Da
Agência Pública,
via
EL PAÍS
Robôs impulsionaram hashtags contra ONGs na Amazônia e a
favor de Salles
Na semana passada, entre 19 e 24 de agosto,
as
queimadas na Amazônia foram um dos assuntos mais comentados no Twitter
mundialmente. Em meio à polarização no Twitter, as hashtags foram mais uma vez
usadas como armas para ganhar a opinião pública —mas dessa vez, com auxílio de
robôs e turbas virtuais, segundo levantamento feito pela
Agência
Pública.
No dia 21 de agosto, o presidente
Jair Bolsonaro acusou,
sem provas, organizações não governamentais (ONGs) pelos incêndios na Amazônia.
“Pode estar havendo a ação criminosa desses
ongueiros para
chamar atenção contra o governo do Brasil”, disse em coletiva de imprensa. No
mesmo dia, seus apoiadores lançaram a hashtag #AmazoniaSemOng, que chegou aos
assuntos mais comentados da rede no Brasil.
O ministro do Meio Ambiente,
Ricardo
Salles, também recebeu uma hashtag de apoio nas redes. A tag foi lançada,
com pouca expressividade, no dia 21 de agosto. No dia seguinte, depois que o
partido Rede Sustentabilidade entrou com
pedido de impeachment do ministro, a
#SomosTodosRicardoSalles chegou aos
Trending Topics no Brasil.
A
Pública teve acesso às primeiras 50 mil
postagens de cada uma das hashtags #AmazôniaSemONG e #SomosTodosRicardoSalles
durante os dias 21 e 22 de agosto, extraídas pelo Laboratório de Pesquisadores
Forenses Digitais (DFRLab), da organização
Atlantic Council.
Os dados mostraram que por trás das tags estavam perfis com indícios de
automação, responsáveis por manipular as tendências na rede social.
Além disso, a reportagem verificou que o uso das hashtags
foi orquestrado em grupos bolsonaristas no
WhatsApp. Um número
identificado como “TV a Cabo” publicou em quatro grupos ligados a Jair
Bolsonaro de diferentes estados mensagem chamando para “Twittaço” com as tags
#AmazôniaSemONG e #ApoioTotalRicardoSalles. A mensagem também conclamava os
participantes do grupo a seguir a conta oficial de Twitter da Secretaria
Especial de Comunicação Social do Governo federal (Secom), criada no auge da
crise, em 21 de agosto.
Mensagens quase idênticas foram publicadas mais de 100 vezes
pelo perfil @direitaforte7 no Twitter. O perfil, que foi excluído pela
plataforma, mencionava outras contas, como a do próprio presidente e de
ministros do governo, chamando para o “Twittaço”.
Procurada, a Secom não respondeu sobre sua relação com o
Twittaço até a publicação da reportagem.
Poucos perfis, muitas postagens
O primeiro registro da hashtag #AmazoniaSemONG apareceu 4
horas depois de Bolsonaro publicar fala acusando as ONGs pelos incêndios na
Amazônia em seu Twitter. Às 20h10 do dia 21 de agosto, o influenciador digital
conservador Jouberth Souza, que acumula mais de 45 mil seguidores na
rede social, comentou
em publicação do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro: “Usem a tag:
#AmazoniaSemONG”. O comentário teve 130 retweets.
Uma hora depois, a tag já tinha mais de 1500 menções no
Twitter, de 617 perfis diferentes. A grande maioria de postagens vinha de
usuários anônimos e alguns ativistas digitais mais influentes.
Entre os anônimos, estavam perfis estranhamente ativos. Das
1500 primeiras postagens, 379 (25%) vieram apenas de 10 usuários. O perfil
@jogomartins, de João Gomes Martins, com apenas 159 seguidores, publicou ou
replicou a hashtag 87 vezes na primeira hora. Em seguida vem o perfil
@ajulia366, com 73 publicações com a #AmazoniaSemONG no período. Em terceiro
lugar, o perfil @MayDgoni, identificado como Mayra, publicou e retuitou a
hashtag 53 vezes na primeira hora.
No total, apenas 180 usuários (1% do total de perfis que
usaram a tag) foram responsáveis por 20% das primeiras 50 mil postagens com a
#AmazôniaSemONG.
A hashtag #SomosTodosRicardoSalles também teve poucos
usuários publicando muitas vezes, mas a atividade anormal só começou horas
depois do primeiro tweet, feito às 10h01 da manhã do dia 21 de agosto por Nadja
Clea (@najinhas), perfil ligado à direita com 9,4 mil seguidores. Ela retuitou
uma publicação do site Conexão Política, alinhado ao governo, que dizia “ONGs que
perderam verbas e cargos vão à PGR contra Ricardo Salles”, e comentou “A
roubalheira acabou. #SomosTodosRicardoSalles”. Durante a manhã do dia 21 apenas
ela usou a tag.
Às 16h50 o perfil @AVerdade_Libert, identificado como
“Angel”, comentou com a tag em resposta a uma postagem do site de direita
Renova Mídia. E às 17h18 convidou seus 22 mil seguidores a se engajarem na
#SomosTodosRicardoSalles: “Podem me dar um up?”.
O pico de publicações da tag, no entanto, só ocorreu no dia
seguinte, quando também chegou aos Trending Topics a tag
#ForaSalles, em apoio ao pedido de impeachment do ministro.
Uma das publicações com maior repercussão com a
#SomosTodosRicardoSalles veio de Dani Wine Brasil.
O perfil, que segue e é seguido por 11 mil pessoas, foi o
sexto que mais publicou a tag, com 183 postagens. Dani Wine ficou atrás dos
perfis Silvana Merissi, com 446 tuítes, Murilo Defanti, com 420 tuites, Bronko
Documentaries, 309, Mari Luci Ferraz, 274, e Giane R. Silva, 260. Das primeiras
50 mil publicações com a tag entre 21 e 22 de agosto, 11 mil (23%) vieram de
apenas 122 perfis – 1% do total de perfis que usaram a tag.
É uma atividade
que
indica manipulação das tendências no Twitter, segundo a pesquisadora da
organização Atlantic Council Luiza Bandeira. “Existem várias formas de
manipular o Twitter. Uma delas é o uso de contas automatizadas, mas você também
pode manipular as tendências fazendo com que poucas pessoas tuitem muitas vezes
a mesma hashtag.”
Para as hashtags críticas ao Governo na questão ambiental,
as taxas de usuários estranhamente ativos foi muito menor. Segundo análise da
pesquisadora, no caso da #ActForAmazonia,
1%
dos perfis foram responsáveis por 9% das postagens, e no caso do
#PrayforAmazonia, por 11%.Como é comum, perfis de influenciadores alinhados ao
Governo se engajaram nas Tags, como a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP),
que fez os dois tuítes com a tag #SomosTodosRicardoSalles mais retuitados, com
2,9 mil e 2,8 mil retuítes. Um tuíte do próprio Salles que retuitava o
jornalista José Roberto Guzzo ficou em terceiro lugar, com 2,8 mil retuítes.
Já Allan dos Santos, dono do site Terça Livre, alinhado ao
governo, foi o mais influente na hashtag #AmazôniaSemONG. Ele retuitou uma
publicação de outro perfil e ironizou a cantora Anitta: “Índios, invadam a
mansão da Anitta”. Foi retuitado por mais de 3 mil pessoas.
Evidências de automatização
Além das duas hashtags terem sido amplificadas por usuários
estranhamente ativos, elas tiveram o engajamento dos mesmos perfis. No total,
26.821 perfis diferentes mencionaram alguma das tags entre os dias 21 e 22 de
agosto. Desses, 18% (4.859) mencionaram ambas.
Entre os usuários mais ativos, a proporção é ainda maior.
Dos 100 usuários que mais mencionaram a #SomosTodosRicardoSalles, 26 também
estavam entre os que mais mencionaram a #AmazôniaSemONG.
O perfil de Silvana Merissi, que se apresenta como apoiadora
de ministros do governo bolsonaro sob o nome de
“SilzinhaBolsomoroGuedesWeintraubTarcisioDamaresAja” foi recordista de
publicações com as duas tags. Pela #SomosTodosRicardoSalles, ficou em primeiro
lugar com 446 menções. Pela #AmazoniaSemONG, levou o sétimo lugar, publicando a
tag 142 vezes. Em todos os casos, “Silvana” retuitou publicações de outros
perfis.
“A gente considera mais de 140 tuítes por dia em média como
suspeito”, explica Luiza Bandeira. “Esse perfil na última semana fez quase 400
tuítes por dia, em média, o que é estranho. Além disso, ela retuita algumas
coisas no mesmo segundo, o que também é indício de automação”.
Outros 4 usuários que ficaram entre os dez mais ativos têm
características semelhantes. Os perfis Murilo Defanti, Bronko Documentaries,
Mari Luci Ferraz e Anderson Souza, assim como Silvana Merissi, somaram mais de
1500 menções às hashtags e só fizeram retuites, com poucos segundos de
diferença. Eles também se engajam em outras hashtags ligadas à direita. No dia
27 de agosto, as quatro contas retuitaram postagens com a tag
#GloboLixoTraidoraDaPatria, que chegou aos Trending Topics.
Uma rede de robôs em defesa de Salles
O segundo perfil que mais tuitou ambas as tags foi o
@Sah_Avelar, com 417 publicações com #AmazoniaSemONG e 157
#SomosTodosRicardoSalles. Diferentemente de Silvana, Sah Avelar não fez
retuites com as tags, mas suas postagens sempre começam com um número que
corresponde a um horário. Seu primeiro tuíte com a #AmazôniaSemONG foi às 20h45
do dia 21 de agosto. O texto começava com o horário “23:45” e divulgava um
vídeo do canal de Youtube Conservative Core, que tratava de outra temática.
Todas as postagens seguiam o mesmo padrão: horário três horas para frente, link
para Youtube e hashtag.
O perfil de Sah Avelar também parece vinculado a outros três
que ficaram entre os mais ativos das duas hashtags. Os usuários @sasa_news,
@savelar4 e @tmr_kyle seguem os mesmos padrões de postagens que @sah_avelar,
têm a mesma imagem de capa e perfil e são identificados com o nome “sasa –
Conservative Core”. Outros dois perfis utilizam esse mesmo nome e imagens,
@myamyers_ e @noMatte34020924, mas esses não se engajaram nas tags em questão.
Na #AmazoniaSemONG os três postaram coordenadamente, no
mesmo segundo. E também agiram em sintonia para impulsionar a hashtag
#ApoioTotalRicardoSalles. Contudo, a hashtag não foi para frente, e não chegou
nem a 1.000 menções.
Segundo Bandeira, esses perfis têm comportamento parecido ao
de uma rede de robôs, como publicações idênticas, nomes de usuários e fotos de
perfis parecidos.
O Twitter possui uma
política específica contra spam e manipulação de conteúdo na
plataforma. Apesar de serem permitidas contas automatizadas, “não é
permitido usar os serviços do Twitter com o intuito de amplificar ou suprimir
informações artificialmente”. Dentre as violações dessa política, está
multiplicidade de contas operando “com propósitos sobrepostos” e “usar um
assunto ou uma hashtag popular com a intenção de subverter ou manipular uma
conversa”.
Muitos dos usuários que se engajaram em peso nas hashtags
analisadas violam tais políticas. Alguns deles, inclusive, já foram excluídos
pela plataforma, como é o caso do perfil @direitaforte7, que publicou 175 vezes
a #SomosTodosRicardoSalles e 105 vezes a #AmazôniaSemONG entre os dias 21 e 22
de agosto.
Procurado pela Agência Pública, o Twitter
afirmou ter tomado medidas de precaução com os perfis apontados pela reportagem
com indício de automação. “Em linha com o procedimento adotado quando são
identificados proativamente comportamentos suspeitos na plataforma, o Twitter
impôs desafios a contas compartilhadas pela reportagem para averiguar se são
usuários reais ou contas falsas/automações mal-intencionadas.”
A plataforma também disse estar se esforçando “para combater
proativamente tentativas de manipulação das conversas” e que exclui postagens
automatizadas do cálculo para os Trending Topics.
Apoiadores do governo usam hashtags para controlar
narrativa, diz pesquisador
Uma pesquisa realizada pela AP Exata mostra que o Governo
perdeu o controle da narrativa sobre a Amazônia no dia 18 de agosto. A agência
de comunicação digital classifica tuítes em 8 emoções-chave (entre elas, medo,
confiança, raiva e tristeza) e monitorou mais de 230 mil menções à floresta na
rede social desde 17 de julho e identificou aumento de 540% nas menções à
Amazônia entre 17 e 21 de agosto.
“O Governo controlava o discurso [no Twitter] até o dia
18,
até
o dia de São Paulo ficar sob fumaça”, explica Sérgio Denicoli, um dos
coordenadores da pesquisa. “Eles ficaram 4 dias em crise tentando impor algumas
narrativas. A primeira delas foi a das ONGs, que veio da boca do presidente.”
Para ele, outra tentativa foi o discurso de apoio a Ricardo Salles.
Segundo a análise da AP Exata, houve interferência de perfis
automatizados e falsos nas menções à Amazônia para mudar o sentimento
predominante. “O objetivo é esse, formar opinião. Quando você forma opinião,
não precisa mais interferir”, explica. No entanto, as hashtags #AmazôniaSemONGs
e #SomosTodosRicardoSalles “não viralizaram da forma que eles queriam.
Viralizaram de uma forma artificial.” Para Denicoli, “o Governo conseguiu
reverter a situação impondo uma narrativa de soberania nacional. Não foi a
narrativa nem de defesa do ministro, nem a narrativa de ONG.” Atualmente, a
confiança é o sentimento que predomina nas postagens em relação à Amazônia,
seguida pelo medo.