podemos conjeturar a poucos dias da investidura presidencial de Lula e Alkmin, cerrando os olhos para não ver os amotinados que ainda sonham com uma intervenção militar acampados nas cercanias da Praça dos Três Poderes esperando a solução mágica de um golpe militar. Verdade que, furando a bolha dos conspiradores contra a ordem democrática, o que ainda nos resta entre seus defensores se apresta a tomar medidas que a defendam. Nessa mesma direção, conta-se com que a imensa participação popular que se espera para cerimônia da posse presidencial atue como força dissuasória dos tresloucados.

Fora o imprevisto, sempre uma possibilidade face a insânia que medrou livre nos últimos quatro anos, pode-se, ao fim e ao cabo, realizar uma celebração cívica para o recomeço da vigência dos rituais próprios à democracia. Mas que ninguém se engane, finda a festa, a inana dos conspiradores antidemocráticos seguirá seu curso, em certos setores ainda mais enraivecida pelo infortúnio dos seus propósitos, e que têm em mãos posições nos poderes legislativos e nas máquinas estaduais de várias cidades e estados, além do fato de terem expressão partidária.

A imposição do governo democrático não deverá ser obra fácil, vai demandar tempo e muito jogo de cintura por parte da coalizão que assume agora as rédeas do Estado, que, aliás, não lhe tem faltado desde o início da campanha eleitoral, a própria obra da composição dos ministérios do novo governo tão ampla quanto possível atesta que não se ignora os riscos da situação presente.

À frente do governo que começa tudo é novo, em particular no cenário internacional onde   se intensificam as disputas geopolíticas entre as grandes potências, assim como na nossa demografia política em que os estados do centro-sul, tradicionalmente hegemônicos, têm seu papel diminuído pela emergência dos nordestinos, evidente na composição ministerial. Experiências em administrações passadas, no caso consistem em apenas credenciais válidas para a seleção dos novos dirigentes dos aparelhos públicos, mas por si sós não afiançam aos seus dirigentes o êxito em suas intervenções.

Não se trata simplesmente de repor o que foi destruído pelo regime anterior, conquanto isso importe, mas de buscar a inovação num país que deprimiu a atividade científica e ignorou a indústria, convertendo-se anacronicamente à situação de exportador de commodities, trocando o eixo urbano-industrial, ponto de partida da sua bem-sucedida modernização, pelo agrário, incapaz, mesmo que se releve o papel destacado que vem cumprindo, de edificar as bases para a construção do futuro.

Fora da questão social, onde se fizeram boas opções, procura-se em vão, nos quadros ministeriais selecionados, os portadores de novas promessas para um país com mais de duzentos milhões de habitantes sedentos de novas oportunidades de vida. A timidez nessa busca parece decorrer do receio de se incorrer na fórmula do nacional-desenvolvimentismo, tornada pela pregação neoliberal estigma a ser evitado como o diabo foge da cruz.

Esse mesmo receio é alimentado pela conjura contrária às ações estatais no sentido de alavancar o desenvolvimento, outro estigma a interditar a busca de inovações criativas para a mudança social. A inércia que acometeu o país é fruto da ideologia neoliberal, reinante há décadas nas elites reinantes, cevada, em grande parte, pelo fato de que as orientações nacionais- desenvolvimentistas terem sido, entre nós, levadas a cabo por regimes autoritários.

A dissociação entre nacional-desenvolvimentismo e autoritarismo é, observando bem, mandamento constitucional ao afirmar que a sociedade se deve pautar pelos ideais de justiça e solidariedade, plantas que não nascem como mato no mercado e que demandam obras continuadas de jardinagem. Cabe ao governo democrático que acabamos de conquistar exercer esses cuidados, somente possíveis a ele se compreende que esta é uma missão a ser compartilhada com a sua sociedade cível,

Na indústria da saúde, por exemplo, para a qual estamos prontos para alçar voos ambiciosos, o agrupamento em redes dos equipamentos já constituídos, dos centros de pesquisas universitários ou não, contamos com uma base segura para sua alavancagem com recursos públicos e privados. De outra parte, a valorização do sindicalismo, tal como em países avançados, sobretudo na Alemanha, pode se converter em parceiro significativo nas atividades produtivas, desde que seus estatutos legais prevejam suas formas de participação. A engenharia institucional, sob o império de uma política democrática, com os recursos humanos de que já dispomos, pode ser o instrumento de concretização dos valores que consagramos em nossa Constituição em ruptura com nossas tradições de exclusão.

*Luiz Werneck Vianna. Sociólogo, PUC Rio

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A FUGA MELANCÓLICA DE BOLSONARO

Pablo Ortellado, O Globo

Durante quatro anos, ele repetiu que a “liberdade” deveria valer mais que a própria vida. Mas, agora, quando teria de colocar seus ideais à prova, preferiu fugir para os Estados Unidos

Depois de dois meses de silêncio, no último dia útil do seu governo, Bolsonaro falou. Foi elíptico e evasivo sobre os temas importantes e fugiu logo em seguida para os Estados Unidos. Foi um final melancólico para uma aventura perigosa. A democracia brasileira sobreviveu, mas saiu chamuscada. Ganhamos um respiro, mas o risco não foi de todo afastado.

A maior parte do pronunciamento de mais de 50 minutos foi dedicada a celebrar as realizações do governo. Mas, entre louvores ao preço baixo dos combustíveis e à criação do Auxílio Emergencial, surgiram alertas sobre a volta do PT e justificativas para ele não ter atendido aos radicais acampados nos quartéis. Tudo sob uma chuva de comentários de espectadores no YouTube pedindo intervenção militar.

Bolsonaro disse que, nestes dois meses de silêncio estratégico, não ficou parado: “Como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas!”. As alternativas, sabemos pelas movimentações noticiadas pelos jornais, foram a busca do apoio das Forças Armadas e do Parlamento para uma ruptura autoritária.

Reunindo as menções elípticas, espalhadas pelos discurso, dá para ter uma ideia do que ele quis dizer: “Tem gente chateada comigo, [dizendo] que deveria ter feito alguma coisa, qualquer coisa. Mas, para você conseguir fazer alguma coisa, mesmo nas quatro linhas, você tem que ter apoio”. E se defendeu: “Entendo que fiz a minha parte, estou fazendo a minha parte. Agora, certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos e instituições”.

Bolsonaro quis atender aos golpistas acampados nos quartéis, mas simplesmente não conseguiu apoio. “Não posso fazer algo que não seja bem feito e que, assim, os efeitos colaterais sejam danosos demais”, concluiu. Bolsonaro não teve ou não conseguiu criar as condições para cumprir seus propósitos autoritários. Mas tentou. Enfrentou, porém, a resistência firme da sociedade civil e da imprensa séria.

Enfrentou também a resistência do Parlamento, principalmente quando esteve sob a liderança política de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Em nenhum momento o Parlamento sinalizou que daria apoio a um movimento de ruptura, por meio da decretação de Estado de Sítio. O Congresso conteve a ofensiva legislativa na arena dos costumes e moderou os ataques de Paulo Guedes contra os direitos dos trabalhadores. Foi o Parlamento, também, que elevou os programas de transferência de renda a um patamar mais digno, aumentando o valor e ampliando a cobertura. O Parlamento, por meio da CPI da Covid, também desvelou a irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro com relação à compra das vacinas.

Bolsonaro enfrentou também a resistência da Justiça. O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou alguns dos ataques mais danosos ao sistema de proteção ambiental e deu autonomia aos governadores para que pudessem proteger a população no momento mais crítico da pandemia. Quando as mobilizações golpistas se disseminaram, foi a ação firme do ministro Alexandre de Moraes que as conteve. Sem a mão dura dele, é bem possível que não tivéssemos chegado até aqui.

Servidores públicos no ICMBio, na Polícia Federal e no Ministério Público também desafiaram as orientações políticas dos chefes e batalharam para fazer as instituições cumprir suas funções legais.

Sem os limites impostos pela sociedade civil, pela imprensa, pelo Parlamento, pela Justiça e por corajosos servidores públicos, não teríamos atravessado o deserto. Devemos a cada um desses atores um caloroso “obrigado”.

Durante quatro anos, Bolsonaro repetiu que a “liberdade” deveria valer mais que a própria vida. Mas, agora, quando teria de colocar seus ideais à prova, preferiu fugir para os Estados Unidos, temeroso de que, com a volta do domínio da lei, seus crimes sejam investigados e ele termine devidamente preso. É inevitável comparar a ignomínia de Bolsonaro com a altivez de Lula, que, podendo fugir, se submeteu com dignidade a mais de dois anos de prisão. Bolsonaro não é pequeno, é minúsculo.

A fuga no avião presidencial, deixando seus apoiadores tomando chuva e passando vergonha na porta dos quartéis, é o desfecho patético de um governo medíocre, covarde e autoritário.

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ADEUS, JAIR

Eduardo Affonso, O Globo

Seu maior legado é o que toma posse neste domingo. Um retrocesso de seis anos para retomada do que já não deu certo, nem nunca dará

Duas cartas lhe foram endereçadas, aqui nesta coluna. A primeira, pouco antes da eleição de 2018, contém mais pensamento mágico que qualquer outra coisa. Dizia: “Você é depositário das esperanças de milhões e milhões de brasileiros. São pessoas que o admiram ou apostam em você para nos livrar de um mal maior. Tomara que não estejam cometendo um equívoco”.

Estavam.

Prosseguia, num misto de sugestão e súplica: “Não entre no toma lá dá cá. Não faça conchavo”. Você entrou. Fez. “Descupinize o Estado. Deixe-o mais leve, mais ágil, mais saudável. Dê um basta nos privilégios; acabe com os feudos, as tetas, as tretas. Desestatize, desburocratize, reforme. Melhore a vida do cidadão. Devolva com saúde, educação, saneamento, infraestrutura e segurança o imposto que ele paga.” Parece psicologia reversa: foi feito exatamente o contrário.

Mais adiante: “Conservadorismo não significa atraso, intolerância. Não, não precisa ser politicamente correto: polidez e bom senso resolvem”. Você apostou no linguajar tosco, na discriminação, na insensatez e amarrou os conceitos de conservador e reacionário num nó que será duro desatar.

Uma segunda carta, bem mais pé no chão, veio menos de um ano depois, em 2 de agosto de 2019. O estrago já estava feito: “Em vez de cauterizar a ferida aberta pela polarização ideológica, o senhor se empenha em infectá-la”. Nem precisava ser Mãe Dinah para prever o que aconteceria: “O sentimento anti-PT ajudou a elegê-lo. A repulsa ao seu comportamento pode trazer o passado de volta. O senhor tem até outubro de 2022 para começar a se portar como um presidente. Não espere chegar lá para refrear esse falastrão descontrolado. Pode ser tarde demais”. O falastrão só se calou depois da inevitável, inadiável e merecida derrota.

Um governante cujo mandato termina há de se perguntar qual terá sido o espólio da sua gestão. Se isso lhe ocorrer, durante a deserção para a Flórida, aqui vão algumas pistas: desprezo pela cultura e pelo meio ambiente; metamorfose de cidadãos patriotas em fanáticos conspiracionistas; descrédito na ciência, na imprensa, nas instituições democráticas. O insulamento no cenário internacional, ânimo novo à velha política no plano interno. A bomba-relógio do culto às armas de fogo. O abandono dos valores cristãos do respeito, do amor ao próximo e da compaixão no momento em que eram mais necessários — milhares de brasileiros morreram de Covid-19 não por fatalidade, como em qualquer pandemia, mas por insensibilidade, ignorância e incompetência suas. Ficou pelo caminho o combate à corrupção e ao fisiologismo —se é que um dia se deu algum passo nessa direção.

Seu maior legado, entretanto, é o que toma posse neste domingo, 1º de janeiro. Um retrocesso de seis anos para retomada do que já não deu certo, nem nunca dará. Que talvez não revogue seus sigilos nem vá fundo na investigação de seus crimes — mas fará o possível para desmantelar o pouco que se modernizou neste país desde 2016: o marco do saneamento, a reforma trabalhista, as tímidas privatizações. Os parcos avanços liberais serão perdidos, e a expressão “liberal” continuará a ser demonizada.

Que o retorno à irrelevância lhe seja leve.

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PELÉ, RESPEITO À HIERARQUIA

Ascânio Seleme, O Globo

Jornalismo é também hierarquia. Não fosse ela, não haveria manchete nos jornais, e as notícias seriam amontoadas pela ordem de chegada. Nos primórdios da internet, era assim nos sites noticiosos. Mas, mesmo o ambiente digital rendeu-se à autoridade da relevância. O mais importante vem antes, tem mais destaque, ganha caixas altas e, se possível, brilha e pisca. É o caso de Pelé. Sua morte atraiu todas as atenções do dia 29 de dezembro. O anúncio dos derradeiros ministros de Lula, os preparativos para a sua posse e a prisão de bolsonaristas radicais foram praticamente ignorados nas TVs e nos jornais digitais durante toda a tarde. A morte de um rei é muito mais notícia do que a assunção de um presidente.

E não estamos falando de um rei qualquer, de um filho nobre que herdou a coroa que pertencia ao seu pai ou a sua mãe. Não. Pelé foi um self-made-king, um rei que se construiu, que desenhou a coroa que mereceu usar em cada um de seus 65 anos de reinado. Pelo seu gigantismo e pioneirismo, Pelé foi o principal assunto dos noticiários de TV e destaque em todas as primeiras páginas dos jornais brasileiros e mundo afora. O GLOBO deu quatro primeiras páginas ao rei. Lindas, mais do que primeiras, são capas que ilustram a estatura do atleta. O jornal foi superlativo com Pelé, ele próprio sinônimo de superlativo.

Lula não mereceu sequer uma linha nas quatro capas do GLOBO a dois dias da sua posse. O Estadão também dedicou inteiramente a sua primeira ao rei, com um título brilhante: “Pelé morreu, se é que Pelé morre”. A Folha ainda deu no pé da página pequenas chamadas para os novos ministros, a volta de Marina ao Meio Ambiente e a ação policial contra os radicais. Os principais jornais, telejornais, blogs e sites de notícias de todo o mundo também deram a ele espaços abundantes.

Mesmo os grandes jornais especializados em economia, como o Valor Econômico, no Brasil, o Wall Street Journal, dos Estados Unidos, e o britânico Financial Times deram chamadas importantes e rasgaram fotos de Pelé em suas capas. Não havia como esconder o falecimento do maior atleta do Século XX. Todos os grandes líderes globais lamentaram a sua morte. Todos os grandes atletas e artistas, os mais importantes e laureados cientistas, pesquisadores, escritores e professores renderam homenagem ao maior brasileiro de todos os tempos.

Em vida, Pelé foi procurado e tietado por presidentes, primeiros-ministros, reis e rainhas. Numa entrevista à GloboNews, o jornalista Juca Kfouri contou um episódio que testemunhou quando conversava com Pelé em seu escritório. A secretária do rei entrou na sala e disse que o então presidente dos EUA, Bill Clinton, estava ao telefone. Pelé atendeu, conversou uns três minutos e agradeceu, mas não podia atender ao convite para uma visita ao presidente na Casa Branca. Abismado, Kfouri indagou: “Você recusou convite do Clinton?”. Pelé respondeu: “Já conheci muitos presidentes americanos. O convite é para a mesma data das minhas férias. Prefiro ir para a praia”.

Parece arrogante? Pode parecer, mas não foi arrogância. Pelé era assim mesmo. Ele sabia muito bem o tamanho que tinha. Mas nem por isso se negava a dar um autógrafo, a conversar com um fã, a se deixar fotografar. Pelé pediu amor, pediu pelas crianças, invocou justiça social. Errou ao dizer em plena ditadura que o brasileiro não estava preparado para votar, “por falta de educação e porque se vota mais por amizade nos candidatos”. Mas mesmo os reis erram.

É tão grande e relevante a perda de Pelé, que a sua generosa família resolveu fazer seu funeral e sepultamento depois da posse de Lula, para não ofuscar a festa de inauguração do terceiro mandato do presidente eleito. Claro que para o destino do Brasil e dos brasileiros o novo governo importa muito mais do que a morte do rei. A atenção de jornais e jornalistas terá de ser amplamente dedicada aos primeiros movimentos do novo comando do país que assume amanhã. Mesmo assim, as exéquias de Pelé competirão pela atenção da mídia com as primeiras medidas do governo.

Por isso tudo, pela enormidade de Pelé, esta coluna de política não podia mesmo tratar de outro assunto.

República conciliatória

Começa amanhã uma nova era na nossa história. Com pouco mais de cinco séculos desde o seu descobrimento, o Brasil teve sete etapas na sua vida política reconhecidas por historiadores: Colônia, Império, Primeira República, Estado Novo, Quarta República, Ditadura Militar e Nova República. Depois do breve Jair Bolsonaro, que tentou matar e enterrar todas as premissas da Nova República, o país retoma a trajetória democrática em busca do bem-estar coletivo, da prosperidade e da felicidade. Não cabe a jornalistas nomear eras, mas se fosse me dada esta prerrogativa, batizaria esta nova etapa de República da Conciliação ou República Conciliatória. É gigantesco o esforço que o presidente Lula está fazendo para conciliar o país. Politicamente, o salto dado com a nomeação dos 37 ministros é digno do nosso recordista João do Pulo. Todos os setores estão ali contemplados. Mesmo alguns dos mais próximos do bolsonarismo raiz, aparentemente autoritário e intransigente, foram acomodados no novo governo. Um pessimista olharia a lista de nomeados e diria “não vai dar certo”. O otimista observaria que por trás das indicações há uma boa intenção.

Engolindo sapos

Obviamente Lula quer acertar, quer cumprir sua promessa de garantir três refeições diárias a todos os brasileiros. Quer terminar o seu terceiro mandato em condições de se reeleger ou de apoiar um candidato vencedor. E ninguém atende estas promessas e percorre esse longo caminho sem engolir sapos. Os primeiros já têm nome. São os anuros Juscelino Filho e André de Paula, indicados para os ministérios das Comunicações e da Pesca. Ambos votaram pelo impeachment de Dilma Rousseff, e Juscelino festejou publicamente a prisão de Lula. Duro? Chato? Claro que sim. Mas não há como governar um país tão dividido sem que haja pelo menos um pouco de jogo de cintura.

Filhos, netos, companheiros

Escrevi aqui em novembro de 2020 que a história eleitoral brasileira é repleta de casos de filhos e netos que se apropriam do nome e do capital político do patriarca da família para pedir votos e quem sabe passar o resto da vida pagando suas contas com dinheiro público. No Ministério de Lula, há dois casos clássicos, Renan Filho e Jader Filho. Renan tem mais tempo de estrada, já se construiu politicamente à sombra do pai, chegando a governador de Alagoas. Jader Filho é novato. O primeiro herdeiro da família Barbalho é seu irmão Hélder, governador do Pará. O filho de Jader Barbalho que leva o seu nome só agora começa a fazer “política”. Quem sabe em quatro anos ocupe a cadeira do pai no Senado. Lula o anunciou assim: “O Ministério das Cidades vai ser ocupado por um companheiro, filho de um companheiro, irmão de um companheiro, o companheiro Jader Filho”.

Brimos

Simone Tebet, que no segundo turno da campanha presidencial pediu que as pessoas usassem branco nas manifestações pró-Lula de que participava, usou blusa vermelha no dia em que foi nomeada para o Ministério do Planejamento. Vestiu vermelho e sua sorte então mudou? Bobagem, Simone não é supersticiosa, mas acredita que origem comum ajuda. “Somos de origem libanesa, não tem como dar errado”, disse a nova ministra sobre seu entendimento com o “brimo” Haddad.

Mec

O Ministério da Educação perdeu há mais de trinta anos a Cultura, que passou a ter pasta própria, mas ainda assim manteve o C da sua sigla antiga de Ministério da Educação e da Cultura. Agora, que ele foi entregue ao grupo do ex-governador Camilo Santana, a sigla volta a fazer sentido. Como Camilo nomeou para a Secretaria Geral a sua sucessora, Izolda Cela, e para o FNDE, Fernanda Pacobahyba, ex-secretária da Fazendo do seu estado, o MEC passa a ser conhecido como Ministério da Educação do Ceará.

Do lado de dentro

No documentário “Visita, presidente”, de Julia Duailibi, aprende-se que a Polícia Federal estava infiltrada no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde Lula se encontrava com militantes, assessores, parlamentares e companheiros petistas no dia da sua prisão. Agora, com a primeira ação policial contra os bolsonaristas radicais que atacaram Brasília nos últimos dias, sabe-se que a PF não tinha ninguém no acampamento em frente ao QG do Exército, que o novo ministro da Justiça, Flávio Dino, chamou de “incubadora de terroristas”.

As mentiras finais

Ontem, no seu penúltimo dia no poder, Jair Bolsonaro quebrou o silêncio e pregou suas últimas mentiras. Uma delas foi quase ofensiva. Ele disse que os manifestantes das portas de quartéis defendem a democracia e, pasmem, a imprensa. Sim, a imprensa, que estes mesmos manifestantes enxotaram sempre que puderam, mesmo a imprensa amiga. Depois, afirmou que nos seus quatro anos trabalhou “de domingo a domingo”, com poucas folgas para os passeios de jet-ski e para as motociatas. Francamente, todo mundo conhece o pavor que este homem tem do trabalho. Bolsonaro foi o mesmo, embora a iniciativa tenha um sentido diferente. Sua live teve o objetivo de blindá-lo juridicamente. Por isso, desautorizou os terroristas de Brasília. Tarde, mas antes tarde do que nunca.

Assessoria baixo clero

Bolsonaro já escolheu os assessores que tem direito de manter com recursos públicos na condição de ex-presidente da República. São oito. Um civil (um advogado) e sete militares, quase todos de baixo coturno: um coronel, um capitão, dois tenentes, um suboficial e dois sargentos. Com todo respeito aos praças e jovens oficiais, mas as escolhas mostram bem do que nos livramos.

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EU VI O REI

Carlos Alberto Sardenberg, O Globo

Os que jogavam a seu lado ou contra ele também sabiam que ali estava o melhor de todos, capaz de jogadas impossíveis para os mortais

Vi Pelé jogar. E concordo com Nélson Rodrigues. Pelé sabia que era o Rei. Mais: os que jogavam a seu lado ou contra ele também sabiam que ali estava o melhor de todos, capaz de jogadas impossíveis para os mortais. Mais ainda: a torcida sabia. Todas as torcidas. No estádio, era um espetáculo. Quando Pelé dominava a bola no meio-campo e virava o corpo na direção do gol adversário, as pessoas se levantavam na expectativa.

Reparem: Pelé estava a meio campo do gol, vários adversários à frente, e a torcida já de pé. Quando ele partia em velocidade, as pessoas já estavam comemorando. Mesmo que não saísse o gol, a gente podia dizer: eu vi.

Meu gol preferido é da Copa de 1958, contra o País de Gales. Pelas circunstâncias. Zero a zero, jogo eliminatório, segundo tempo. Pelé está dentro da área, de costas para o gol. Pede a bola. Recebe no peito, deixa cair, um toquezinho sobre as pernas do marcador e coloca no canto.

Ele faria outros gols espetaculares e decisivos. Mas a gente já sabia que era o Pelé. Em 1958, era um rapaz de 17 anos que se apresentava ao mundo. E todos entenderam, era muito mais que um gol de Copa. Ou se poderia dizer: vocês ainda não viram nada.

Governo Lula

Voltando à nossa seara, vamos dar por entendido que o governo Lula terá dificuldades com:

1. cenário externo desfavorável, num mundo com inflação elevada, juros altos e desaceleração da atividade econômica;

2. cenário interno complicado nos mesmos itens, inflação, juros, desaceleração;

3. formação de maiorias na Câmara e no Senado.

Não é pouca coisa, mas cabe acrescentar uma dificuldade menos comentada: a administração interna do governo. Burocracia, gestão — não é assunto tão interessante, mas crucial.

Um ministério tem secretarias, coordenadorias e departamentos. Como acomodá-las nos 37 ministérios, sobretudo depois do vendaval de incompetência e má-fé do governo Bolsonaro?

Fernando Haddad e Simone Tebet têm óbvias diferenças no pensamento econômico. Daí deriva uma questão prática: como se entenderão na gestão do Orçamento?

Com base em formatos já aplicados em diversos governos, o Ministério do Planejamento tem a Secretaria de Orçamento, que prepara o projeto de Orçamento enviado ao Congresso e, depois de aprovado, acompanha sua realização. A Fazenda tem a Secretaria do Tesouro, o caixa do governo, que faz os pagamentos aos ministérios, que gastam nos programas e obras. Se um ministro quer liberar uma verba, passa primeiro no balcão do Planejamento, onde apanha a autorização, depois na Fazenda, para receber o dinheiro.

Por trás do roteiro burocrático, está a escolha de prioridades: gastar mais em pessoal ou em obras? O que vem na frente, os recursos da Funai ou da Sudam? Isso é economia e política — ministros fortes politicamente sempre arranjam mais dinheiro. Se foi difícil para Lula dividir o ministério, como ele disse, será ainda mais complicado arbitrar as demandas dos ministros e da ampla coalizão.

Sim, Lula já fez isso, mas as circunstâncias mudaram. A questão principal neste início de governo será arranjar a burocracia: onde fica esta ou aquela secretaria? Em qual prédio? Com que recursos (assessores ou cargos comissionados)? Pode parecer coisa pequena, mas sem essa organização o governo simplesmente não anda. Além dos grandes arranjos, a nova administração pode encalhar em disputas burocráticas.

Para continuar no tema da política econômica: sempre que houve a divisão entre Fazenda e Planejamento, a primeira foi dominante. Não se gasta um centavo sem passar pela poderosa Secretaria do Tesouro. Isso significa que Simone Tebet terá de arranjar funções e poderes em áreas não relativas à política econômica. Gestão das estatais costumava ser uma função do Planejamento. Mas a ministra terá autoridade sobre uma Petrobras, gigante dirigida por um petista?

Lula foi praticamente obrigado a montar um governo amplo e diverso. Conseguiu. Agora começa a parte mais trabalhosa: colocar a geringonça para funcionar.

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O FUTURO DA CONSTITUIÇÃO

Oscar Vilhena Vieira*, Folha de S. Paulo

O sucesso depende de sua capacidade de articular estabilidade e mudança

Muito antes de Darwin, Maquiavel já preconizava —em seus "Discursos"— ser a capacidade de adaptação a principal responsável pela sobrevivência da República. Associada à diversidade e à liberdade dos cidadãos, a disposição para mudar permitiria à República se adaptar às novas circunstâncias, preservando o cerne de sua Constituição.

As constituições modernas são dispositivos institucionais que buscam contribuir para que as Repúblicas sejam capazes de se adaptar, ao estabelecer a liberdade, o pluralismo e a alternância no poder como suas regras essenciais; criando obstáculos, no entanto, para que os que venham a exercer o poder não possam colocar em risco as premissas fundamentais para a sobrevivência da própria República.

O sucesso de uma Constituição depende, nesse sentido, de sua capacidade de articular estabilidade e mudança. Estabilidade do jogo democrático e dos direitos que lhe são constitutivos, com a flexibilidade necessária para as constantes correções de rumo. Correções de rumo voltadas a atender as próprias promessas de dignidade, justiça ou bem-estar, que levam os diversos setores da sociedade a aderir ao pacto constitucional.

Em um período de frenética transformação, como o que vivemos, manter os canais democráticos desobstruídos é fundamental para que as transformações sociais, tecnológicas ou econômicas possam ser processadas, sem violência e ruptura do sistema político.

A ideia romântica de Thomas Jefferson de que cada geração deveria se dar uma nova Constituição, para não ficar submetida ao "governo dos mortos", tem se demonstrado cada vez mais custosa. As dificuldades de coordenar um novo pacto político em sociedades contemporâneas, altamente complexas, são enormes.

Nesse sentido, temos que zelar pelos pilares de nosso patrimônio constitucional, pois eles é que assegurarão as condições políticas para que as mudanças institucionais necessárias possam ser feitas, com o objetivo de que as promessas de uma vida melhor feitas pela Constituição possam ser cumpridas. Quando essas promessas não são cumpridas, as Constituições ficam vulneráveis a ataques de populistas e oportunistas autoritários, como os que sofremos nos últimos quatro anos.

Torço para que o governo que agora se instala tenha a ousadia de promover as reformas necessárias para que as promessas constitucionais possam ser cumpridas. Como é final de ano —e retomada do processo democrático—, tomo a liberdade de apresentar minha lista de desejos constitucionais para o próximo quadriênio. O primeiro desejo é que sejam eliminados privilégios indefensáveis entrincheirados na Constituição, assim como uma reforma tributária voltada a fomentar mais prosperidade e reduzir a obscena desigualdade que estrutura a sociedade brasileira.

Em segundo lugar, desejo que as políticas públicas, especialmente nas áreas de educação, saúde, moradia e meio ambiente, devastadas pelo desgoverno que foge, sejam reformuladas, para que os setores mais vulneráveis tenham as condições e capacidades necessárias para viver, com autonomia, num mundo cada vez mais competitivo e desafiador.

Meu terceiro desejo é a modernização de nosso sistema de aplicação da lei, com o objetivo de reduzir a desigualdade e o arbítrio a que muitos cidadãos são submetidos diariamente, em função de sua raça ou condição social. De quebra, as reformas poderiam contribuir para aumentar a segurança jurídica, a transparência e reduzir a impunidade.

O fato de a Constituição ter sobrevivido ao bolsonarismo não significa que o seu futuro esteja assegurado. Para sobreviver, precisará se transformar.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

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BOLSONARO SAI PELA PORTA DOS FUNDOS E ARRISCA VÁCUO POLÍTICO

Igor Gielow, Folha de S. Paulo

Em live lacrimosa, ex-presidente em atividade tenta se desvincular de extremistas que insuflou

Para quem esperava um Götterdämmerung, um crepúsculo dos deuses wagneriano, o ocaso da Presidência de Jair Bolsonaro (PL) chegou ao fim formal nesta sexta (30) com um sussurro algo vazio antes de embarcar rumo ao reino de Donald Trump.

Na forma de uma lacrimosa live, Bolsonaro encerrou dois meses de mutismo para entregar um pacote de platitudes e lamentos. Não chegou a questionar as urnas como de costume, moderando sua agressividade talvez em vista dos dois dias de foro privilegiado que tem pela frente.

Nem tampouco admitiu a derrota para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), embora o tenha feito de forma tácita ao admitir que o sol nascerá no dia 1º como sempre. Titubeante, não apagou o efeito que sua reclusão final no Palácio da Alvorada potencialmente causou no movimento que o levou ao poder no pleito de 2018.

Segundo um político que o visitou na clausura na semana retrasada, Bolsonaro parecia um personagem de tragédia farsesca: na penumbra, quase catatônico, murmurando sem parar que "vamos vencer".

Emulava, diz esse interlocutor, as ideias que os generais palacianos remanescentes lhe sopravam desde que perdeu a eleição. Sim, continua o relato, a ilusão de que as Forças Armadas iriam aderir a um levante popular bolsonarista foi mantida como hipótese de trabalho desse grupo.

Daí o silêncio cúmplice da escalada terrorista dos antes folclóricos personagens acampados em frente a quartéis pelo Brasil. Novamente, talvez de olho nos riscos judiciais, decidiu condenar na live a tentativa de atentado em Brasília quase duas semanas após o ocorrido.

De forma inédita na República, Bolsonaro optou por ser um ex-presidente em atividade nos dois meses remanescentes de seu mandato. Com efeito, a transição lulista tratou de negociar limites orçamentários com o Congresso e Flávio Dino age como ministro da Justiça que de fato só será a partir da semana que vem.

Desde que o capitão italiano Francesco Schettino abandonou o navio Costa Concordia em 2012 não se via algo parecido, com a diferença de que não houve quem gritasse "Vada a bordo, cazzo!". Na live, tentou jogar a culpa na imprensa: teria ficado quieto porque se falasse algo, "seria um escândalo". E, diz, "trabalhei".

Deu as caras publicamente em palanques militares e junto a seguidores no Alvorada. Ensaiou alguma articulação, participando de um jantar do PL, mas só. Nem sequer comunicou ao vice, o senador eleito Hamilton Mourão (Republicanos-RS), que quer deixar a faixa presidencial em alguma gaveta para Lula achar.

A opção pelo mutismo, uma forma de se desvincular da violência eventual que irromper em seu nome reforçada pela live final, e a fuga para o refúgio do ídolo Trump na Flórida, contudo deverá apresentar sua conta.

Em frente do Comando Militar do Sudeste, na nobre região do Ibirapuera em São Paulo, manifestantes há mais de 50 dias frequentando a "alameda do golpe", como um feliz vendedor de churrasquinho instalado nas proximidades apelidou, dão a chave da questão.

Um deles, um senhor de cerca de 70 anos que mora na vizinhança e se identifica como Pedro, diz que passa lá todos os dias "porque as Forças Armadas irão salvar o Brasil de Lula". Como? "Impedindo a posse, claro". E qual a indicação disso? "Eu sei."

A origem de sua crença é um dos grupos de WhatsApp em que recebe notícias, por assim dizer, do desenvolvimento da situação política. Mas Pedro está irritado. "Aqui [aponta para o celular] diz que o Bolsonaro vai comandar a resistência dos Estados Unidos, mas acho que ele tinha de ter feito algo aqui. Longe, vai perder", afirma.

Pedro não está sozinho como apoiador. Segundo o Datafolha, nada menos que 25% dos eleitores brasileiros se definem hoje como bolsonaristas. E há o contingente adicional que leva aos 49,1% de eleitores de Bolsonaro em 30 de outubro, muitos por simples ojeriza a Lula.

Mesmo depurando esse grupo amplo, é muita gente. Somando aos 25% aqueles que disseram ao Datafolha estarem mais próximos do bolsonarismo do que do centro ou do petismo, 7% dos ouvidos, chega-se a um respeitável terço do eleitorado que parece disposto a seguir nessa faixa de frequência.

Sem governar, manteve a aprovação no nível que havia chegado, recorde para seu mandato, na campanha. O Datafolha a aferiu em 39%, enquanto 37% o reprovam. É o pior índice para um presidente de primeira viagem, mas melhor do que qualquer outro número que obteve em seus quatro anos.

É uma aposta na nostalgia sebastianista, mas o espaço que deixa abre caminho para a ascensão de novas lideranças que capturem não só suas viúvas, mas também aquela fatia de descontentes com a chegada de Lula ao poder que não se veem como radicais de extrema direita.

Os nomes estão decantados, o novo governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos) à frente. Pela gravidade do cargo, ele estreia na grande política já presidenciável, com um articulador político de peso por trás, Gilberto Kassab (PSD).

Não é por acaso que ele já se diz alguém próximo do presidente, mas não bolsonarista. Resta, por óbvio, saber se dará conta do recado, mas a casa arrumada nas contas deixadas pelos tucanos e a carteira de obras para inaugurar nos próximos dois anos facilitarão sua vida. Se isso será suficiente para abocanhar o eleitorado do ex-chefe, é uma questão em aberto.

Assim, salvo a materialização do golpe militar esperado pelo senhor Pedro sob a garoa no Ibirapuera, Bolsonaro fez questão de usar a porta dos fundos em sua despedida.

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IMAGINANDO O ANO NOVO

Demétrio Magnoli, Folha de S. Paulo

Um roteiro para um 2023 genuinamente feliz

O mercado profetiza um início de governo assaltado por repiques de juros que anunciam um horizonte sombrio. A extrema direita sonha com um desastre iminente, acompanhado por atos golpistas multitudinários. Mas, e se 2023 surpreender? Como seria um ano novo genuinamente feliz? Eis um roteiro imaginário.

1. Haddad adota um plano formulado por Persio e Armínio

Março. O ministro da Fazenda levou ao Congresso sua proposta de nova ancoragem fiscal anticíclica. Nas fases de crescimento, faremos elevados superávits primários; nas de recessão, produziremos déficits, irrigando a economia. Como resultado, a dívida pública decrescerá paulatinamente como proporção do PIB. De passagem, Haddad anunciou que o governo gastará de fato, em 2023, apenas cerca de dois terços do espaço fiscal aberto pela PEC da Transição.

O mercado reagiu derrubando os juros futuros. O BC cortou a Selic em um ponto e anunciou viés de baixa. A Bolsa subiu, o dólar desceu, os empresários anunciaram vultosos investimentos. Haddad prometeu finalizar, até junho, o projeto de reforma tributária desenhado por Appy –e antecipou que a carga total de impostos não crescerá. Em maio, o boletim Focus previu alta do PIB de 3% e inflação no centro da meta.

2. Flávio Dino e José Múcio desmantelam as articulações golpistas

No início de janeiro, por ordem de Dino, forças policiais dissolveram os acampamentos bolsonaristas instalados à frente dos quartéis. Inquéritos provocaram dezenas de prisões de financiadores e articuladores do golpismo. Fevereiro: Múcio exigiu dos comandantes militares a plena obediência à autoridade presidencial –e trocou um comandante refratário, transferindo-o para a reserva. Os militares da ativa receberam ordem para fechar suas contas em redes sociais.

Em agosto, o Congresso aprovou a lei que proíbe manifestações políticas de militares da reserva remunerada. No mesmo mês, um juiz de Brasília declarou Bolsonaro réu por crimes contra a saúde pública. Simultaneamente, o Ministério da Cultura expôs o projeto de criação de um Museu sobre a Ditadura Militar, inspirado no Museu do Aljube, de Lisboa, e financiado em parceria público-privada.

3. Turnê internacional do presidente sinaliza os eixos de política externa

Nas visitas sucessivas a Washington e Pequim, em fevereiro, Lula reafirmou as parcerias paralelas com EUA e China, rejeitando alinhamentos geopolíticos. Na Europa, em abril, desatou os nós que emperravam o acordo Mercosul/União Europeia. A viagem concluiu-se com uma visita surpresa a Kiev. No gabinete de Zelenski, Lula condenou a agressão russa, defendendo a integridade territorial ucraniana.

Marina Silva acompanhou o presidente nas visitas, expondo o cronograma do governo rumo à meta de desmatamento zero e firmando acordos de transferência de tecnologias de energia solar com a China e eólica, com a Alemanha. Na França, Alexandre Silveira, das Minas e Energia, anunciou parceria para a retomada do programa nuclear brasileiro.

Durante a turnê europeia de Lula, Mauro Vieira visitou Caracas, reunindo-se com Maduro e com líderes da oposição. O Itamaraty afirmou que o Brasil quer operar como mediador para a realização de eleições livres e justas na Venezuela. À imprensa internacional, Lula declarou que "não existem ditaduras virtuosas, de direita ou esquerda".

4. Lula repete que a crítica faz bem

"Não deixem de cobrar. Não precisamos de puxa-sacos. Governo precisa ser cobrado." No discurso de posse, Lula repetiu sua pouco divulgada afirmação de campanha. Depois, em várias entrevistas, esclareceu que não falava apenas para sua base política, mas para todos. Antes de partir para Washington, discordou de um manifesto petista que volta a reivindicar o "controle social da mídia". Segundo o presidente, "qualquer governo erra" e, por isso, "precisa ouvir os que divergem".

Viajei?

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A ÚLTIMA LIVE DE BOLSONARO

Camila Rocha, Folha de S. Paulo

Desde o início de seu governo, Jair Bolsonaro fez a opção de se dirigir apenas aos seus apoiadores. O final de sua passagem pelo Planalto não foi diferente.

Após dois meses de recolhimento, sua última live no poder foi dedicada a todas as pessoas que permanecem acampadas nos arredores de quartéis à espera de um golpe militar.

Durante a transmissão ficou claro que tal caminho não será trilhado: "não tem tudo ou nada". Para minimizar o clima de velório face à iminência do despejo, a frase "o Brasil não vai acabar no dia 1° de janeiro" foi repetida várias vezes pelo mandatário.

Tais esforços não são em vão. Afinal, o que importa ao bolsonarismo é manter sua base constantemente mobilizada. Sobretudo nos tempos difíceis que se avizinham, a julgar pelos recentes ataques terroristas e pelo que vem se passando acima da linha do Equador.

No último dia 23, a Comissão de Inquérito da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, responsável por investigar a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021, chegou a uma decisão final. Donald Trump foi acusado de conspiração. Por essa razão, a Comissão recomendou que o ex-presidente seja indiciado pelo Departamento de Justiça e impedido de se candidatar e ocupar cargos públicos.

Segundo o relatório produzido, Trump pretendia obstruir a vontade do povo e derrubar a democracia americana. Para tanto, teria contado com o apoio de seus advogados, o secretário-geral da Casa Branca e parlamentares, que, por meio de redes sociais, estimulavam uma insurreição para impedir que Joe Biden fosse diplomado como presidente dos Estados Unidos.

Qualquer semelhança com o Brasil não é coincidência. Para o futuro ministro da defesa, José Múcio Monteiro, Bolsonaro "colocou a digital" nos atos golpistas ao se dirigir a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada no dia 9 de dezembro. De acordo com Múcio, antes "a gente não podia dizer ‘está por trás’. Hoje, o presidente falou."

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AS VÁRIAS FACES DA ECONOMIA

João Gabriel de Lima *, O Estado de S. Paulo

Time de Haddad terá de entregar uma melhora significativa nas áreas social e ambiental

A campanha das “Diretas-já” era um evento histórico, e a tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco não poderia ficar de fora. Corria o ano de 1984, e o jovem presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, Eugênio Bucci, tinha senso de História. Gastou todo o orçamento do grêmio estudantil em manifestações, festas e participações em comícios. Seu sucessor herdou uma dívida portentosa.

“Foi o primeiro ajuste fiscal que tive que fazer”, disse-me certa vez, entre risos, o sucessor de Eugênio Bucci no Centro Acadêmico – o novo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A conversa se deu há três anos no bandejão do Insper, onde éramos professores. Salvo engano, o presidente da escola, o economista Marcos Lisboa, estava entre nós – e riu junto.

Um artigo publicado no site Brazil Journal, assinado por Lisboa – colega de Haddad no Insper e no primeiro governo Lula – e pelo economista Marcos Mendes, faz um balanço da “herança maldita” da era Bolsonaro. Executivo e Congresso distribuíram várias “meias-entradas”, para usar a expressão criada por Lisboa para designar benesses indevidas. O presidente do Insper é o entrevistado no minipodcast da semana.

Na conversa no bandejão, Haddad falou também dos ajustes fiscais que fez na Prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, e em sua própria gestão, pressionada pelos erros de política econômica do governo Dilma Rousseff. Em entrevista à jornalista Miriam Leitão publicada em O Globo, Haddad disse contar com o “pente-fino” que será feito no Planejamento por Simone Tebet.

Haddad lembrou das convergências entre os programas de governo de Lula e Tebet, principalmente na área ambiental. Afinal, limitar a economia à gestão fiscal é uma visão tacanha e antiquada. A grande discussão econômica do mundo atual é a transição energética – o que implica estreita coordenação com o Meio Ambiente de Marina Silva.

Além de investir em energia eólica e solar, o Brasil tem uma grande lição de casa, zerar o desmatamento. Nossa cobertura florestal é essencial para reduzir emissões e para preservar o regime de chuvas que garante a sobrevivência do agronegócio.

Economia é, antes de tudo, uma ciência humana. Cuida-se das contas públicas para poder cuidar das pessoas e do meio ambiente – sem o qual as pessoas não sobrevivem. Num país em que inclusão e cidadania são, de longe, os principais desafios, o time de Haddad terá de entregar uma melhora significativa nas áreas social e ambiental. É isso que os brasileiros irão cobrar do governo que escolheram, e que toma posse amanhã pelos próximos quatro anos. •

*Escritor, professor da Faap e doutorando em ciência política na universidade de lisboa

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PROGRAMA DE GOVERNO SEM PROJETO DE PAÍS ?

Bolívar Lamounier*, O Estado de S. Paulo

Precisamos nos alçar até o degrau superior de uma escada para de lá delinear um horizonte que nos sirva como meta e aspiração

Se o número de ministérios do governo que ora se inicia for uma boa indicação da qualidade do programa que ele pretende implementar, estamos feitos; teremos um governo supimpa.

Infelizmente, no Brasil, em geral acontece o contrário; o presidente quebra a cabeça para encaixar três dúzias de aliados nos ministérios e depois cada um sai à cata de um programa. Ignorando, na maioria dos casos, quais deveriam ser os afazeres de cada um, prefiro me manter a uma prudente distância do emaranhado programático. Abro uma exceção para a Educação. Pelo menos nessa área, atrevo-me a pensar que o governo entrante têm ciência de que a situação brasileira é catastrófica, não comportando reforminhas encabuladas como as que temos tido há séculos.

É patente que não temos – nem o governo nem nós, cá na planície –, sequer um esboço aceitável do que precisa ser feito. Mas, relembrando o saboroso conselho de Lewis Carroll, “para quem não sabe aonde quer ir, qualquer caminho serve”. Esse, realmente, é o problema. Faz décadas que martelamos uma verdade elementar – não conhecemos o Brasil. Verdade já enunciada em incontáveis versões, mas hoje peço vênia para oferecer mais uma. Sugiro que não sabemos aonde queremos ir porque não nos debruçamos sobre questões inarredáveis como a de nossa capacidade de agir como povo, de nos organizarmos, de nos alçarmos até o degrau superior de uma escada para de lá delinear de forma realista um horizonte que nos sirva como meta e aspiração.

Admitamos, para abreviar a conversa, que não temos chance alguma de atingir o nível de vida da Alemanha ou dos Estados Unidos. Compreensivo, relembro o ideal do “Brasil Grande Potência” dos tempos do general Ernesto Geisel, mas apresso-me a fugir dele, pois meu medo, no momento, é o de que venhamos a perder mais uma ou duas décadas. Os economistas talvez possam estimar de uma maneira mais precisa o lapso de tempo de que precisaríamos para nos igualarmos à Alemanha de hoje. Uns 300 anos, suponho, mas ela já estará bem à frente se e quando lá chegarmos. Especular sobre os Estados Unidos parece mais simples. Nesta década, nossa renda anual por habitante deve estar em torno de um quarto da do Mississippi, o Estado mais pobre da federação norte-americana. Não tenho em mãos os dados necessários para uma comparação adequada, mas lembro que os 10% mais ricos do Brasil detêm algo como 55% da riqueza e da renda de nosso país. Essa marca, desconfio que nem o Alabama é capaz de atingir.

Estamos, pois, numa encruzilhada. Podemos insistir no projeto do Brasil Grande Potência – pelo menos é certo que podemos suprir alimentos e outras commodities para o mundo todo. O problema é que no mínimo metade de nossa população em idade escolar está num nível provavelmente inferior ao do Alabama e do Mississippi; e esse problema nem um milagre resolveria, pois de nada adiantaria educarmos tal multidão em poucos anos, se não tivermos como oferecer-lhe empregos estáveis e razoavelmente bem remunerados. Nesse particular, convém lembrar que nossa pujante agricultura já não cria tantos empregos, e que o setor industrial, que já representou 27% do PIB, hoje anda pela casa dos 11%.

Para não fechar este texto num timbre soturno, ocorreme rascunhar alguma coisa sobre o sistema político. Se lográssemos aprimorar rapidamente as instituições de governo e a relação delas com a sociedade, quem sabe poderíamos cogitar um futuro um pouco mais ambicioso? Vejamos alguns números. Em sua valiosa publicação sobre o grau de “democraticidade” de todo o mundo relativo a 2020, a Economist Intelligence Unit (afiliada à revista The Economist) colocou o Brasil e a Argentina mais ou menos no meio da escala, numa categoria que a revista designa como “democracias defeituosas”. Referindose a um período de queda generalizada, devido à pandemia, a estrela do mencionado levantamento foi Taiwan, que subiu 20 posições na classificação, do 31.º para o 11.º lugar, e mudou de categoria, passando da condição de “democracia defeituosa” para a de “democracia plena”. Na direção oposta – ou seja, um desempenho notavelmente vexaminoso – sobressaíram os casos da França e dos Estados Unidos, que permaneceram bem colocados na classificação geral, mas caíram do status de “democracia plena” para a de “democracia defeituosa”. A América Latina obviamente não sai bem na foto, mas com uma importante exceção: o Uruguai, único país “plenamente democrático” da região, ocupando o 8.º lugar.

Quem sabe por aí poderíamos nos certificar se há mesmo alguma luz no fim do túnel? Esquecendo a Alemanha, os Estados Unidos e a grande potência do general Geisel, poderíamos encarar com realismo a hipótese de um país capaz de propiciar melhores condições de vida aos cidadãos, garantindo-lhes saúde e saneamento? Para tanto, o que se faz mister é reduzir drasticamente as desigualdades sociais e regionais, recuperar a indústria, a fim de assegurar um nível adequado de emprego e defesa, e manter, como o Uruguai, o devido apreço pelo regime democrático. •

*Cientista político, Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

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"BOLSONARO PREFERIU LIDERAR OS RADICAIS AO INVÉS DE UMA BASE SOCIAL MAIS AMPLA"

Eduardo Kattah, O Estado de S. Paulo

Entrevista | Carlos Melo: ‘Bolsonaro preferiu liderar os radicais ao invés de uma base social mais ampla’

O cientista político Carlos Melo, professor do Insper, avalia que o presidente Jair Bolsonaro ficou “refém de uma parte dos seus eleitores, os mais radicais”. Para Melo, a última live do presidente antes de deixar o cargo simbolizou o seu dilema, traduzido em um silêncio de dois meses desde que foi derrotado nas urnas pelo petista Luiz Inácio Lula da Silva. Leia a entrevista:

O presidente Jair Bolsonaro fez uma live, a última antes de deixar o Palácio do Planalto, marcada por justificativas ao seu público pelo silêncio de dois meses enquanto apoiadores se manifestavam contra a vitória de Lula. Como avalia esse discurso final?

Bolsonaro ficou refém de uma de uma parte dos eleitores mais radicais, que vieram com ele até o final e não queriam que ele assumisse a posição civilizada e democrática. Para não desprezar esse leitor radical então ele vem com uma live no final pedindo desculpas, que não pôde atendê-los com um golpe. Bolsonaro preferiu liderar os radicais ao invés de liderar uma base social mais ampla que lhe deu quase 50% dos votos agora.

Até que ponto o recolhimento do presidente foi calculado?

Sim, o recolhimento foi calculado justamente por ele não poder se posicionar. Se se posicionar em relação aos radicais perde o eleitor mais amplo; se se posicionar de uma forma democrática perde os radicais. Esse é o seu dilema.

Bolsonaro foi o primeiro presidente no exercício do cargo que não conquistou a reeleição. Mas ele obteve cerca de 400 mil votos a mais no segundo turno de 2022 na comparação com 2018. Qual a força do bolsonarismo com Bolsonaro fora do poder?

Quando você olha 49,1% dos votos do Bolsonaro, você tem que pensar na teoria dos conjuntos. O conjunto maior chama-se antipetismo. Depois temos o governismo. O governismo é muito forte no Brasil quando ele passa dos limites da lei, como aconteceu agora com aprovação de medidas econômicas e gastos em pleno período eleitoral. E tem o bolsonarismo, com seus 25% (do eleitorado), que não é pouco, é muito, Com o poder do governismo e do antipetismo Bolsonaro só não se reelegeu porque o antibolsonarismo foi maior. Não foi o petismo que ganhou. A rejeição do Bolsonaro foi maior e por isso que não veio a reeleição, também por todos os erros que ele cometeu, pelo seu estilo, pelos erros que cometeu na pandemia e também na economia.

Lula, na montagem do governo e em sua mensagem inicial, indica trabalhar por uma gestão ampla, que, de fato, ajude a reconciliar os “dois Brasis”?

O desafio do Lula não é nem reconciliar os dois Brasis logo de cara, é ter governabilidade, ter maioria no Congresso com aqueles números básicos: 171 votos para não sofrer o impeachment na Câmara, 257 votos para não ser refém de uma pauta-bomba - como aconteceu com a Dilma Rousseff com Eduardo Cunha - e 308 votos para fazer reformas. Sobretudo a reforma tributária, que está pronta para votar e que pode significar uma grande diferença. Para reconciliar o presidente da República vai ter que ser muito diligente em relação à corrupção. Como se diz: faz a fama e deita na cama. Lula não pode transigir com relação à corrupção, porque essa é a base do antipetismo. E vai ter que desenvolver fortemente a economia, rapidamente diminuir o desemprego, conter a inflação e, portanto, aumentar o sentimento de bem-estar econômico. E também a reconstruir a imagem do Brasil no exterior, sobretudo a partir da questão do meio ambiente.

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"SEM ORÇAMENTO SECRETO, LULA PODERÁ DISPENSAR O CENTRÃO"

Rayanderson Guerra, O Estado de S. Paulo

Entrevista | Sérgio Abranches cientista político: Sem o orçamento secreto, Lula poderá dispensar o Centrão

RIO — Com o poder do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), limitado pela decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou inconstitucional o orçamento secreto, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva precisa de MDB, União Brasil e PSD como fiadores da sua coalizão para levar seu governo para o centro, avalia o cientista político Sérgio Abranches.

Autor de Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro, ele diz que, com esse movimento, Lula pode prescindir do apoio do Centrão. Para Abranches, sem o instrumento derrubado pelo Supremo, o chefe da Câmara perde a força que teve no governo de Jair Bolsonaro. “Sem fontes espúrias de poder, ele (Lira) é um presidente (da Câmara) como outro qualquer.”

Eleito, Lula abriu diálogo com o presidente da Câmara, Arthur Lira, para a aprovação da PEC da Transição. A articulação é uma prévia de como deve ser a relação entre o novo governo e o comando da Casa?

Não é necessariamente o modelo que deve se perpetuar no novo governo porque a correlação de forças na Câmara vai mudar. Temos cerca de 200 deputados que não vão voltar. Vai haver uma mudança no plenário que afeta a relação entre o presidente da República e o presidente da Câmara. O presidente precisa ter uma maioria, e aceitar determinadas modificações que não comprometam o teor de suas propostas. O que aconteceu com a PEC da Transição? No final, ele (Lula) conseguiu o que queria. Fizeram concessões. Esse é o modelo de relacionamento. Com esse Ministério, ele tem uma maioria dentro da coalizão majoritária, que prescinde dos partidos que apoiaram Bolsonaro ou mesmo o Centrão. Precisará de poucos acenos.

O presidente da Câmara assumiu protagonismo no governo Bolsonaro. Ele manterá o poder de barganha no mandato petista?

A maior parte do poder de Arthur Lira se divide em dois pontos. Um era a quantidade de pedidos de impeachment contra Bolsonaro. O segundo ponto é o orçamento secreto, que permitiu que o relator do Orçamento manipulasse recursos para seus apoiadores. Esse poder foi reduzido com as mudanças que o Supremo determinou. Sobrou um pedaço, mas com regras que já não têm tanta capacidade discricionária. O poder dele (Lira) daqui para frente deverá sair da sua própria capacidade de articular apoios e de defender os interesses da Câmara. Sem essas fontes espúrias de poder, ele é um presidente como outro qualquer. O poder do regimento não é desprezível. O Congresso tem vários componentes de distribuição de benesses que vão desde a distribuição de cargos até as salas na Casa. Isso define prestígio. Como o Lira vai se comportar? Ele é um político muito pragmático, muito oportunista e ambicioso que não vai confrontar um presidente forte.

Lula busca o apoio de Lira e de partidos de centro-direita para garantir a governabilidade. Qual o custo desses apoios para as pretensões do novo governo?

Temos que considerar se o governo será um governo petista ou da frente democrática. Lula tem dito que vai ser de frente democrática. Mostra uma tentativa razoável de aproximação de uma coalizão da frente, não apenas um governo do PT. Embora tenha uma grande participação do partido nos ministérios, o presidente não abrirá mão de colocar pessoas de confiança em postos-chave. O presidente não consegue governar sem uma coalizão. Com essa nova correlação de forças do novo Congresso, os partidos da coligação formal do Lula, que o apoiaram na eleição, não são suficientes para garantir a governabilidade. É absolutamente indispensável que ele agregue o MDB, o PSD e o União Brasil para poder fazer a maioria e levar o governo mais para o centro e, com isso, poder prescindir do Centrão, que ainda está muito contaminado pelo bolsonarismo. Essa maioria não significa necessariamente custo. Significa pré-requisito. Ele tem que fazer as concessões necessárias, mas dentro de um projeto central.

Quais devem ser as prioridades do governo neste primeiro ano de mandato?

Hoje está muito claro que Lula pretende colocar o combate à fome e à miséria como prioridade. Será o eixo organizador da ação governamental. A popularidade de Lula e o apoio social dele serão fundamentais para chegar ao final de 2023 com bons resultados na redução da fome, da pobreza e na recomposição da estrutura de transferência de renda e de assistência social. Essa área depende muito pouco do Congresso. Já na área ambiental, ele vai ter que mexer na legislação que afrouxou a grilagem e o desmatamento. Lula e Marina (Silva, futura ministra do Meio Ambiente) vão precisar de apoio no Congresso e negociação interna no governo. E a terceira área é a educação. Ele diz que quer focar na educação fundamental. O que ele está dizendo, na verdade, é que ele quer mexer na estrutura da escola pública. O governo vai enfrentar muita dificuldade e vai precisar de muito diálogo com o Congresso na área da saúde. O fortalecimento do SUS implica discussões técnicas que impactam na ponta, nos hospitais e postos de saúde, onde os políticos gostam de mexer.

Serão tomadas iniciativas para reverter medidas do governo Bolsonaro?

Ele (Bolsonaro) destruiu estruturas com tradições que perpassam os governos desde Fernando Henrique Cardoso. Esse primeiro ano será tomado por um trabalho de reconstrução.

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O QUE NOS RESERVA O AMANHÃ ?

Marcus Pestana, O TEMPO

Poucas vezes no Brasil tantas interrogações povoaram uma passagem de ano. As transições de poder, nestes 38 anos de Nova República, sempre foram tranquilas, exceto nos dois extremos temporais. O General Figueiredo se negou a passar a faixa presidencial à José Sarney, a quem chamava de traidor e pulha. Mas, certamente o faria se o destino não nos tivesse roubado Tancredo Neves. Era uma questão mais pessoal do que institucional. De Sarney e Collor à Michel Temer e Bolsonaro, todos os mandatários cumpriram o rito republicano.

Amanhã, 01 de janeiro de 2023, uma vez mais o gesto da passagem da faixa não ocorrerá. Mas, desta vez, a questão é um pouco mais séria. Jair Bolsonaro, 38º. presidente do Brasil, optou por um silêncio sepulcral após as eleições e por uma ausência eloquente nos dois últimos meses de poder, deixando um vácuo de liderança a partir do qual brotaram iniciativas estapafúrdias de setores radicalizados do bolsonarismo, envolvendo os atos de vandalismo no dia da diplomação dos eleitos e a preparação de atos terroristas antidemocráticos.

Melhor teria sido que Bolsonaro tivesse reconhecido os resultados, apesar de suas críticas ao processo eleitoral, reivindicado a liderança da oposição ao Governo Lula, prometendo uma ação política oposicionista forte no Congresso Nacional e nas ruas, estimulado a participação da sua militância no PL e nas eleições municipais, mantendo a chama acesa, mas dentro das quatro linhas constitucionais.

Vamos acender uma vela e cruzar os dedos para que nenhum insano tente ofuscar a posse do novo governo com atos inspirados na cultura do ódio e do golpismo violento. As próprias lideranças institucionais do bolsonarismo deveriam renovar sua opção pelo jogo democrático e se posicionar para capitalizar um eventual fracasso do projeto liderado pelo PT, dentro do princípio da alternância do poder. O terrorismo, na história do Brasil e do mundo, só semeia pânico e o isolamento político de seus protagonistas.   

Pode-se gostar ou não de Lula, mas ninguém pode negar que seja um líder político habilidoso e experiente. Nos últimos dois meses, pacificou a convivência com as Forças Armadas, baixou a temperatura do relacionamento entre os Poderes, construiu uma ampla base de apoio parlamentar. Tudo indica que haverá apenas a oposição de direita liderada por Bolsonaro e o PL, a oposição de centro democrático capitaneada pela federação PSDB/Cidadania e o relacionamento pragmático do PP de Arthur Lira e dos Republicanos.

A situação é grave e os desafios são enormes. O foco tem que ser a mais rápida possível retomada do desenvolvimento inclusivo e sustentável.

Na política monetária e cambial não temos grandes problemas. O Banco Central independente e o sistema de metas inflacionárias, por um lado, e o câmbio flutuante com reservas internacionais confortáveis, por outro, ancoram fundamentos sólidos nestas áreas. O grande “Calcanhar de Aquiles” se encontra no plano fiscal. E as decisões tomadas nas últimas semanas demonstram claramente uma baixíssima consciência do problema. Sem estabilidade econômica e confiança não haverá crescimento econômico, combate às desigualdades e políticas públicas qualificadas duradouras.

Mas que venha 2023! Vamos na onda de nosso genial octogenário baiano: “Andá com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”. Feliz Ano Novo.

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A CORRUPÇÃO DO NIÓBIO BRASILEIRO

Fernando Carvalho*, Democracia Política

Os dados sobre o nióbio são estarrecedores. Trata-se de um minério de importância estratégica internacional. O nióbio é fundamental para a indústria de alta tecnologia. Necessitam de nióbio: a indústria aeroespacial (foguetes); a indústria de armas (mísseis e bombas inclusive atômicas); construção civil (o esqueleto metálico das edificações); naval (lanchas, navios e submarinos); medicina (próteses metálicas e tomógrafos); transportes terrestres (automóveis e caminhões e até o trem bala); petroquímica (gasodutos e tubulações de alta pressão); lentes telescópicas; lâminas de barbear; fabricação de joias; quaisquer produtos da indústria mecânica que exija superligas, ligas supercondutoras, soldas, óxidos; sucroquímica (catálise para a produção de biodiesel); lâmpadas de alta intensidade, dispositivos eletrônicos, capacitores cerâmicos, sondas submarinas. Resumindo: o que há de mais avançado em termos de indústria necessita de nióbio.

Isso porque o nióbio é uma espécie de "enzima" metálica que confere ao aço e outros metais propriedades especiais: leveza, dureza, supercondutividade, resistência à corrosão, à altas temperaturas e ao tempo. Ou seja, a revolução industrial não chegaria ao ápice em que se encontra sem o nióbio. As grandes potências incluem o nióbio entre os metais com oferta crítica ou ameaçada. Em 2010, o portal Wikileaks divulgou um documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos que colocava as reservas brasileiras de nióbio como de "importância estratégica para os Estados Unidos".

O Brasil é praticamente o dono de todo o nióbio do mundo, 98,43% das reservas do planeta são nossas, 1,11% do Canadá e 0,46% da Austrália. Sendo o dono quase absoluto de um produto cobiçado pelos países industrializados e dos que estão a caminho da industrialização, o que era de esperar que fosse feito? O que os árabes fizeram em relação ao petróleo, criaram a OPEP com o objetivo de determinar a política petrolífera dos países membros para o mercado internacional, controlar volume de produção e preço tendo em vista seus interesses nacionais.

Qualquer papalvo além de criar uma organização semelhante para administrar a exploração do nióbio de acordo com os interesses do país, criaria também para o nióbio uma organização semelhante ao que é a Embrapa para a agricultura. Uma empresa que se preocupasse com a cadeia produtiva do nióbio, que relacionasse o nióbio ao desenvolvimento do país.Mas o Brasil não fez nada disso, e deixou o nióbio nas mãos de interesses privados.

No caso da principal empresa, a CBMM -Companhia Brasileira de Mineração e Metalurgia (leia Banco Itaú), que explora a reserva de Araxá, MG, pertence à família do banqueiro Moreira Salles associado a uma multinacional, a Molycorp, do grupo Rockefeller. A outra reserva mineira em Tapira está nas mãos da Anglo American e Banco Bozzano, Simonsen.

Outros banqueiros quiseram participar da boquinha. Fernando Henrique Cardoso tentou privatizar a reserva de nióbio de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, a preço de banana, mas foi impedido por uma ação judicial (O Amazonas tem mais nióbio que Minas). Zé Dirceu, Delúbio e Valério (insuspeitos porque petistas) também conversaram com os Bancos Rural e BMG que também queriam participar do butim. Marcos Valério (mesmo sem prêmio pela denúncia) não nos deixa mentir, disse na CPI dos Correios que "O dinheiro do Mensalão não é nada.

O grosso do dinheiro vem do contrabando do nióbio". E ninguém disse ou fez nada. O nióbio nos faz lembrar o deputado Enéas Carneiro, já falecido; e talvez por sua figura folclórica e caricatural ele possa ter sido usado para desviar a atenção do povo quanto a importância do nióbio e do escândalo de sua exploração ter sido atribuída a uma família de banqueiros. O YouTube está repleto de idiotas falando besteiras para desviar a atenção do povo quanto a importância do nióbio. Destaco dois, um tal de Pirula e GregNews. Agora até Bolsonaro está dando uma de alienado e entrou nessa campanha diversionista, quer que o Brasil "exporte bijuterias de nióbio". O fato é que já existe um comércio de coisinhas de nióbio, uma moeda digital chamada Niobio Cash e até já tem livro: Memórias de um vendedor de nióbio por Camilo Vanucchi. Bolsonaro fez piada com a ideia da Niobiobras.

Seu filho caçula o 04 ganhou de presente de um empresário da área de mineração, um carro elétrico zero km de 80 mil reais.O fato é que o preço do nióbio é determinado por interesses particulares e estrangeiros. A bolsa de Londres é a atravessadora e vende o nióbio brasileiro para a China e Irã (nióbio é vital para a indústria nuclear).Para que o Brasil tenha se comportado como um pascácio em relação ao nióbio foi preciso que fosse persuadido de que estava agindo corretamente.

Alguns idiotas e algumas revistas igualmente idiotas (dos Civitas). E até intelectuais responsáveis contribuem para isso. O físico Rogério César Cerqueira Leite escreveu um artigo publicado na Folha de S Paulo de 01/01/2006, intitulado "O nióbio e o besteirol nacionalista" onde diz que o fato de o Brasil dominar o mercado mundial é mais um obstáculo que uma vantagem porque isso incomoda os países importadores que ficam em uma situação de dependência exagerada de um único fornecedor. Não dá nem para comentar tamanha postura de submissão colonial.

Cerqueira Leite ridicularizou também as denúncias de que está havendo contrabando de nióbio argumentando que do jeito que é difícil se contrabandear pequenas quantidades de drogas, contrabandear um minério é muito mais difícil. Mas a vida já se encarregou de demonstrar o quão ingênuo é o senhor Cerqueira Leite. Todo mundo sabe que o mafioso Roberto Panunzi enviava todo mês duas toneladas de cocaína da América do Sul para a Europa.

Além do mais, o contrabando de nióbio não precisa ser feito por garimpeiros anônimos nas fronteiras de Roraima com a Venezuela e Guiana. É feito legalmente, por meio de subfaturamento, através de uma parceria entre a CBMM e a Codemig, o Ministério Público estadual mineiro já investigou esse caso. Já Elmer Prata Salomão, da ABPM -Associação Brasileira de Pesquisa Mineral, diz que um aumento do preço do nióbio teria consequências funestas. Segundo ele, nosso nióbio tem um preço "praticamente imbatível". Se o Brasil fosse o acionista majoritário da Associação dos Países Exportadores de Nióbio (OPEN), o preço imbatível do nióbio seria aquele preço salgado o suficiente para ao mesmo tempo trazer divisas para nosso país e impedir as grandes potências de comprarem nosso nióbio com o fim de armazená-lo em seus territórios. Já temos em nossa história o precedente do manganês do Amapá.

O manganês da Serra do Navio foi levado de navio para o exterior e no lugar da Serra do Navio restou um grande buraco. O mesmo destino está previsto para o nosso nióbio se nada for feito para mudar a atual situação. Os vendilhões do templo que são ao mesmo tempo formadores de opinião fazem ameaças ao dizer que se o preço do nióbio subir os importadores partirão para o uso de metais que substituam o nióbio como vanádio, tântalo e titânio.

A verdade é o contrário, o nióbio é que substituiu com vantagem metais como o molibdênio, vanádio, cromo, cobre e titânio.O senhor Elmer Prata Salomão tem uma teoria arrojada para que nosso nióbio seja vendido barato. Segundo ele "A idade da pedra não acabou por causa da pedra, mas porque a pedra foi substituída por outra coisa". Como o valor do nióbio se deve ao seu papel na indústria mecânica de alta tecnologia, acho que Salomão está insinuando que devemos vender barato nosso nióbio porque de uma hora pra outra do jeito que a pedra ficou obsoleta o metal também pode ficar e não teremos mais para quem vender nosso nióbio. Fico pensando numa provável revolução que torne o aço obsoleto.

Quem sabe um polímero de sacarose substitua o aço, as máquinas passariam a ser feitas de açúcar e não de aço.O nióbio é um tema quase desconhecido porque é muito recente. Foi durante a ditadura de 64 que veio ao Brasil o almirante Arthur Radford, agente do imperialismo americano, requisitar o banqueiro brasileiro Walther Moreira Salles para a tarefa de ser o "laranja" de interesses americanos no Brasil. O banqueiro que nunca na vida tinha ouvido falar em nióbio aceitou o papel e hoje, décadas depois, 70% do nióbio quase puro brasileiro vai para os Estados Unidos. Os quatro filhotes do banqueiro acabaram de vender 30% de todo o nióbio do mundo para empresas asiáticas pela bagatela de US$ 4 bilhões. O nióbio, a nosso ver, é uma riqueza mineral do solo brasileiro, é como o petróleo.

Como pode os banqueiros do Itaú ter vendido 30% desse patrimônio do povo brasileiro por quase 4 bilhões de dólares como se estivessem vendendo objetos de sua propriedade. Cadê o STF, cadê a OAB, cadê o Ministério Público, cadê o Congresso Nacional? As principais reservas de nióbio do país encontram-se na Amazônia, no Morro dos Seis Lagos, em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Raposa Serra do Sol, Roraima. Sendo essa a principal razão dessa confusão em torno da demarcação das terras dos índios. Há quem diga que a Funai está envolvida no contrabando de nióbio. Estão avaliadas em um trilhão de dólares, embora FHC tenha tentado vender por 600 mil reais.

Para sorte do povo brasileiro o Ministro do Exército do próprio FHC, Zenildo Gonzaga Zoroastro de Lucena, impediu a privatização tucana dessas reservas de nióbio. Lucena garantiu até militarmente a posse dessas reservas, transferindo uma brigada militar de Niterói para São Gabriel da Cachoeira. Esse general que ninguém se lembra dele é um herói do povo brasileiro. Uma coisa que o povo brasileiro precisa observar é se nesses "megaprojetos" da Amazônia não servem de pretexto para o contrabando de nióbio, minerais raros, ouro e urânio.

*Fernando Carvalho é historiador, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), autor de “Livro Negro do Açúcar

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GUINADA AMBIENTAL

Editorial O Estado de S. Paulo

Futuro governo terá que rever proteção do meio ambiente; desmatamento no Cerrado segue crescendo

O Brasil andou na contramão da preservação ambiental durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro − e caberá ao futuro governo adotar nova atitude tanto na defesa do meio ambiente quanto na aplicação da lei. O descaso dos últimos anos, como se sabe, não foi obra do acaso. E a estratégia de “passar a boiada”, isto é, de flexibilizar a legislação enquanto a imprensa estava ocupada com a cobertura da pandemia de covid-19, produziu resultados – os piores possíveis, claro, do ponto de vista da proteção ambiental.

Embora a Amazônia esteja na linha de frente das preocupações com o desmatamento, não faltam problemas em outros biomas. Como noticiou o Estadão, a devastação do Cerrado cresceu pelo terceiro ano consecutivo, algo inédito. Entre agosto de 2021 e julho de 2022, o aumento de áreas degradadas chegou a 25,29% em relação aos 12 meses anteriores, com a perda de 10,6 mil km² de vegetação nativa − tal dimensão não era atingida desde 2015.

Os dados foram divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com base em imagens de satélite do sistema Prodes. O monitoramento realizado pelo Inpe revela onde se dá a devastação. Daí em diante, porém, a atuação dos órgãos ambientais reflete a postura de cada governo no sentido de fazer cumprir a lei e de assegurar condições de infraestrutura e de pessoal para tanto.

Ora, o governo Bolsonaro agiu deliberadamente para desidratar e desarticular mecanismos de proteção ambiental ao longo dos últimos quatro anos. Exemplo disso é o Fundo Amazônia, descontinuado poucos meses após Bolsonaro tomar posse. A iniciativa havia sido criada em 2008 para bancar projetos de conservação da floresta com recursos doados pelos governos da Noruega e da Alemanha. Nesse período, financiou mais de cem projetos, destinando verbas também para ações de fiscalização contra o desmatamento ilegal e para o combate a queimadas. Com uma canetada, o atual governo implodiu tudo.

Não surpreende que o Brasil tenha virado pária ambiental aos olhos do mundo. Vale lembrar que, tão logo se confirmou a vitória do petista Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições deste ano, presidentes e primeiros-ministros de diversos países correram a saudá-lo. Havia, claro, a preocupação de dar respaldo internacional ao resultado das urnas, dissuadindo qualquer tentativa de rompimento da ordem democrática. Mas muitos dos chefes de governos estrangeiros aproveitaram para acenar com parcerias na área ambiental − o Brasil, afinal, abriga a maior floresta tropical do planeta e, por muito tempo, foi protagonista no debate sobre temas ambientais.

Os governos da Noruega e da Alemanha também se apressaram em anunciar a intenção de retomar os aportes para o Fundo Amazônia. Enquanto isso, como noticiou o Estadão, a equipe de transição do futuro governo produziu relatório de quase 300 páginas com recomendações para a nova política ambiental. Uma delas, revogar decreto que facilitou o garimpo na Amazônia. Para o bem da humanidade, é hora de virar a chave.

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BOLSONARO FORA

Editorial Folha de S. Paulo

Avanço econômico não justifica ataque à democracia nem retrocesso civilizatório

Jair Bolsonaro (PL) teve seus ímpetos golpistas contidos pela resistência das instituições e pelo vigor da sociedade. Sua pauta obscurantista, com apoio minoritário no eleitorado, acabou desidratada pela política. Os danos que provocou, ainda assim, não foram pequenos nem podem ser esquecidos.

Ao desapreço pela democracia e à rejeição aos limites de seu poder, o presidente que encerra seu mandato uniu a incapacidade de negociação e radicalismos que afugentaram eleitores de centro, decisivos num ambiente polarizado.

Saúde, educação, ambiente, segurança, direitos humanos, cultura —áreas fundamentais padeceram de desordem gerencial e aparelhamento ideológico. Militares da ativa ocuparam posições de governo em proporções descabidas.

A reação à ofensiva autoritária não foi simples nem indolor. O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral recorreram a providências incomuns, excessivas em alguns casos, mas em geral necessárias para o enfrentamento de investidas tramadas contra as urnas e o próprio processo eleitoral.

Bolsonaro, depois da vitória em 2018, nunca contou com o endosso da maioria dos brasileiros. Encerra seu mandato, segundo o Datafolha, com a aprovação de 39% do país a seu governo —que é considerado ruim ou péssimo por uma parcela semelhante, de 37%.

São números piores que os dos antecessores eleitos desde a redemocratização. Ainda assim, estão entre os melhores medidos ao longo da turbulenta gestão, o que ajuda a explicar por que o ainda presidente foi o primeiro a ver frustrada, por margem mínima, a tentativa de reeleger-se —apesar do momento favorável da economia.

A chegada ao poder se deu na esteira das ondas de opinião pública de aversão à esquerda e à política, após o colapso econômico do governo Dilma Rousseff (PT) e a Operação Lava Jato. A direita manteve-se mais forte, agora com o impulso da retomada do PIB, como mostraram as eleições deste 2022 para o Legislativo e os estados —e o apoio renitente de um contingente expressivo a Bolsonaro.

O mandatário se revelou incapaz, no entanto, de pôr em marcha uma agenda conservadora, na melhor acepção da palavra, com respeito às divergências, à autonomia dos Poderes, ao bom funcionamento da máquina pública e à credibilidade da própria administração.

A pasta da Educação teve cinco ministros nomeados, entre intervenções ideológicas no Enem e liberações suspeitas de verbas. A Petrobras teve quatro presidentes, em meio a arroubos populistas contra os preços dos combustíveis.

O esvaziamento dos órgãos ambientais favoreceu a alta do desmatamento que tornou o Brasil pária internacional. O acesso da população a armas de fogo foi ampliado por meio de decretos que contrariavam o espírito da lei vigente.

Na pandemia, Bolsonaro exibiu quase tudo o que tem de pior. Descaso com o sofrimento alheio, irresponsabilidade delinquente e ignorância se combinaram na campanha contra vacinas e medidas de contenção da doença que tirou perto de 700 mil vidas no país.

A exceção ao descalabro geral se concentrou na área da economia, com a qual Bolsonaro buscou ampliar a aceitação a seu governo para além das hostes fiéis.

Avanços importantes foram obtidos, por exemplo, com a reforma da Previdência, a autonomia formal do Banco Central, o novo marco do saneamento, vendas de estatais e concessões.

Ao final, a responsabilidade orçamentária foi desvirtuada por razões eleitoreiras, mas de todo modo se evitou uma escalada da dívida pública. Neste ano, a inflação caiu e o emprego cresceu com força.

Trata-se de um legado a preservar, para o bem-estar social e a despeito do retrocesso civilizatório a ser revertido ao redor —tendo em mente que agenda econômica nenhuma compensa ou justifica a corrosão da democracia.

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DECLARAÇÕES DE HADDAD APONTAM DIREÇÃO CORRETA

Editorial O Globo

Futuro ministro da Fazenda acerta ao manifestar desejo de “arrumar a casa”, mas também desperta preocupação

Trouxeram certo alívio as declarações do futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista ao GLOBO. Seu principal recado: é preciso “arrumar a casa” logo no início do governo, revisando gastos e desonerações promovidos pelo governo Jair Bolsonaro que, segundo ele, resultaram num impacto fiscal equivalente a 3% do PIB. Haddad também se comprometeu a obter um resultado primário em 2023 melhor que o déficit de R$ 220 bilhões previsto no Orçamento. É um alento saber que ele reconhece a situação crítica das contas públicas e se esforçará para equilibrá-las.

Caso cumpra os compromissos, ajudará a criar confiança na política econômica do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, abalada depois da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição, que acabou com a credibilidade do teto de gastos e semeou dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida pública.

Haddad também voltou a dizer que a reforma tributária será uma das suas prioridades — decisão corretíssima. A barafunda de impostos é um entrave ao crescimento. Simplificar a estrutura tributária não será fácil, pois o Congresso sofrerá pressão dos beneficiários da bagunça atual. Por isso Haddad faz bem ao afirmar que tratará do tema logo nos primeiros meses de 2023.

Noutra declaração no rumo correto, ele destacou a necessidade de conciliar política econômica e visão ambiental: “No Brasil, as fontes de energia novas, como o hidrogênio, a eólica, têm um potencial incrível”. Por fim, prometeu não ficar preso a dogmas. Tratando-se de quadro do PT, é uma afirmação alvissareira. “Quem tem uma postura dogmática (...) e não sai daquele quadrado nem quando as evidências demonstram, tem pouca sensibilidade”, afirmou. Um governo petista que tome decisões econômicas com base em evidências será um enorme avanço diante da ruína causada pela obstinação da gestão Dilma Rousseff.

Alguns tópicos da conversa com a colunista do GLOBO Míriam Leitão, porém, despertam preocupação. A maior é o que Haddad chamou de “parceria” entre ele e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central (BC). A missão de Campos Neto é combater a inflação. A única parceria possível dele com Haddad é o futuro ministro controlar o gasto do governo e resgatar a credibilidade fiscal, para não tornar a política monetária inviável. Se pensa de outro modo, Haddad precisa ser transparente. A declaração sobre a necessidade de “buscar um caminho diferente” para a economia com ajuda do BC é ambígua. É verdade que o novo governo está blindado do populismo monetário graças à autonomia do BC, mesmo assim é preciso ficar atento a um risco que no passado recente — governo Dilma — se revelou desastroso.

Na entrevista, Haddad disse não ser “economista de profissão”, mas de “formação” (ele tem mestrado em economia). Traz no currículo uma experiência enriquecedora: o ajuste fiscal que ajudou a promover na prefeitura paulistana, como subsecretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico na gestão Marta Suplicy, em 2001. Naquele período, havia administrações petistas que se destacavam pela responsabilidade fiscal — a gestão em Ribeirão Preto projetou Antonio Palocci ao Ministério da Fazenda no primeiro governo Lula. Seria fundamental que Haddad buscasse inspiração nesses exemplos, e não na incúria demagógica que marcou o governo Dilma.

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