quarta-feira, 3 de julho de 2024

CASSINOS DE BOLSO

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Com celular, cada um leva um cassino em seu bolso

Soa extemporâneo proibir cassinos quando já é possível apostar em todas as modalidades

Parlamentares bolsonaristas alegam razões sanitárias para opor-se ao PL que autoriza o funcionamento de cassinos no Brasil. Para eles, a medida agravaria o já sério problema do vício em jogos.

É comovente ver esse pessoal que pontificava contra as vacinas quando morriam 4.000 brasileiros por dia de Covid-19 preocupado com a saúde pública. Nunca é tarde para converter-se à medicina baseada em evidências.

Mesmo que se admita essa hipótese mais benigna, é forçoso reconhecer que há algo errado com o timing desses congressistas. Hoje, qualquer indivíduo com um smartphone e um cartão de crédito já carrega um cassino no bolso, tendo acesso irrestrito, em sites brasileiros e estrangeiros, a qualquer modalidade de jogo conhecida ou por criar. Aliás, ao procrastinar por vários anos a "nacionalização" das apostas em resultados esportivos, o Parlamento fez com que o Tesouro perdesse um volume considerável de arrecadação de impostos, que escorreu para outros países.

A diferença entre os cassinos e o statu quo é que os primeiros ainda geram alguns postos de trabalho, como os de crupiê, garçom e prostituta (no Brasil a atividade é legal, não custa lembrar), que inexistem na modalidade virtual.

O problema do jogo patológico é real. E quanto mais oportunidades de aposta houver, mais pessoas cairão em padrões compulsivos de comportamento. Mas a resposta adulta para essas questões não é proibição, que aliás soa patética num mundo com internet. Lidar com as próprias compulsões é um ônus individual. Um dos mais disseminados problemas de saúde mental no Brasil é o alcoolismo, mas ninguém defende seriamente que fechar todos os bares do país seja a solução.

Como sempre digo aqui, precisamos ser minimamente coerentes. Não dá para invocar o princípio da autonomia individual para justificar a legalização das drogas e do aborto, mas ignorá-lo quando o assunto é jogo.



Soa extemporâneo proibir cassinos quando já é possível apostar em todas as modalidades

Parlamentares bolsonaristas alegam razões sanitárias para opor-se ao PL que autoriza o funcionamento de cassinos no Brasil. Para eles, a medida agravaria o já sério problema do vício em jogos.

É comovente ver esse pessoal que pontificava contra as vacinas quando morriam 4.000 brasileiros por dia de Covid-19 preocupado com a saúde pública. Nunca é tarde para converter-se à medicina baseada em evidências.

Mesmo que se admita essa hipótese mais benigna, é forçoso reconhecer que há algo errado com o timing desses congressistas. Hoje, qualquer indivíduo com um smartphone e um cartão de crédito já carrega um cassino no bolso, tendo acesso irrestrito, em sites brasileiros e estrangeiros, a qualquer modalidade de jogo conhecida ou por criar. Aliás, ao procrastinar por vários anos a "nacionalização" das apostas em resultados esportivos, o Parlamento fez com que o Tesouro perdesse um volume considerável de arrecadação de impostos, que escorreu para outros países.

A diferença entre os cassinos e o statu quo é que os primeiros ainda geram alguns postos de trabalho, como os de crupiê, garçom e prostituta (no Brasil a atividade é legal, não custa lembrar), que inexistem na modalidade virtual.

O problema do jogo patológico é real. E quanto mais oportunidades de aposta houver, mais pessoas cairão em padrões compulsivos de comportamento. Mas a resposta adulta para essas questões não é proibição, que aliás soa patética num mundo com internet. Lidar com as próprias compulsões é um ônus individual. Um dos mais disseminados problemas de saúde mental no Brasil é o alcoolismo, mas ninguém defende seriamente que fechar todos os bares do país seja a solução.

Como sempre digo aqui, precisamos ser minimamente coerentes. Não dá para invocar o princípio da autonomia individual para justificar a legalização das drogas e do aborto, mas ignorá-lo quando o assunto é jogo.

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MILEI QUER BRIGA

Bernardo Mello Franco, O Globo

Milei ataca Lula e Arce para camuflar problemas na Argentina

Inquilino da Casa Rosada boicota cúpula do Mercosul e vem ao Brasil encontrar Bolsonaro

Javier Milei não vai à cúpula do Mercosul na segunda que vem, em Assunção. Alegou estar com a agenda lotada. Curiosamente, encontrou tempo para vir ao Brasil dois dias antes. Participará de uma reunião de políticos e influenciadores de extrema direita.

A versão nacional da Cpac ocorrerá em Balneário Camboriú, a Dubai catarinense. A lista de palestrantes é encabeçada por Jair Bolsonaro e pelo filho Zero Três. Quem pagar ingresso de R$ 249 ainda terá direito a ouvir a palavra de Magno Malta e Ricardo Salles.

Milei assumiu o poder em dezembro de 2023. Ainda não visitou o Brasil, principal comprador das exportações argentinas. Agora virá sem agenda oficial para confraternizar com líderes da oposição. Não será sua primeira provocação ao Planalto. Nem a última.

Desde a campanha, o argentino faz ataques constantes a Lula, antigo aliado de seus rivais peronistas. Já o chamou de “comunista”, “corrupto” e “totalitário”. Ontem ele usou as redes sociais para insultar um certo “dinossauro idiota”. Referia-se a um jornalista local que criticou sua obsessão em xingar o brasileiro.

A presepada de Camboriú não será inédita. Milei foi aos EUA, tirou foto com Donald Trump e não procurou o presidente Joe Biden. Foi à Espanha, posou com os extremistas do Vox e ofendeu a mulher do premiê Pedro Sánchez. Na semana passada, abriu crise com a Bolívia ao sugerir que o presidente Luis Arce teria orquestrado um golpe contra seu próprio governo.

No poder há sete meses, o “anarcocapitalista” semeia brigas para manter a aura antissistema que o elegeu. Ele também investe em inimigos externos para camuflar os problemas domésticos. Com a fome e a pobreza em alta, a Argentina acaba de entrar oficialmente em recessão. O PIB despencou 5,1% no primeiro trimestre em comparação com o mesmo período de 2023.

Na sexta-feira, Lula voltou a cobrar um pedido de desculpas do inquilino da Casa Rosada. “Ele falou muita bobagem”, justificou. Pelo histórico de Milei, melhor esperar sentado. O argentino não pediu perdão nem ao Papa Francisco, a quem já chamou de “imbecil”, “comunista” e “representante do maligno”.

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terça-feira, 2 de julho de 2024

O REAL FUNCIONÁRIA HOJE ?

Pedro Doria, O Globo

Desinformação atrapalharia adoção do Plano Real hoje

Democracias só resolvem problemas grandes se sociedades são capazes de se unir num projeto comum

Duas políticas públicas definem a Nova República, aquilo que a democracia brasileira melhor construiu desde o fim da ditadura. Foram o Plano Real e o Bolsa Família. Passamos as últimas semanas celebrando os 30 anos da primeira, mas pouco falamos de um dos elementos essenciais para seu sucesso: a imprensa. Porque, para além do instante de brilho da ideia dos economistas Persio Arida e André Lara Resende, no coração do Real estava a necessidade de ele ser bem compreendido pela sociedade. O Plano Real deu certo porque foi bem explicado, e isso ocorreu nas páginas de jornais e revistas, no rádio e, principalmente, nas telas de televisão. Compreender esse aspecto da história é importante porque ela nos impõe uma pergunta: será que seria possível hoje? Provavelmente a mesma ideia, hoje, não daria certo.

A inflação brasileira não era um problema simples de resolver. Entre 1979 e 1983, o governo João Figueiredo tentou três planos econômicos pra resolver a inflação. José Sarney lançou cinco planos. As pessoas lembram o Plano Cruzado, mas não Plano Bresser, Plano Verão. Lembram o Plano Collor, mas não que o governo Collor apresentou quatro planos em dois anos e meio. Não foi só por incompetência que tantos governos fracassaram. O problema era difícil mesmo, e não só porque era um monstro que nos fazia passar cheques na casa do milhão recorrentemente. A economia era indexada.

Desde os anos 1960, o Brasil foi se habituando a indexar contratos. Salário, aluguel, contratos diversos já tinham reajuste mensal previsto por um índice predeterminado. O resultado é que, além das forças da própria economia, que elevavam os preços, inúmeros valores já aumentavam automaticamente. Acabar com a inflação exigia resolver os problemas na base da economia, tirar dos contratos o gatilho de aumento que já estavam na cultura brasileira e, ao mesmo tempo, acostumar a população psicologicamente a pensar numa economia sem inflação. Sem os preços mudarem todo dia.

A beleza do Plano Real é a simplicidade da ideia. Ainda assim, uma ideia tão original, tão fora da caixa, que, mesmo simples, não tem nada de trivial. Era fazer com que os dois valores convivessem durante meses. O preço em cruzeiro real mudaria todo dia. O preço em URVs ficaria igual todo dia. No valor do imóvel, no valor do frango, no da dúzia de rosas na feira. Em toda parte. Para funcionar, aquilo precisava ser explicado. Reiterado. Martelado na cabeça de todo mundo. Para que, um dia, a plaquinha em cruzeiro real desaparecesse e, no lugar da URV, surgisse, elegante, um R$.

A imprensa explicou. Ativamente, durante meses, todos os dias. Foi um trabalho insistente. O Globo Repórter chegou a dedicar uma edição inteira ao tema, em que jornalistas colhiam perguntas nas ruas para ser respondidas pela equipe econômica, gente como o então presidente do Banco Central, Pedro Malan. Os telejornais iam para supermercados, feiras. Mostravam as plaquinhas com os preços. Repetiam mais uma vez o que aquilo queria dizer. Todos os veículos trabalharam intensamente nesse serviço de informação.

O plano só teria uma chance de dar certo se o brasileiro compreendesse o que acontecia. Se ele entendesse que, no momento em que a plaquinha com o preço na moeda antiga saísse dali, a hiperinflação acabaria. Não porque os preços estivessem congelados. Mas porque a economia teria entrado em ordem. Se o brasileiro não acreditasse, seguiria aumentando os preços, os valores de contratos mensais, tudo.

Não era todo mundo que acreditava no Plano Real. Muito partido de esquerda bateu — e bateu duro. Mas, naquele Brasil, era possível ainda mobilizar grande parte da sociedade em torno de um projeto comum, e não havia uma máquina digital de desinformação instalada. A polarização afetiva, como a chamam Felipe Nunes e Thomas Traumann no livro “Biografia do abismo”, não era a realidade política.

Democracias só resolvem problemas grandes se sociedades são capazes, de tempos em tempos, de se unir num projeto comum. Esse tipo de união dá gás, gera otimismo e, por isso mesmo, fortalece o projeto. Um sistema de comunicação que tenha anticorpos com força suficiente para eliminar desinformação é também fundamental. E fazer isso num ambiente onde vozes dissonantes sigam tendo espaço é justamente a arte de uma democracia vibrante e saudável.

O Plano Real fundou o Brasil contemporâneo. Ele foi, depois do tropeço de Fernando Collor, a prova de que o país democrático tinha tudo para dar certo. Em grande parte, deu. Vivemos num país muito melhor para mais brasileiros do que aquele de antes.

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A DIREITA SE MOVE

Merval Pereira, O Globo

Eleitorado quer mudar radicalmente a situação, e Macron dificilmente conseguirá reverter esse ambiente

A direita política colheu uma série de vitórias nos últimos dias na França e nos Estados Unidos, que repercutem na direita brasileira. A decisão da Suprema Corte americana de dar a Donald Trump uma imunidade parcial nos processos a que responde favorece-o na corrida presidencial, afastando a possibilidade de vir a ser julgado antes das eleições de novembro.

Além desse efeito prático, a maioria conservadora da Suprema Corte deu argumentos à visão da direita internacional, especialmente aos bolsonaristas, que identificam na decisão a confirmação de que o ocorrido no Brasil pode não ter sido uma tentativa de golpe, mas uma ação presidencial dentro de suas prerrogativas.

Assim como Trump tinha direito de pedir ao secretário de Estado da Georgia que “encontrasse” mais votos para ele em sua região, Bolsonaro também poderia ter “consultado” ministros e assessores sobre reações à vitória de Lula na eleição presidencial.

A visão conservadora da maioria dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos também chancela a estratégia de controlar a mais alta Corte do país com nomeações a dedo. Além do mais, a provável eleição de Trump nos Estados Unidos levará ao governo um aliado incondicional da direita brasileira, com ligações pessoais com os Bolsonaros.

O mesmo não acontecerá com uma possível vitória da direita francesa, na pessoa de Marine Le Pen. Ela já disse anteriormente que atitudes e linguajar como os de Bolsonaro não são aceitáveis na França. A resposta do eleitorado francês à decisão de Emmanuel Macron de antecipar as eleições está muito clara, a maioria da população reafirmou que quer mudanças, quer isolá-lo no poder.

Ele pode fazer acordo com a esquerda e manter a maioria, mas isso não lhe dará força. Pelas previsões, o centro chefiado por ele praticamente desapareceu, foi engolido pela frente de direita. A chance de ele retomar um governo com qualidade e força é mínima. Ficará isolado no Congresso, sem condições de decidir as questões internas. Terá presença na política externa e na defesa, setores importantes num momento de crise internacional e de guerras que envolvem a Europa, com questões delicadas, como a posição francesa em relação a Putin.

A vitória da direita mostra que o centro que apoiava Macron foi para a direita, e a extrema direita foi para o centro. Essa combinação pode deixá-lo isolado na Presidência e na coabitação, sem poder. Haverá crises permanentes. A manobra que ele tentou para esvaziar a extrema direita foi errada; ao contrário, fortaleceu-a.

É um sinal claro de que o eleitorado quer mudar radicalmente a situação, e Macron dificilmente conseguirá reverter esse ambiente. A direita e a extrema direita têm ganhado terreno no mundo todo, principalmente na Europa. O momento não é bom para o centro democrático. O fato de o partido de Macron ter chegado em terceiro lugar no primeiro turno mostra que os eleitores de centro acompanharam o movimento de Marine Le Pen, que também mudou de atitude, a ponto de não ser vista mais como política de extrema direita por muitos setores da sociedade.

O mesmo perfil de centro-direita é buscado pelos possíveis sucessores de Bolsonaro no Brasil. Todos os governadores vistos — inclusive por Lula — como potenciais candidatos à Presidência se distanciam da agressividade de Bolsonaro, especialmente o de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Pagar tributo, no entanto, faz parte do jogo eleitoral, e isso obriga Tarcísio a adotar medidas estapafúrdias como as escolas cívico-militares ou a visão autoritária na segurança pública.

Talvez obrigar não seja o melhor termo para definir a situação. Pode ser que Tarcísio considere que esses exemplos de radicalização sejam mesmo a solução para questões tão fundamentais como segurança pública e educação.

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segunda-feira, 1 de julho de 2024

PANTANAL, A HERANÇA QUE VAMOS DESTRUIR

Artigo de Fernando Gabeira

Para quem não conhece, a palavra pantanal não transmite a riqueza desse bioma brasileiro. Mesmo se o descrevemos geograficamente como maior planície úmida do planeta, ainda dizemos pouco. É preciso navegar nos rios, conhecer sua gente, contemplar os bichos para sentir algo que pode ser descrito como um paraíso tropical.

São 652 espécies de aves, 264 de peixes, 102 de mamíferos e 40 de anfíbios. Isso também não quer dizer muito até ver o improvável voo do tuiuiú, ave que simboliza o Pantanal, uma onça-pintada que resiste na região, conhecer uma mulher que fala com jacarés, comer um dourado, um pintado, um pacu.

Quando Daniel Cohn-Bendit me convidou para um documentário sobre os sobreviventes de 1968, escolhi o Pantanal como locação das filmagens. Para mim, sem menosprezo pelas outras, era uma bela imagem do nosso país.

Durante minha passagem pelo Congresso, redigi um projeto para tornar o Pantanal região independente de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Cheguei a fazer uma audiência pública em Miranda (MS), onde a ideia foi muito bem-aceita. O objetivo era captar ajuda internacional e administrar a região por meio de um grande comitê de bacia hidrográfica, uma unidade de gestão mais moderna e democrática. A ideia não foi para a frente, assim como o projeto de autonomia de Fernando de Noronha. Ambos dependiam de um plebiscito nos estados, e as chances de vitória eram muito reduzidas, quase nulas.

Hoje, o Pantanal está em chamas, e alguns moradores de Corumbá fazem festas juninas. A previsão é que perderemos 2 milhões de hectares. O ar ficará mais pesado na Bolívia, no Paraguai, no norte da Argentina e no sul do Brasil.

Cobri incêndios no Pantanal. Não se descrevem apenas por hectares destruídos. É um inferno para os bichos que tentam escapar do fogo e são atropelados nas estradas. Funcionei como guarda de trânsito tentando ajudar uma cobra a cruzar a pista. Mas, ao longo do caminho, havia dezenas de bichos atropelados.

Existem muitas causas profundas da decadência do Pantanal. As chuvas que vêm da Amazônia não são mais as mesmas, os rios da região são atacados dentro e fora da região, o investimento em prevenção é muito baixo. O solo está mais seco do que nunca. As causas naturais de incêndio são desprezíveis: não há raios. A temperatura está 2 graus acima da média, chuvas escassas, fogo provocado por nós mesmos. Já foram queimados neste ano 627 mil hectares, e ainda há longa estiagem pela frente.

Sabíamos do El Niño, do aquecimento global e de tudo mais. Houve incapacidade de planejamento e prevenção. Estamos queimando uma bela herança para os netos e um capital turístico que pode atrair recursos e empregar muita gente.

Não adianta muito implorar por urgência. O presidente do país fala sobre tudo, menos sobre a destruição de uma riqueza nacional; deputados e senadores gozam uma semana de férias por causa das festas de São-João; ministros do STF discutem o Brasil em Lisboa, num encontro que mistura empresários, políticos e juízes e a imprensa chama de Gilmarpalooza, porque ele é o organizador do festival.

Enquanto isso, o Pantanal arde, os bichos são carbonizados, e vamos perdendo um belo pedaço do Brasil. Eles não teriam solução para o fogo, uma vez que não houve prevenção adequada, e agora só podemos reduzir os danos. Mas se comportam como se o Pantanal fosse noutra galáxia.

Sinceramente, não sei como as novas gerações reagirão quando descobrirem que ateamos fogo em tanta beleza e riqueza natural. A ficção científica já tratou de sociedades que queimam livros. Há espaço para as que, com certa naturalidade, queimam árvores e bichos.

Artigo publicado no jornal O Globo em 01/07/2024

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O OPERADOR E A MÁQUINA

Marcus André Melo, Folha de S. Paulo

O maquinário das democracias atuais está caindo frequentemente nas mãos de mecânicos ineptos

Para Giovanni Sartori (1924-2017), a democracia consiste em um maquinismo e um conjunto de maquinistas que têm que pôr a máquina para funcionar. Mas quando nos queixamos da democracia e denunciamos sua crise geralmente focamos o maquinismo e esquecemos os operadores. Ou atacamos os maquinistas e esquecemos o maquinário.

O maquinismo é a estrutura constitucional do país. Embora defenda que o maquinário das democracias atuais é "decente", embora esteja "caindo frequentemente nas mãos de mecânicos ineptos". Sartori é cáustico em relação a nossa Constituição, que é repleta de "dispositivos quase suicidas" e "promessas irrealizáveis". (Sim, a carta de 1988 continha um dos mais bizarros dispositivos já incorporados a uma constituição: o tabelamento da taxa de juros).

Mas o núcleo duro do nosso maquinário é o presidencialismo de coalizão com um Poder Executivo constitucionalmente forte, e com forte delegação de poderes ao Judiciário e Ministério Público. Não tenho dúvidas que o nosso maquinário é "decente": na realidade, o presidencialismo multipartidário é a forma modal de sistema de governo no mundo atualmente.

Ele produz, sob certa condições, governabilidade e bom governo. Os múltiplos pontos de veto garantem inclusividade —muitos atores participam dos processos decisórios— e certa irreversibilidade quando as decisões são tomadas (deixemos de lado por um momento a imprevisibilidade criada pelo STF). O sistema se move de forma lenta e ineficiente. Como um transatlântico. Mas por isso mesmo não permite transformações radicais, como aconteceu sob Bolsonaro.

O risco de imobilismo é perene, sim. As democracias sempre produzem bom governo em um sentido negativo porque impedem a tirania. Mas não são sinônimos de bom governo. As escolhas coletivas sob a democracia podem produzir resultados pífios. Mas há um mecanismo que potencialmente pode permitir correção de rumos —eleições novas—, e alternância de poder; (mecanismo que sob o parlamentarismo quando não temos mandatos fixos para o Executivo é eficiente). Como já discuti neste espaço, o mau governo pode resultar também de crenças tecnicamente infundadas que produzem resultados pífios nas políticas públicas.

A máquina também exige um operador eficiente, como insiste Sartori. Para forjar consensos e maiorias. Aí está o nosso principal desafio: não temos tido operadores que combinem capacidade de forjar coalizões efetivas, crenças tecnicamente fundadas, e apoio popular. Ausência de confrontos institucionais paralisantes, portanto, governabilidade, não equivale a bom governo.

IMAGEM: Colagem de um lambe na rua da Consolação, em São Paulo, iniciativa do Pacto pela Democracia em referência aos 60 anos do golpe militar - Ronny Santos - 30.mar.24/Folhapress

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