Por
Adriana Martins, do jornal
Diário do Nordeste
Novo dispositivo proíbe contratação com dinheiro do
município de artistas com músicas preconceituosas.
"Lei Antibaixaria" deve influenciar especialmente
a realização de shows musicais, a partir da proibição da contratação de
artistas cujas letras tenham cunho preconceituoso ou ofensivo a mulheres,
negros e homossexuais Foto: José Leomar
Polêmica. Essa deverá ser uma palavra constante nas próximas
apresentações musicais em Fortaleza financiadas com recursos públicos
municipais. Afinal, decidir que tipo de repertório se encaixa ou não na nova
lei nº 107/2012, aprovada ontem pela manhã na Câmara Municipal, será tarefa
complexa.
Mais conhecida como "Lei Antibaixaria", de autoria
do vereador Ronivaldo Maia (PT), ela proíbe o uso de recursos públicos
municipais para a contratação de artistas ou bandas que, em suas músicas
"desvalorizem, incentivem a violência ou exponham à situação de
constrangimento as mulheres, os homossexuais, os negros ou que incentivem
qualquer forma de discriminação, incluindo a exposição do corpo das
mulheres".
Maia deu entrada no projeto em abril deste ano. Em maio
houve uma audiência pública voltada ao debate das propostas da lei, com
participação de entidades como a Associação Cearense de Forró, o Grupo de
Resistência Asa Branca (GRAB), o Enegrecer, a Secretaria Municipal de Direitos
Humanos (SDH) e a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor).
"Nos meses seguintes também houve um bom debate com a
sociedade civil, por meio da repercussão do projeto nos meios de
comunicação", frisa Maia. O vereador reconhece, porém, que as eleições
municipais deste ano canalizaram a atenção do público e prejudicaram um pouco a
continuidade das discussões.
Uma vez aprovada, a lei segue para redação final e, em
seguida, para ser sancionada pela prefeita Luizianne Lins. "Tratarei do
assunto com ela pessoalmente na próxima semana". Sancionada, a lei deve passar
a vigorar após 60 dias.
Para Maia, a lei representa um grande avanço nas política
públicas de cultura e direitos humanos em Fortaleza. "É mais uma
ferramenta que a sociedade vai ter para condenar o racismo, a homofobia e a
violência contra a mulher. O dinheiro público não pode continuar sendo usado
para a promoção de músicas que estimulem essa prática", complementa.
A iniciativa não é inédita no País. Na verdade, Maia se
inspirou em um projeto semelhante proposto na Bahia pela deputada estadual Luiza
Maia, aprovado pela Assembleia baiana em março deste ano. Lá a lei ficou
conhecida como "Antibaixaria". "Sempre era cobrado, por exemplo,
pelas entidades de defesa dos direitos das mulheres, no sentido de combater
aspectos como a mercantilização do corpo feminino, mas não podia legislar
porque quase sempre tratava-se de situações pertinentes à esfera
estadual", explica Ronivaldo Maia sobre a motivação que o levou à propor a
lei.
"Com o projeto na Bahia vi uma possibilidade que foi
aprovada. Decidi adaptar a proposta, o que é bom é para ser copiado",
brinca o vereador. A própria deputada Luiza Maia foi convidada a participar da
audiência realizada na Câmara Municipal de Fortaleza sobre a nova lei, no
sentido de trazer sua experiência.
Lacuna
Embora oriunda de boas e legítimas intenções, a "Lei
Antibaixaria" já nasce capenga, ao não prever mecanismos específicos
voltados à avaliação das letras das músicas, no sentido de decidir quais podem
ser executadas em apresentações financiadas com dinheiro do erário municipal.
Não por acaso, afinal nada mais complexo e passível de
polêmica do que mexer com aspectos da criação artística e circulação de
conteúdos, ainda na seara do financiamento público. Não raro, letras de músicas
podem ter interpretações diversas e significados nem sempre literais. Sem
esquecer que aspectos outrora considerados ofensivos podem deixar de sê-lo com
o passar do tempo.
Muito embora algumas criações não deixem dúvidas sobre seu
teor misógino, preconceituoso ou violento - a exemplo da horrenda letra de
"Bomba no Cabaré" (Mastruz com Leite), que fala da
"montagem" de uma prostituta com pedaços de mulheres explodidas após
uma bomba ser lançada no cabaré - decidir o que é ou não apropriado constitui
tarefa, no mínimo, delicada, assim como estabelecer quem serão os responsáveis
por isso.
Para não ficar restrito á seara do forró eletrônico, basta
pensar rapidamente no rock local. Seriam as letras da Bonecas da Barra, por
exemplo, consideradas impróprias? Entre elas está a de "Garota
Normal": Você não vai me dizer que nunca pensou em espancar/a vagabunda
que diz coisas de você e fica sempre a te esnobar.
"A ideia é que a lei seja aperfeiçoada pelo próprio
poder Executivo. Embora não defina como essa avaliação das letras será feita, o
importante é que a lei obriga o município a se policiar, a estabelecer cuidados
em seus contratos", rebate Ronivaldo quando questionado sobre esses
aspectos polêmicos da nova lei.
"As próprias bandas, especialmente aquelas que lucram
mais com os shows, passarão a ter mais zelo na escolha de seu repertório",
complementa o vereador.
Ainda segundo Maia, a lei surge a partir da necessidade do
legislador de atender a clamores da sociedade. "Não sei como será o
processo de identificar o que é uma música preconceituosa, mas sei que não
podemos ficar calados vendo as situações ocorrerem. Se você não se incomoda de
ser chamada de ´bandida´, de ´cachorra´ por uma música em um evento de caráter
privado, tudo bem. Mas o uso do dinheiro público não tem nada de subjetivo, é
bem objetivo", critica.
"Se há um público se sentindo ofendido, queremos que o
poder público passe a ser mais seletivo com as letras", justifica o
vereador.
Para o presidente da Associação Cearense de Forró, Walter
Medeiros, na prática a diferenciação não será difícil. "Eu que trabalho há
anos com isso acho muito claro escolher entre uma poesia de Zé Dantas, de
Patativa ou de Chico Bezerra e entre ´beber cair e levantar´ e ´adoro
rapariga´", critica.
"Quando se trata de poder público existe a obrigação de
educar, de levar o que há de melhor para a população", observa Medeiros.