terça-feira, 31 de outubro de 2023

A VIDA FÁCIL DOS ARAPONGAS

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Programas de espionagem só deveriam operar sob supervisão de órgãos de controle

Se há um trabalho que a tecnologia facilitou, é o de araponga. Vivemos numa era em que a privacidade, se não morreu, anda mal das pernas. E não dá para culpar só a multiplicação das câmeras de vigilância e a compulsiva coleta de dados pelas big techs. Grande parte das informações pessoais disponíveis "in silica" são postadas voluntariamente por seus próprios titulares em redes sociais.

Bisbilhotar a vida dos outros se tornou uma atividade tão trivial que a maior parte das informações que serviços de inteligência costumam reunir já aparece em fontes abertas ou semiabertas. Num exemplo concreto, não era necessário quebrar sigilos nem tomar outras medidas invasivas para saber o que os vândalos/golpistas de 8 de janeiro tramavam. Eles próprios escancararam seus planos nas redes sociais —e vários serviços de inteligência captaram a encrenca. Um pouco por sabotagem dos militares, um pouco por falhas na interpretação das informações, as autoridades não se preparam adequadamente.

Haverá, é claro, situações em que os serviços de segurança precisarão de medidas mais invasivas. É igualmente claro, porém, que, pela legislação brasileira, elas só podem ser tomadas com a autorização de um juiz. E isso nos leva aos softwares. Hoje, Abin, Exército, polícias, praticamente todo mundo vai a Israel adquirir um programa espião. Não vejo problemas maiores na compra, mas muitos na utilização.

Meu ponto é que, dado que as medidas invasivas não podem ser tomadas sem autorização judicial, esses softwares deveriam estar sob controle compartilhado da Justiça ou dos Ministérios Públicos. Nenhuma agência ou polícia deveria poder acioná-los sem gerar um registro que possa a qualquer instante ser acessado por um órgão de controle, que saberia sempre qual agente monitora qual suspeito e se a operação está dentro da lei.

Não é garantia de que não haveria mais abusos, mas violar a lei seria mais trabalhoso. Já é um começo.

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ELEIÇÕES SÃO PRESENTE DE NATAL PARA POLÍTICOS

Alvaro Costa e Silva, Folha de S. Paulo

Até Arthur Lira sonha em se candidatar a presidente

Numa crônica antiga, Carlos Drummond de Andrade notou que cada vez mais o ano se compõe de dez meses; os dois restantes são dedicados ao Natal. "É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: dez meses de Natal e dois meses de ano vulgarmente dito", previu o poeta. Sem descrédito para a presença entre nós do Papai Noel (que, aliás, já anda de trenó por aí, morrendo de calor dentro da roupa vermelha), quem domina o calendário, hoje, são as eleições.

Os partidos articulam no Congresso um aumento inédito no fundo que bancará a campanha municipal do ano que vem. É um embrulhão, com papel colorido e fita crepom: o valor fica entre R$ 5 bilhões e R$ 6 bilhões. Os recursos seriam retirados da Justiça Eleitoral (que não consegue coibir irregularidades nos pleitos) ou das emendas de bancada no Orçamento.

De olho na gastança, o PL de Valdemar Costa Neto avalia lançar candidato a prefeito em 3.000 municípios, usando Michelle e Jair Bolsonaro como cabos eleitorais. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, está a favor de elevar o fundo. O presidente do PP, Ciro Nogueira, também. Quando o assunto é avançar no dinheiro público, existe harmonia.

Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco quer concorrer ao governo de Minas em 2026. Sua campanha começou com a mudança de postura em relação ao Supremo, do qual passou a ser adversário –ao menos publicamente, como quem joga em função da torcida. Atacar ministros do STF é a pauta que mais mobiliza a direita nas redes.

Após abocanhar a Caixa e provar que a chantagem do centrão atua com igual força não importando o chefe do Executivo, Lula ou Bolsonaro, Arthur Lira se empolgou. Resolveu testar seu nome em pesquisas para o cargo de presidente –um segredo que acabou vazando. Lira virou chacota até entre aliados e rapidamente voltou aos velhos planos: candidatar-se ao Senado por Alagoas e botar a boiada na sombra.

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O INIMIGO MORA EM CASA

Dora Kramer, Folha de S. Paulo

Lula faz com Haddad o oposto do que Itamar fez com FHC há 29 anos

Não se espantem, mas é provável que Luiz Inácio da Silva não busque a reeleição em 2026. Ele não pode acenar com essa hipótese agora, sob pena de entregar o governo antes do tempo. É o tal do lugar-comum da expectativa de poder que se retroalimenta e permite governar.

Havendo sentido na probabilidade de Lula não ir a um quarto mandato aos 81 anos de idade e tendo quase perdido o terceiro para uma figura de péssimas credenciais, o primeiro da fila para disputar seria Fernando Haddad.

Digo seria, e pode ser, porque o presidente não reforça, antes fragiliza, seu ministro da Fazenda quando se dá ao desfrute de pontificar a respeito do que não entende: os meandros, as causas e os efeitos do caminhar da economia. Elege o "mercado" como seu malvado predileto, mas nesse palanque só agrava os problemas.

Haddad vinha dando um duro danado na defesa do déficit zero. A impossibilidade da meta era voz corrente, uma realidade até, mas a insistência nela sinalizava compromisso, um desestímulo ao estouro das contas.

Menos de um ano e o governo já aderiu ao centrão —e não o contrário, como se especulava. Minoria no Parlamento, o PT tampouco faz valer sua maioria no Executivo para ajudar. Só não atrapalha mais com as posições vocalizadas pela presidente Gleisi Hoffmann porque ela não é interlocutora autorizada.

Fernando Haddad é visto (ou era) como tal. Lula retira autoridade do ministro indo no sentido contrário ao adotado por Itamar Franco quando deu autonomia ao titular da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, inscrever-se como sujeito oculto e essencial do Plano Real e abriu caminho para eleger o sucessor.

Itamar conteve por um período o temperamento difícil e manteve a mira direcionada ao objetivo maior de médio prazo. Em sua insensata certeza de ser o guia genial de todos os povos, Lula faz o oposto e ainda contrata escândalos futuros. Nessa toada, contribui para tornar turvo o horizonte da reeleição.

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NÃO DEIXE A REFORMA TRIBUTÁRIA TE FAZER DE OTÁRIO

Joel Pinheiro da Fonseca, Folha de S. Paulo

Toda isenção ou desconto estendido a um grupo é pago pelos que ficaram de fora

Eu era um membro conformado do grupo dos otários que pagam inteira no cinema. Sim, otário: graças ao desconto concedido a estudantes, idosos e outros, gente como eu pagava mais caro. Mas eis que, neste fim de semana, vim para o lado vantajoso da força: minha operadora de celular tem um convênio com uma rede de salas, o que me valeu o direito à meia. Muito em breve, absolutamente todo frequentador de cinema terá sua meia entrada.

O resultado disso, é claro, não será uma economia para todos, e sim uma entrada que simplesmente custará o dobro. Toda isenção ou desconto estendido a um grupo é pago por aqueles que ficaram de fora. Se ninguém ficar de fora, o benefício se extingue.

Se já conquistei a meia entrada no cinema, ainda pertenço a outro grupo de otários: os que, sem lobby em Brasília, não terão alíquota especial na Reforma Tributária, e portanto pagarão um IVA mais alto para custear o desconto amigo dos demais.

Justificativas não faltam, a começar pela social: vamos desonerar, por exemplo, os itens da cesta básica. O primeiro sinal de que isso não era uma boa ideia foi a voracidade com que resolveram adicionar produtos à cesta básica, colocando até capacete e tijolo entre os itens necessários para alimentar uma família. A solução foi criar duas cestas, cada uma com sua alíquota especial. Definir qual produto entra em qual cesta promete muita judicialização futura.

A segunda distorção é que o benefício da isenção nunca vai inteiro para o público-alvo, o povo pobre que precisa comer. Uma parte fica com as próprias empresas, que não abatem a isenção completa do preço final do produto. Outra parte vai para a classe média e o rico, que também consomem arroz, feijão e farinha. Isso reduz a parte que sobra ao pobre.

E quem paga a conta desse benefício mal focalizado? Todos os outros setores, que arcarão com um IVA mais alto, além, é claro, de seus consumidores. Seria socialmente mais eficaz arrecadar o imposto da cesta básica normalmente e daí transferir essa arrecadação aos consumidores pobres. Algo me diz, no entanto, que isso não interessaria tanto aos lobistas empresariais.

Até aqui estamos falando das isenções que ao menos têm um verniz social. Outras não têm nem mesmo isso —são a defesa aberta de privilégios corporativistas.

Médicos e advogados com faturamento milionário, o sofrido agro. Será uma boa ideia o Estado criar uma bolsa especial para eles? Depositar todo mês um extra na conta bancária dos médicos que já faturam acima do Simples? É o que vai ocorrer, embora com menos transparência para a opinião pública, posto que não haverá uma transferência do Tesouro para a conta deles.

É deprimente defender a Reforma Tributária nos termos de que "mesmo assim será melhor do que a situação atual". Isso só indica que ainda há espaço para outros cavarem sua boquinha. Insatisfeitos com a isenção de 60%, representantes do agro já pleiteiam 80%. E se deixarmos, não vão parar até tornar a reforma inócua.

Não se engane: toda vez que o representante de um setor ou classe defende uma alíquota especial para si, o que ele está dizendo é que ele quer tirar seu dinheiro e te tratar como otário, ainda tornando toda a economia menos eficiente e a legislação tributária mais complexa, contrariando a razão de ser da reforma. Reconhecer isso com clareza é, quem sabe, o primeiro passo para impedi-lo.

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DEBATE FISCAL PODE SER ENGOLIDO PELA SUCESSÃO DAS MESAS DO CONGRESSO

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Lula não deve ter facilidade em impor seu jogo orçamentário no Congresso

Ao cerrar fileiras ao lado do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no debate sobre a meta fiscal, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sugere que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não terá facilidade em impor seu jogo orçamentário no Congresso sem antes se comprometer com a sucessão das mesas das Casas.

Como presidente do Congresso, é Pacheco quem comanda a votação do Orçamento. Lula tem muitas opções para mudar a meta na Lei de Diretrizes Orçamentárias, que ainda não foi aprovada. Pode fazê-lo por mensagem presidencial, emenda do Congresso e até uma conversa com o relator do Orçamento para que ele assuma a mudança como iniciativa sua. Tem até 22 de dezembro para isso. Com LDO e Orçamento aprovados, no passado, já foi possível mudar a meta no ano em curso de sua aplicação. Com o arcabouço fiscal, como o crescimento da despesa está subordinado ao cumprimento da meta fixada no ano anterior, ficou mais difícil.

Todas as saídas precisam contar com Pacheco. O senador já teve uma relação mais amena com o Planalto, mas tem incentivado a indisposição da bancada bolsonarista com o Supremo Tribunal Federal porque não tem recebido sinalizações sobre como se comportará o presidente na sua sucessão, almejada, com seu apoio, pelo ex-ocupante do posto Davi Alcolumbre (União-AP). Com o Orçamento em desalinho, ganha um novo flanco a ser explorado.

A reação de Pacheco embaralhou o jogo de Lula. Ao fazer a declaração sobre a mudança da meta às vésperas de um a reunião do Comitê de Política Monetária já pressionada pela turbulência do cenário externo, Lula pode ter tentado desmontar o pessimismo do Banco Central, ante um mercado que já trabalha com um déficit de 1% do PIB em 2024, oferecendo, 0,5% ou 0,25%. Ainda deu a Haddad motivos para o passar o fim de semana pendurado ao telefone em busca de interlocutores capazes de pressionar o Congresso a aprovar as novas fontes de receita como o das offshores e fundos exclusivos.

Pela reação às perguntas, mais do que pertinentes, que lhe foram feitas na entrevista desta segunda, Haddad, afagado pelo presidente com os dois diretores do Banco Central que pediu, não parece ter gostado do jogo montado por Lula. E descontou nos jornalistas.

O receio da Fazenda é o de que, ao abrir mais espaço para gasto, Lula acabe atiçando o apetite do Congresso por mais dinheiro para emenda e fundo eleitoral. Também teme que seu discurso pelo fim das desonerações caia no vazio e que escale a pressão de empresários contra uma reforma tributária que os levaria a financiar mais despesa pública.

Se Pacheco pode usar o Orçamento para barganhar o apoio de Lula, a pressão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por mais emendas com as quais possa montar sua sucessão, também poderia vir a ser acomodada com um déficit no Orçamento. Cálculos informais de especialistas do Senado sugerem que 1% de déficit representaria R$ 100 bilhões de espaço fiscal com os quais se poderia acomodar as demandas de Lira com novas modalidades de emendas.

O presidente já foi avisado de que o Congresso quer aumentar o volume das chamadas “emendas pix”, que seguem direto para o caixa das prefeituras, sem transparência ou fiscalização dos órgãos de controle.

A sorte de Lula é que esta disputa tanto atiça a cobiça por dinheiro quanto causa desunião. No Progressistas, por exemplo, a negociação que levou à indicação de um presidente da Caixa Econômica Federal ligado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), desgostou o presidente do partido, senador Ciro Nogueira (PP-PI).

O senador preferia que o partido tivesse batalhado por um ministério como o do Desenvolvimento Regional ou Social a ficar com o banco. Lira acredita que, distribuindo as diretorias com os partidos, seja capaz de montar sua sucessão, mas a Caixa é chamada no Congresso de “Caixa de Gaza”, campo minado e controlado onde ninguém quer pisar. Como tudo que acontece no Congresso até 2 de fevereiro de 2025, o debate orçamentário também foi engolido pela disputa das Mesas.

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HADDAD APRESENTARÁ "CENÁRIOS" A LULA E LÍDERES PARA TENTAR SALVAR META DE DÉFICIT ZERO EM 2024

Lu Aiko Otta, Valor Econômico

Ministro foi pressionado por jornalistas após declaração de Lula de que a meta não precisa ser zero

Normalmente paciente em seus contatos com a imprensa, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, interrompeu de forma repentina uma entrevista que concedia, depois de ser questionado diversas vezes sobre o compromisso do governo com o déficit zero no ano que vem.

No máximo, o que o ministro conseguiu afirmar é que ele, sim, seguirá perseguindo o equilíbrio fiscal, por ser algo em que acredita, e não por pressão do mercado. “A minha meta está estabelecida”, afirmou.

Não respondeu, porém, o que lhe teria dito o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito do déficit zero na reunião que tiveram na manhã desta segunda-feira (30).

Na sexta-feira passada, o presidente afirmou que o resultado fiscal em 2024 não precisaria ser zero, que um resultado negativo de 0,25% ou 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) seria “nada” e que não pretendia iniciar o ano contingenciando despesas, sobretudo investimentos, para buscar o equilíbrio orçamentário. Procurado logo em seguida para comentar essas afirmações, Haddad passou o fim da semana em silêncio.

Ao falar sobre a reunião de hoje, Haddad informou que levará a Lula e aos líderes partidários um conjunto de medidas cujo encaminhamento ao Congresso Nacional poderá ser antecipado, em busca do déficit zero no ano que vem.

As medidas são partes de “cenários” que serão apresentados, a partir da constatação de que as receitas estão com performance abaixo do esperado desde julho passado, apesar de a economia apresentar crescimento acima do esperado. A Receita vai reprojetar a arrecadação, informou Haddad.

Segundo o ministro, há duas razões para a queda nas receitas. A primeiro é a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que mandou excluir o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo das contribuições PIS e Cofins. Adotado em 2017, o entendimento continua repercutindo na arrecadação.

Haddad informou que uma empresa “de cigarros” obteve autorização para deixar de pagar R$ 4,8 bilhões em impostos. É um tributo que foi pago pelo consumidor, e que agora será devolvido à empresa, pontuou. Um “enriquecimento sem causa”, comentou.

A segunda razão é o abatimento, da base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), das subvenções concedidas pelos Estados. Só neste ano, haverá redução da ordem de R$ 200 bilhões na base de cálculo desses tributos, com impactos negativos inclusive sobre as parcelas dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios (FPE e FPM).

O freio para esses abatimentos está na Medida Provisória 1.185/2023, que enfrenta forte resistência no Congresso Nacional. Um objetivo da reunião com líderes será alertá-los para os prejuízos para os cofres públicos. Aprovar a MP é prioridade de Haddad. Com impacto estimado em R$ 35,4 bilhões em 2024, a proposição é vista como o fiel da balança do déficit zero no ano que vem.

Como mostrou o Valor, o governo encaminhou um projeto de lei com igual conteúdo da MP 1.185. No entanto, o esforço de Haddad é para que seja votada a MP, pois a segunda opção obrigaria ao cumprimento de noventena e reduziria o impacto fiscal em 2024.

Pelo cenário mostrado pelo ministro, a avaliação de Lula e dos líderes partidários sobre os cenários a serem apresentados pela área econômica ditará a sorte da meta de déficit zero em 2024.

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A SOLIDÃO DE LULA PARA ESCOLHER NOMES PARA O STF E PGR

Andrea Jubé, Valor Econômico

Indicação para o Supremo pode ser feita em novembro, mas para a Procuradoria-Geral tem data incerta

Depois de afirmar a poucos interlocutores que adiaria a escolha do novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) para janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem ponderado que deve anunciar o nome do futuro magistrado ainda neste mês.

Interlocutores que conhecem a fundo a trajetória de Lula atribuem a hesitação do mandatário à famigerada solidão do poder. Neste caso, seria uma solidão segmentada, tocante ao Judiciário.

É um território onde ele perdeu conselheiros do quilate do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, morto em 2014, ou com quem manteve uma relação fraterna, como Sigmaringa Seixas, que faleceu em 2018. A morte de Sigmaringa foi um baque estrondoso porque na ocasião, Lula amargava o confinamento em Curitiba.

Para um experiente observador da cena política, que vem acompanhando de perto os desdobramentos das escolhas para o STF e para a Procuradoria-Geral da República (PGR), uma lacuna tonitruante é a ausência de conselheiros na área jurídica como Thomaz Bastos ou Sigmaringa no entorno de Lula.

Há uma leitura de que o presidente via no ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), o seu “novo Thomaz Bastos”, conciliando notório saber jurídico e habilidade política. Mas a partir do momento em que Dino migrou do posto de conselheiro jurídico para postulante à vaga no STF, Lula teria se deparado, abruptamente, com a solidão das decisões do poder. Ao menos no Judiciário.

O processo de escolha para o STF segue indefinido, mas está mais maduro que a definição do sucessor do ex-procurador-geral da República Augusto Aras. O presidente descartou os dois nomes que mais agregavam apoios de aliados de todos os matizes, do Congresso ao STF: o vice-procurador-geral eleitoral Paulo Gonet e o subprocurador Antônio Bigonha.

Lula ainda acompanhou de perto o primeiro mês da interina no cargo de procuradora-geral da República, Elizeta Ramos. Foi aconselhado a cogitar efetivá-la no posto, já que não indicará uma mulher para a vaga de Rosa Weber. Um movimento que, todavia, não prosperou.

O presidente também rechaçou os apelos de lideranças da estirpe do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), dos líderes do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), e no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), entre outros caciques para a recondução de Aras ao posto.

Ainda chegaram à mesa do presidente os nomes do vice-procurador-geral da República Luiz Augusto Lima e do subprocurador-geral Carlos Frederico Santos, responsável pelo grupo de combate aos atos antidemocráticos.

Uma fonte credenciada, com trânsito no Palácio do Planalto, relatou à coluna que Lula andou tão angustiado com a sucessão de Aras, que indagou ao ministro da Casa Civil, Rui Costa, se poderia nomear para a vaga o subsecretário de Assuntos Jurídicos (SAJ) Wellington César Lima e Silva.

Lima e Silva é um quadro jurídico insuspeito no governo e no PT. No auge da crise do impeachment, em 2016, ele assumiu o Ministério da Justiça nos estertores da gestão Dilma Rousseff. Integrante da carreira do Ministério Público da Bahia, ele foi procurador-geral de Justiça nos governos de Jaques Wagner e Rui Costa.

Para Lula, seria um nome ideal para chefiar o Ministério Público Federal numa conjuntura pós-Lava-Jato, e em que ele busca confiança. Segundo interlocutores, Lula ainda tem como referência o ex-procurador-geral Claudio Fonteles, que liderou a instituição em seu primeiro mandato, de 2003 a 2005.

Mas, infelizmente, o presidente ouviu dos aliados que Lima e Silva não poderia ser o novo PGR porque faz parte dos quadros do Ministério Público estadual.

Em meio ao impasse, aliados do entorno mais próximo de Lula avaliam que o sucessor de Rosa Weber no STF será conhecido ainda em novembro, enquanto o novo PGR fica para o fim do ano. Ou para o ano que vem.

Dos três quadros para a vaga no STF, o titular da Advocacia-Geral da União (AGU), ministro Jorge Messias, perdeu fôlego num contexto singular. Apoiado, principalmente, por quadros orgânicos do PT, Messias assistiu à debandada de aliados quando se consolidou o favoritismo de Flávio Dino.

Como uma ala do PT não tem simpatia por Dino, esse grupo migrou para o bloco de apoio à indicação do presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, ao STF.

Dantas, em contrapartida, é o que uma fonte da coluna definiu como um autêntico quadro do “centro político”. Egresso do Senado, onde foi consultor jurídico, notoriamente ligado aos ex-presidentes da Casa Renan Calheiros e José Sarney, caciques do MDB, ele agregou apoios de PT, PSD, União Brasil, entre outros.

Dino e Dantas estão no radar de Lula. Um dos problemas é que com o agravamento da crise de segurança pública, mais visível no Rio de Janeiro e na Bahia, Lula hesita em abrir mão de Dino nesta seara.

Recentemente, uma nota na imprensa afirmou que Dantas gerava desconfiança no Planalto. Incomodado, Lula mandou chamar o presidente do TCU para esclarecer que desautorizava a fonte da publicação.

Um experiente ministro orientou Lula a escolher para o STF o nome que menos abrir arestas entre os aliados. Além da confiança, traquejo político e capacidade de agregar são atributos que Lula considera para a vaga.

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NEM TUDO VAI MAL NA ARGENTINA

Marli Olmos, Valor Econômico

Multinacionais planejaram fazer de Brasil e Argentina uma estrutura única de manufatura, mas a lógica industrial foi muitas vezes atropelada por crises e caprichos políticos

Há poucos dias, o presidente da Renault do Brasil, Ricardo Gondo, mostrou estar ansioso pelo início das vendas no Brasil de um veículo produzido na Argentina. O Kangoo, um modelo multiuso fabricado em Córdoba, será vendido no mercado brasileiro a partir do próximo ano. Essa importação facilitará o movimento no sentido contrário: o envio, para o mercado argentino, de carros produzidos pela Renault na fábrica do Paraná. A exportação a partir do Brasil ficou prejudicada nos últimos dias, segundo Gondo, pela escassez de divisas no país vizinho.

Há quatro meses começou, também em Córdoba, a produção experimental da Volkswagen Caminhões e Ônibus. A montadora alemã vende veículos comerciais na Argentina há 25 anos. Mas até aqui eram importados da fábrica de Resende (RJ). Anunciado no fim de 2022, o novo plano, que vai absorver investimento de US$ 50 milhões, prevê produzir, em Córdoba, a partir do início de 2024, cinco modelos para atender o mercado interno. Dessa forma, a empresa deixará de depender da disponibilidade de dólares no país vizinho para vender seus produtos e ainda o ajudará a reduzir o déficit comercial.

As recentes decisões de Renault e Volks mostram que a indústria automobilística conhece bem as vantagens de produzir num país carente de reservas cambiais e isso, para esse setor, independe de quem seja o vencedor no segundo turno da eleição presidencial em 19 de novembro.

A maior parte das montadoras instaladas no Brasil também tem fábricas na Argentina e faz intercâmbio comercial. Estão, porém, em situação muito mais confortável para receber dólares pelos veículos exportados do Brasil para o outro lado da fronteira empresas que também mandam produtos de lá para cá. Principalmente as que enviam modelos mais caros.

É o caso da Toyota, com toda a produção da picape Hilux feita em Zárate, na província de Buenos Aires. A Ford é um caso à parte. Desde que deixou de produzir no Brasil, há dois anos, a empresa parou, consequentemente de exportar do Brasil e passou apenas a importar do país vizinho a picape Ranger, feita em General Pacheco, região metropolitana de Buenos Aires.

O cuidado em manter produção do outro lado da fronteira foi redobrado nos últimos 12 anos, desde que as reservas argentinas começaram a minguar, independentemente de quem estava no comando da Casa Rosada.

Produzir veículos na Argentina hoje oferece várias vantagens. No mercado interno, carros foram incluídos no “Precios Justos”, um programa federal de controle e congelamento de preços utilizado para tentar conter a pressão inflacionária.

De nove modelos incluídos no “Precios Justos”, seis são produzidos na Argentina (Citroën Berlingo, Fiat Cronos, Ford Ranger, Nissan Frontier, Peugeot Partner e Renault Alaskan) e três no Brasil (Chevrolet Montana, Toyota Yaris e Volkswagen Polo Track).

No início do ano, o ministro da Economia e candidato à eleição presidencial, Sergio Massa, anunciou benefícios fiscais para os veículos exportados que excedessem o total do ano passado (322,2 mil unidades). Com aumento de 6,2% em relação ao mesmo período de 2022, as exportações de janeiro a setembro já alcançaram 245,1 mil unidades, segundo a Adefa, associação que representa o setor. Haverá, portanto, o excedente esperado por Massa.

O Brasil ajuda, e muito, a Argentina a conter a saída de dólares. O país foi o destino de 63,6% dos veículos embarcados pelos argentinos ao exterior no acumulado até setembro, segundo dados da Adefa. Já a Argentina tem perdido espaço nas exportações brasileiras de veículos. Ainda é o principal destino, mas sua participação diminuiu ao longo dos anos. Chegou a 71,2% em 2017 e no ano passado ficou em 27,8%.

Na contramão do que acontece em outros setores, o automotivo terá motivos para comemorar este ano na Argentina. A produção de veículos acumula alta de 18,1% de janeiro a setembro, segundo a Adefa.

Além do peso do Brasil nas exportações, no mercado interno, as vendas a concessionárias registraram alta de 23,5% no acumulado dos nove meses. Favorece o setor um aspecto da cultura argentina, provocado pelos anos de inflação e desvalorização da moeda local: o automóvel serve como porto seguro para quem não confia no sistema bancário para deixar suas economias.

As montadoras não parecem esperar para saber o resultado das eleições. A tendência é continuarem a investir na expansão da produção na Argentina como forma de evitar atropelos no intercâmbio comercial com o Brasil.

A ideia da indústria automobilística de produzir nos dois lados da fronteira ganhou força a partir do tratado do Mercosul, em 1991, que permitiu o intercâmbio comercial livre de tributos.

Os dirigentes globais dessas multinacionais planejaram fazer dos dois países uma estrutura única de manufatura. Mas a lógica industrial foi, muitas vezes, atropelada por crises econômicas, em ambos os lados. E teve, em várias ocasiões, que andar ao sabor de caprichos políticos.

Esses dirigentes aprenderam, porém, a fazer ajustes, “dançar conforme a música”. Desta vez aguardam para ver qual será o tom do próximo tango.

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A CULPA É SEMPRE DOS OUTROS

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

Haddad sentiu o golpe, mas não deu o braço a torcer e culpou STF e Congresso

Nem parecia o mesmo Fernando Haddad. Ar cansado, contrariado, impaciente e, enfim, mal-humorado, o ministro da Fazenda disse a jornalistas que prometeu déficit zero em 2024, mas sabe-se lá se vai cumprir. E não concordou nem discordou do chefe Lula, que lhe passou uma rasteira e anunciou o fracasso da promessa antes de discutir com ele os vários ângulos de uma questão tão sensível. Pior: no fim do ano, com Haddad correndo contra o tempo para aprovar suas pautas no Congresso.

Sem ter como atacar o presidente, contar a verdade e apontar o dedo para o chefe da Casa Civil, Rui Costa, Haddad descarregou a culpa – ou a raiva? – no Congresso e no Supremo. Segundo ele, não foi Lula quem sabotou o País, foram os dois outros Poderes, que, desde 2017, vêm insuflando privilégios para empresas e secando a arrecadação federal.

“A estimativa de arrecadação não está se confirmando, mesmo com o PIB crescendo”, reclamou. Mas não assumiu a culpa, que jogou em fatores já conhecidos quando levantou a bandeira do déficit zero: juros, “ralos tributários”, “erosão da base fiscal do Estado” e duas decisões de seis anos atrás: o Congresso criou uma brecha que aumentou subvenções de R$ 39 bilhões para R$ 200 bilhões e o STF retirou PIS/Cofins do cálculo de ICMS de empresas de cigarros, logo, a Receita vai ter de “devolver” R$ 4,8 bilhões a elas. Mas quem pagou não foram as empresas, foram os consumidores...

O ministro da Fazenda tem razão ao reclamar do Congresso, do STF e de empresas e setores gananciosos, mas isso não elimina uma realidade: a visão antiquada, populista e perigosa de Lula e do PT sobre rigor fiscal e controle da inflação. Não é de hoje que Haddad e Rui Costa se confrontam, um tentando trazer pragmatismo e confiança, o outro sendo o fiel escudeiro das ideias do PT no Planalto.

Haddad tem uma relação quase filial com Lula, mas Rui Costa está a passos do gabinete e dos ouvidos de Lula, tão sensíveis a pregações populistas. Rigor fiscal, corte de gastos e respeito à matemática, ou ceder à tentação do discurso fácil de que, “no meu governo, não tem corte”? O risco de Haddad – e do governo – é ele perder a capacidade de influência sobre as decisões econômicas de Lula.

Se Rui Costa está mais perto do PT e das velhas convicções de Lula, Haddad se aproximou tanto de ideias mais modernas quanto de BC, Câmara e Senado, mundo empresarial, setor financeiro e mídia. Fez-se essencial. Se a economia for bem, o destino de Lula e do governo é um; se for mal, é outro. “Ir bem” significa seriedade, consistência e credibilidade, não um “saco de bondades” enganosas.

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FAZUELE

Carlos Andreazza, O Globo

Lula decretou a inviabilidade da meta fiscal. Decretada também a inviabilidade do arcabouço fiscal. Sem surpresas.

O presidente foi até comedido ao decretar a inviabilidade da meta fiscal:

— O que eu quero dizer é que nós dificilmente chegaremos à meta zero.

Dificilmente não será robusto o rombo. Decretada também a inviabilidade do arcabouço fiscal. Nenhuma novidade. Formulação para voo curto; como próprio a uma conta que não fecha. Nunca fecharia, se impossível a materialização da sanha arrecadatória. Incompreensível a surpresa. Boa parte da perplexidade com a franqueza de Lula derivada de desinformação sobre o projeto político eleito em 2022.

A democracia venceu e não é barata, conforme explicita o ritmo do Lirão-Express no Parlamento. Pagou, levou. Entregou, votou. Base em construção permanente. Base que, por movediça, estabilidade não oferece. Base que base não é. Que ganhou a Caixa e seu alcance. Em troca de votar medidas arrecadatórias. E que quer o banco — o Planalto prometeu — com porteira fechada; com a vice-presidência que cuida do Minha Casa, Minha Vida. Minha Caixa, Minha Lira, segundo o urbanista Washington Fajardo.

O Congresso a aprovar projetos multiplicadores de receitas, em troca de os oportunistas — quem dera houvesse um Centrão — ampliarem a superfície do Estado em que operam. A conta não tem como fechar. Lula desentendido sobre quem sejam os gananciosos. E logo será a Funasa; não sem que novas chantagens paralisem um pouco mais o país. E sem que se tenha aprendido com o passado; ou não terá sido numa vice-presidência da Caixa que Geddel Vieira Lima, sob Dilma Rousseff, alcançou seu brilho derradeiro? Apenas um exemplo. Agora é Lira. No Incra. Na Codevasf. Na CBTU. No Dnocs. E em expansão. O governo entrega. O imperador da Câmara distribui. Haja arrecadação.

Agora é Lula. De novo. Nada novo. O governo precisa arrecadar e precisa, desesperadamente, do Congresso, com cujos donos — os que aprovaram o arcabouço fiscal — compartilha progressivamente as rédeas dos gastos. A conta não fecha.

“Ah! Mas o arcabouço fiscal traz sinalização importante.” Trazia. Trouxe. Acabou. Sinalização — para controlar ansiedades — aterrada pela sinalização urgente de Lula: haverá eleições municipais em 2024, a nova jornada de Aceleração do Crescimento foi anunciada, e ele não vai “começar o ano fazendo corte de bilhões nas obras que são prioritárias neste país”.

A palavra do presidente resulta. Ele falou — o momento importa — e fez se impor o mundo real; o Congresso ainda a negociar, chama-se Lei de Diretrizes Orçamentárias, quão frouxas serão as cordas para o bloco do Orçamento se exceder na avenida. Tchau, arcabouço fiscal.

Tratamos, mais uma vez, de expectativas. De expectativas equivocadas. Frustradas, pois. Lula ganhou a eleição sem falar em rigor fiscal. Nem sequer em equilíbrio fiscal falava. Sua campanha, transparentemente, foi tocada sob o estandarte da vigorosa retomada de investimentos. Um programa desenvolvimentista, posto na rua com a largura da PEC da Transição.

(E então já se escuta o “Faz o L, Andreazza!”. Jair Bolsonaro e o bolsonarismo não têm autoridade moral para carteirada de austeridade fiscal. Praticaram estelionato eleitoral, sobre a conversinha liberal erguendo a tunga oportunista que, pela reeleição, produziria as PECs dos Precatórios e Kamikaze. Foi Bolsonaro quem arrombou a porteira, pelado de todo o teto de gastos.)

Não gosto de armar oposições simplistas — ademais, no caso, farsante — como a que se estimula entre Rui Costa (o gestor do PAC) e Fernando Haddad (zelador da, perdão pelo oximoro, austeridade fiscal petista). A fulanização, porém, serve a um esclarecimento: fossem mesmo essas as partes e esses os papéis, entre os ministros da Casa Civil e da Fazenda, seria o primeiro aquele a encarnar o discurso vitorioso nas urnas. Farsante a oposição porque imprecisa para com Costa — cavalo do homem, a somente encarnar a palavra de Lula. Haddad sendo o que destoa e talvez sobre. Em público. Impossível uma oposição entre presidente e ministro. Quem fica: aceita a regra e joga o jogo. Desnecessário lembrar que meta fiscal de ministro — “minha meta está estabelecida” — é tão relevante quanto meta fiscal de cronista.

Lula decretou a inviabilidade da meta fiscal. Não mentiu ao dizer que não mediria esforços para cumpri-la.

— Tudo o que a gente puder fazer para cumprir a meta fiscal a gente vai cumprir.

Sob a lógica operacional de arcabouço fiscal que voa como galinha, o governo faz mesmo tudo quanto possível para cumprir a meta. O instrumento é arrecadar muito mais. Como não corta gastos, crescentes, sempre, as despesas, o Planalto se orienta para aumentar as receitas. É o que pode — sabe — fazer. Justiça seja feita, não há no Parlamento outro projeto governista que não conjunto decidido em busca de levantar os dinheiros.

Se não for suficiente, paciência.

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UM TIRO ABAIXO DA LINHA D'ÁGUA NO DEFICIT ZERO

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

A ambiguidade criada por Lula não contribui para o sucesso da política econômica. O pior dos mundos será uma coalizão do Centrão com o PT para anabolizar as emendas parlamentares

Se a vida do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já era dura com a meta de deficit zero, ficou mais difícil depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu mão desse objetivo, jogando a toalha antes mesmo de começar o segundo tempo, porque essa meta era para 2024. Foi um tiro abaixo da linha d’água na blindagem da política econômica, cujo rombo Haddad tentou tapar, ontem, em entrevista coletiva, sem sucesso, porque não pode desdizer o presidente da República nem prometer o que ainda depende de o Congresso aprovar.

Haddad evitou responder sobre uma nova projeção da meta fiscal para 2024. Nos bastidores, a equipe econômica agora trabalha para conter o deficit entre 0,5% e 1% do Produto Interno Bruto (PIB). Haddad minimizou o desgaste da equipe econômica, tentou responder, mas o maior problema são as interrogações que continuam abertas ao mercado. “A minha meta está mantida”, disse Haddad. Esqueceu ou não quis falar sobre deficit zero, disse apenas que pretende antecipar medidas previstas para 2024 para buscar o equilíbrio fiscal.

Sustentar a meta de deficit zero era uma narrativa estratégica para conter a pressão por gastos do Congresso em ano eleitoral. E, também, sinalizar para o mercado a direção que se pretende seguir. Mesmo que a meta possa ser inatingível, abrir mão desse objetivo sinaliza frouxidão fiscal, o que já repercutiu no mercado, com alta dos juros futuros e do dólar. Também abre a porteira para a boiada das emendas parlamentares impositivas.

Deputados e senadores querem abocanhar uma fatia ainda maior do Orçamento da União do próximo ano, com a introdução da chamada “emenda Pix”, proposta do relator da Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO), deputado Danilo Fortes (PP-CE). Significa a liberação automática das verbas das emendas impositivas, sem intermediação do governo federal. No Congresso, a lei da gravidade é reduzir impostos e aumentar os gastos, mesmo que a conta não feche. Se ninguém puxar para cima, o equilíbrio fiscal despenca.

De certa forma, o presidente Lula jogou a equipe econômica aos leões. Haddad esteve com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para debater a aprovação do PLP 136/23, de autoria do governo federal, que aborda a reposição de perdas dos estados e municípios decorrentes das mudanças do ICMS dos combustíveis (LCPs 192/22 e 194/22) feitas no ano passado, durante o governo de Jair Bolsonaro.

O PLP 136/23 consolidará a reforma do imposto interestadual, que passou a ser uniforme em todo o território nacional e a ter alíquota fixa (ad rem) para a gasolina e o etanol anidro (desde junho de 2023), e o diesel e o GLP (desde maio). O projeto tramita em regime de urgência, mas há divergências entre Fazenda, governadores, prefeitos e distribuidoras de combustíveis.

Haddad pretende incorporar as cláusulas do acordo firmado no Supremo Tribunal Federal (STF) entre União, estados e municípios, com mediação do ministro Gilmar Mendes, na ADPF 984, para repor o caixa das unidades federativas que perderam receitas em decorrência das LCPs 192/22 e 194/22. O montante a ser pago chega a R$ 27 bilhões até 2025. Os repasses mensais aos municípios, nos próximos três anos, somam 25% (R$ 6,75 bilhões) desse total.

Emendas anabolizadas

Outras medidas que dependem de aprovação do Congresso são a reforma tributária, que voltou para a Câmara, e a taxação das aplicações em offshores, que seguiu agora para apreciação do Senado. Havia uma expectativa de que a mudança na direção da Caixa Econômica Federal (CEF) reduzisse as dificuldades do governo com a Câmara, mas as declarações de Lula fragilizaram Haddad, que agora terá que negociar com os líderes em mais desvantagem.

Uma das razões do sucesso do Plano Real foi a blindagem da equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Pedro Malan, no processo de reformas administrativa, previdenciária e patrimonial, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e o então presidente da Câmara, Luiz Eduardo Magalhães (antigo PFL-BA). Blindagem política é vital para o sucesso de qualquer política econômica.

A grande incógnita são as reais motivações de Lula. Se foi um “sincericídio”, diante das dificuldades reais para alcançar a meta, suas declarações têm uma dimensão negativa que pode ser corrigida por ele próprio e/ou pelas ações da Fazenda. Se é uma mudança de rumo na política fiscal, em atenção à cúpula do PT e ao ministro da Casa Civil, Rui Costa, porta-voz de seus colegas na Esplanada, pode ser o começo de um grande desastre. Porque exacerbará as demandas de gastos e uma espécie de “meu pirão primeiro” generalizado.

Sabe-se que há no governo atores que divergem da política econômica e que gostariam que o ministro da Fazenda fosse um economista do PT, como o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, ou o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. Naturalmente, a ambiguidade criada por Lula não contribui para o sucesso de sua própria política econômica. O pior dos mundos será uma coalizão do Centrão com a bancada do PT para anabolizar as emendas parlamentares ao Orçamento da União de 2024.

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O DÉFICIT ZERO E OS TROPEÇOS

Míriam Leitão, O Globo

Haddad tentou justificar a fala de Lula, mas, sobre economia, presidentes não improvisam e não deixam dúvidas no ar

Um Fernando Haddad irreconhecível chegou na entrevista coletiva de ontem. “Querida, faça o seu trabalho”, disse a uma jornalista que estava fazendo o seu trabalho. O ministro passaria os 30 minutos da entrevista tentando fugir da pergunta sobre a fala do presidente Lula de que a meta fiscal não será zero. Ele se referiu a vários problemas existentes, a um que tem solução já encaminhada, e os transformou nos motivos pelos quais Lula disse o que disse. Na verdade, Lula criou um problema ao declarar que a meta não seria zero. Eles podem ter superado esse mal-estar, mas a explicação de Haddad não convenceu.

Haddad escolheu um caminho árduo e tem travado um combate duro para corrigir distorções tributárias, fechar brechas pelas quais as empresas deixam de pagar impostos, propor suspensão de benefícios fiscais inaceitáveis. E desta forma ir aumentando a arrecadação, sem ter que simplesmente elevar a alíquota dos impostos.

O problema é que ele quis atribuir à fala do presidente Lula, na sexta-feira, que a meta fiscal de 2024 não será zero a esse cipoal de privilégios e distorções tributárias. Foi uma declaração descuidada de Lula. Ele só poderia ter dito o que disse se em seguida afirmasse que, em conversa com o ministro Fernando Haddad e a equipe econômica, chegou à conclusão que a meta que está no Orçamento é inatingível e, portanto, estava mandando uma emenda modificativa para o Congresso com a nova meta. Sobre economia, presidentes não improvisam e não deixam dúvidas no ar.

O erro foi do presidente Lula. O ministro Fernando Haddad quis reorganizar a fala do presidente e afirmou que ele se referia a essa perda de arrecadação provocada por decisões anteriores do Legislativo (a lei complementar 160) e do Judiciário, no caso da retirada dos incentivos de ICMS da base de cálculo dos impostos federais. Com a decisão tomada em maio pelo STJ, este problema caminha para a solução. A MP 1185 apresentada pelo governo fecha a brecha pela qual este ano estão saindo R$ 200 bilhões dos cofres públicos.

O que Haddad disse é verdade: tem havido erosão da base tributária por uma série de benefícios dados às empresas ou arrancados por elas através de intermináveis ações judiciais. E sim, este ano a arrecadação está caindo. Não é apenas por isso. A arrecadação caiu até por bons motivos, um deles foi a deflação dos IGPs. A queda da inflação é boa para a economia, mas reduz a receita do governo.

Tudo o que Haddad falou é correto, mas nada do que disse explica a fala do presidente. Não foi por isso que Lula disse que o déficit não seria atingido. Ele estava refletindo uma disputa interna no governo, desde que Haddad estabeleceu essa meta e mostrou disposição para continuar perseguindo-a. Aliás, o ministro repetiu o seu compromisso:

— A minha meta está estabelecida, eu vou buscar o equilíbrio fiscal com medidas justas.

Um caso que ele contou de “uma empresa de cigarros” é mesmo escandaloso e mostra um problema real contra o qual o ministro deve mesmo se dedicar. Essa empresa teria pedido na Justiça, e ganhado, um crédito de PIS/Cofins de R$ 4,8 bi. Ele explicou o que isso significa.

— Os consumidores pagaram o imposto, a empresa recolheu, e agora a Justiça mandou devolver a ela o dinheiro que, na verdade, não foi pago por ela e sim pelos consumidores.

Realmente um absurdo. No mundo inteiro empresas de cigarros pagam mais e não menos impostos. O ministro chamou de “devolução” o que de fato é. Ainda que a Receita não entregue dinheiro à empresa, ela poderá deixar de pagar impostos com base nesses créditos. O que fere os cofres públicos do mesmo jeito.

Tudo isso é sério, grave e verdadeiro. Tem sido parte do trabalho de Fernando Haddad tornar o sistema tributário menos injusto. Ele avança a cada vitória. Na semana passada, a Câmara aprovou a mudança, proposta por ele, que altera a forma de cobrança de tributo dos fundos exclusivos e offshore. Os muito ricos passarão a pagar imposto que nunca pagaram.

O problema é que não foi esta a fonte de irritação do ministro nesta segunda-feira. Também não foi esta a razão que levou o presidente Lula a falar que a meta não será cumprida. O correto teria sido anunciar, ao lado de Haddad, a nova meta. Teria havido menos ruído. Até porque, o governo está de fato derrubando o déficit. Mas o governo se atrapalhou inteiro, criando problema para si mesmo.

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DESENTROSADO

Merval Pereira, O Globo

Quem acredita que a opinião de Haddad tem importância, quando Lula diz que deficit zero não é necessário?

A tentativa de aparentar entrosamento entre o que disse o presidente Lula sobre a desnecessidade de zerar o déficit fiscal e a meta que persegue o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, só piorou a situação, com consequências óbvias no mercado financeiro. Muita ingenuidade do ministro ao tentar desviar do assunto na apresentação de novos diretores do Banco Central. Era evidente que o interesse geral seria saber como andava a relação dele com o presidente.

O máximo que Haddad conseguiu dizer é que sua meta estava mantida: déficit zero. Mas, se Lula acha desnecessário, quem acredita que a opinião de Haddad tem importância? Lula diz que é a “ganância do mercado” que fixa a necessidade de zerar o déficit, mas demonstra ignorância ao dizer isso. O mercado financeiro é essencialmente, acreditam os economistas liberais, um instrumento democrático como transmissor das expectativas da opinião pública. Nem mesmo o capitalismo de Estado da China, que não se pode classificar de país democrático como entendemos aqui no Ocidente, prescinde do mercado financeiro. Por pragmatismo.

Lula começou seu governo disposto a restaurar a imagem do Brasil no exterior e a recriar programas sociais de antigos governos petistas. Obteve sucesso na empreitada, embora a maioria dos brasileiros, segundo pesquisas de opinião, considere que ele dá demasiada importância ao resto do mundo e deveria se dedicar mais ao país que preside.

Concordo apenas em parte, porque considero que o Brasil precisava voltar ao convívio global civilizado e mostrar-se um país relevante no cenário internacional. Mesmo que essa relevância seja relativa, e não absoluta, como quer Lula. Para que o Brasil seja relevante internacionalmente, não basta apenas a presença de Lula, que já foi considerado “o cara” por Obama, mas isso quando a imagem do operário que virou presidente da República ainda deslumbrava o mundo.

É preciso que o Brasil demonstre responsabilidade fiscal, que tenha um governo que combata a corrupção, que tenha uma visão holística do desenvolvimento social, que englobe também economia e meio ambiente. Se abrir mão do equilíbrio para tentar acelerar o desenvolvimento, acabará produzindo inflação, não bem-estar.

Vinte anos depois, Lula já não é o mesmo, nem sua imagem a mesma. Continua um animal político nato, mas já sem a agilidade na fala e nos gestos. No currículo leva controvérsias e pendências que somente os fanáticos não querem ver. Livrou-se das acusações de corrupção por manobras jurídicas, não por provas, e mesmo os desvios de conduta apontados contra seus acusadores de Curitiba não apagam as denúncias e as confissões obtidas pela Operação Lava-Jato. Nem os bilhões devolvidos deixam dúvidas sobre o que aconteceu.

Sua relação com o Congresso, que anteriormente manobrava apenas com o verbo e a verba, hoje lhe custa mais caro, porque os parlamentares ganharam poderes nos últimos anos, e o relacionamento entre Executivo e Legislativo mudou de patamar. Da mesma maneira que mudaram as relações de poder entre Supremo e Congresso. A democracia brasileira hoje é outra, também o Supremo subiu de patamar, enquanto o Executivo vai tendo de se adaptar a um jogo mais equilibrado.

O Brasil já foi um hiperpresidencialismo, hoje é um simulacro de parlamentarismo, e essas distorções dificultam a governabilidade. Lula já não tem os instrumentos necessários para enfrentar um presidente da Câmara como Arthur Lira, que não tem limites nem pudores exagerados, não teme enfrentar os demais Poderes para colocar o Congresso como peça fundamental no jogo de disputa de espaço no tabuleiro político. “Verba é poder” parece ser seu lema. Como todos os Poderes da nossa combalida República têm interesses próprios, que se colocam, não raramente, acima do interesse coletivo, fica impossível saber o rumo que o país tomará.

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DEFENDER A DEMOCRACIA, COMBATER DESIGUALDADES E PROMOVER O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Do Democracia Política 

Cidadania - Resolução política:

O governo eleito em outubro passado, pelo esforço e cooperação de uma ampla frente política e partidária, está perto de completar um ano de exercício. É tempo de proceder a um balanço de suas ações, para identificar os ganhos obtidos, as dificuldades encontradas e as tarefas necessárias para a realização plena da agenda programática que unifica as forças democráticas no país.

A questão política central, que ainda domina a conjuntura, no Brasil e no mundo, é o embate entre as forças políticas democráticas e o autoritarismo, que aqui foram derrotadas na eleição de 2022 e na tentativa de golpe de 8 de janeiro, cujo fracasso teve como consequência o desbaratamento do grupo golpista, além do alinhamento dos Poderes da República em torno da defesa do Estado de direito democrático.

Está em curso o julgamento dos envolvidos diretamente nesse episódio, condenando-os a severas penas; a Comissão parlamentar Mista de Inquérito que investigou aqueles acontecimentos concluiu seu trabalho e indiciou 61 pessoas, entre as quais o ex-presidente Jair Bolsonaro, oito generais e um almirante, por participação, conivência ou omissão diante dos fatos. Seu relatório já foi incluindo no inquérito que investiga a tentativa de golpe.

No entanto, as forças políticas autoritárias mantêm sua força na opinião pública nacional, com suas lideranças à frente de governos estaduais e nas duas Casas do Congresso Nacional. A presença da extrema-direita na vida política nacional é resiliente e uma variável perene do processo político, com a qual teremos que lidar.

O embate eleitoral de 2024 será um campo de disputa de posições políticas entre as forças democráticas e também a extrema-direita, o que exigirá de todos os que têm compromisso com a democracia esforços redobrados no processo eleitoral para isolar os candidatos de extrema direita, sem ceder à tentação maniqueísta de restringir as alianças exclusivamente às forças progressistas. A defesa da democracia, o combate às desigualdades e o desenvolvimento sustentável exigem convergência de amplos setores democráticos e olhar atento aos interesses populares, à defesa da ética e o combate à corrupção.

Nessa conjuntura, permanece como nossa tarefa central a ampliação e consolidação da ampla frente democrática que se constituiu no segundo turno das eleições de 2022, responsável pela vitória do atual governo. Entretanto, nem sempre essas forças marcharão unidas nas disputas locais, o que exige do Cidadania muita flexibilidade na construção de alianças.

Coerente com seus posicionamentos de oposição ao governo passado, o Cidadania deu apoiou à candidatura do atual Presidente Lula no segundo turno e defende o governo nos projetos de interesse do povo brasileiro, sem subalternidade. Destacam-se, nesse programa, as políticas voltadas ao combate à exclusão e às desigualdades sociais, a implementação de projetos com o objetivo de assegurar o acesso de todos os cidadãos a serviços de educação e saúde de qualidade. E a diretriz de universalização do acesso a serviços públicos e ainda a transferência de renda aos mais necessitados.

Na questão da sustentabilidade, a reversão da situação de caos e retrocessos herdada do governo anterior está em curso. O combate ao desmatamento e a defesa das populações indígenas ganharam o estatuto de prioridade, após quatro anos de permissividade e até estímulo à destruição ambiental. A diretriz de substituição do carbono por fontes de energia limpa é uma prioridade, que exige estratégias eficazes para seu alcance e competência técnica e política para a execução dessa tarefa. Nesse aspecto, a questão da Amazônia é fundamental, porque exige a superação do velho modelo agro-exportador para novas cadeias produtivas mais responsáveis e sustentáveis, com ênfase na biotecnologia e indústrias voltadas para a nova economia.

No horizonte econômico, a gestão do ministro Fernando Haddad é positiva. Para além da aprovação de regras novas de controle do gasto público, acumulam-se evidências de um cenário consistentemente no curto prazo, particularmente no que se refere a expectativas inflacionárias. O grande desafio imediato é a aprovação da reforma tributária em curso, para a racionalização da atividade empresarial e a alavancagem do crescimento. A busca do equilíbrio fiscal é indispensável.

Quanto à política externa, verifica-se a reversão da situação de caos deixada pelo governo anterior nas relações com o mundo e a retomada dos grandes temas da tradição diplomática brasileira. Repúdio às soluções dos conflitos por meio da força, combate a todo tipo de hegemonismo das grandes potências, reforço do multilateralismo como instrumento relevante para o enfrentamento dos grandes problemas globais: a manutenção da paz, o combate à mudança climática, a superação das situações de fome, exclusão e desigualdade sociais que prevalecem ainda em amplas regiões do mundo, o avanço da democracia e do respeito aos direitos humanos.

Tanto na Ucrânia quanto na Faixa de Gaza urge um cessar-fogo imediato e uma saída pacífica e duradoura para esses conflitos territoriais. Nesse aspecto, reiteramos nossa posição contrária ao regime “iliberal” de Nícolas Maduro e à invasão da Ucrânia pela Rússia. Repudiamos o ataque do Hamas a Israel, uma organização terrorista, e também condenamos o massacre de palestinos, sobretudo crianças, mulheres e idosos, nos bombardeios indiscriminados e na invasão da Faixa de Gaza por Israel.

Nossas tarefas

Temos um governo de frente democrática. Esse governo implementa uma agenda coincidente com as tarefas da democracia, no Brasil e no mundo. O balanço do seu desempenho representa uma mudança de qualidade no processo político e econômico, que pode inaugurar um novo ciclo de crescimento e melhoria das condições de vida da população. Trata-se de um cenário benéfico para o fortalecimento da democracia, o combate às ameaças climáticas, o resgate social da população em situação de miséria absoluta e ampliação da classe média, e uma projeção da política externa focada no combate às ameaças climáticas, na busca da paz e no multilateralismo para solução dos conflitos e disputas comerciais.

Nossa prioridade, em linha com o Diretório Nacional, é enfrentar o desafio das eleições municipais de 2024, de maneira a eleger o maior número possível de vereadores, vice-prefeitos e prefeitos. Para isso, precisamos dialogar com o PSDB em todos os níveis e estruturar a federação nos estados e municípios, de acordo com as regras estabelecidas nos seus estatutos. Um bom relacionamento político possibilita sempre o benefício mútuo.

Urge também restabelecer o funcionamento regular do partido, com a realização obrigatória das reuniões de seus diretórios e executivas, em todos os níveis, nos prazos previstos estatutariamente, de acordo com os princípios da direção coletiva; e atrair novos filiados e candidatos competitivos, bem como estabelecer com o PSDB uma estratégia de atuação comum, que facilite a construção de “nominatas” competitivas, com objetivo de eleger o maior número possível de vereadores e construir candidaturas majoritárias robustas.

Como é nossa tradição e cultura política, nosso esforço de diálogo deve abarcar também os demais partidos democráticos, em busca de convergência política na estruturação de candidaturas majoritárias, principalmente no segundo turno, onde houver. O bom relacionamento com os demais partidos do campo democrático é relevante tanto para as eleições municipais de 2024 quanto para o futuro do Cidadania, pois as eleições de 2026 também estão no horizonte. Do ponto de vista programático, devemos destacar a centralidade da educação de qualidade, da assistência à saúde e do combate à violência nas eleições municipais.

Brasília, 30 de outubro de 2023

A Comissão Executiva Nacional

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MAIS RIGOR CONTRA O FEMINICÍDIO

Opinião Correio Braziliense

Na capital federal, ocorreu aumento de 70,6% (29 casos) em 10 meses, na comparação com todo o ano passado (17 mortes). Em Minas Gerais, foram 20 crimes até agora, contra 19 em 2022 (alta de 5,3%)

No primeiro semestre deste ano, ocorreram 1.153 feminicídios no Brasil, 72% a mais do que em igual período do ano passado (669). Na capital federal, ocorreu aumento de 70,6% (29 casos) em 10 meses, na comparação com todo o ano passado (17 mortes). Em Minas Gerais, foram 20 crimes até agora, contra 19 em 2022 (alta de 5,3%). O clima de insegurança que afeta a sociedade brasileira torna-se mais denso em torno das mulheres, em boa parte, depreciadas, coisificadas ou ignoradas. As políticas públicas, de um modo geral, e, em especial, as de segurança pública não têm conseguido domar a fúria masculina contra a companheira ou ex-parceira.

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) estabeleceu as punições para a violência doméstica. Em seguida, foi complementada pela Lei do Feminicídio (13.104/2015), que tornou esse crime homicídio qualificado e o inseriu na lista de crimes hediondos, com penas mais altas, de 12 a 30 anos de privação de liberdade. Neste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.550/2023, que modificou a Lei Maria da Penha, acrescentando a determinação de que às medidas protetivas de urgência sejam concedidas de maneira sumária, ou seja, no momento em que a vítima fizer denúncia perante a autoridade policial.

Não faltam leis nem decisões judiciais. Ainda assim, as mulheres são vítimas da violência incontida dos homens. Para a primeira brasiliense a assumir uma cadeira de ministra do Superior Tribunal de Justiça, Daniela Teixeira, os níveis de feminicídios envergonham o Brasil. “É algo que precisa de uma solução de todos: Executivo, Legislativo, Judiciário, escola, imprensa”, afirmou a ministra em entrevista ao Correio Braziliense.

Quando a mulher chega ao ponto de recorrer à Justiça em busca de medida protetiva, ela revela não suportar mais a carga das crescentes etapas da violência doméstica. O conflito começou com discussões e, a partir daí, descambou para as agressões psicológica, moral, patrimonial e física (tapas, pontapés, estupro). Na realidade, a vítima antevê que a próxima briga não ficará restrita a xingamentos e surra, mas, provavelmente, poderá ser a última, com a sua morte, por arma branca, de fogo ou estrangulamento.

Esse desfecho comum não pode ser aceito nem banalizado. Pelo contrário, o final infeliz pode e deve ser evitado, como afirmou a ministra, desde que a polícia aja com seriedade e o juiz aplique com rigor a lei. À mulher, deve ser dado um “botão do pânico”, para que tenha meios de alertar a polícia quando o agressor desrespeitar a medida protetiva.

Nas delegacias, devem existir painéis que permitam fiscalizar os homens a distância, assim como há para o controle remoto do trânsito de veículos. Qualquer passo rumo à residência ou ao trabalho da mulher, deverá ser motivo suficiente para contê-lo, evitando mais uma morte por gênero, dando cumprimento à medida protetiva. Condenar o agressor à pena máxima, após o assassinato da companheira ou da ex-parceira, é medida de pouco efeito, pois mais uma vida foi perdida, crianças e adolescentes ficaram órfãos de mãe e marcados pela vergonha e pelos traumas provocados por um pai prisioneiro.

Aumentar o rigor das leis e das punições é decisão insuficiente. O machismo, força propulsora do comportamento inadequado dos homens, exige uma reeducação deles para a vida em família e em sociedade. Hoje, tanto no Distrito Federal quanto em vários estados, há projetos exitosos nesse sentido. Os agressores de mulheres são obrigados a passar por esse processo, a fim de compreender que a superioridade masculina é uma farsa, criada a fim de subjugar, depreciar a mulher e torná-la submissa aos interesses do sexo oposto. É preciso romper essa falsa compreensão, que sustenta um ciclo nefasto e custa muitas vidas.

Impõe-se imprescindível educar dentro da cultura de equidade de gênero. Exemplos devem partir do Estado, garantindo à mulher espaço nas instâncias de poder, para que a paridade de gênero deixe de ser um anseio e se torne uma realidade no Estado Democrático de Direito.

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ISRAEL E SEUS DILEMAS

Editorial O Estado de S. Paulo

Incursão gradual em Gaza mostra que Israel escolheu a cautela, mas falta estratégia política

A incursão israelense em Gaza inaugurou a “segunda fase” da guerra. O fato de que ela não só foi retardada, mas não foi “total”, traz alguma clareza sobre a escolha estratégica de Israel, mais cautelosa e gradual. Ainda assim, essa estratégia enfrentará sérios dilemas e desafios.

Publicamente, o objetivo permanece: obliterar a capacidade de agressão do Hamas, eliminar seus líderes e defenestrá-lo do governo de Gaza.

O primeiro desafio é tático. A guerra urbana é um pesadelo. Em Gaza será o pior deles. Os escombros favorecem o Hamas, que construiu uma vasta rede de túneis. A estratégia parece ser um cerco sufocante para expelir deles as milícias do Hamas.

Tudo se complica pelo fato de que o Hamas não é um inimigo convencional, mas um regime totalitário e terrorista fechado a negociações, que quer a dizimação do Estado judeu e utiliza hospitais como bases militares e o sacrifício de palestinos como tática. Para piorar, o Hamas mantém mais de 200 reféns.

Minimizar a morte de palestinos é uma necessidade humanitária e estratégica. As imagens de destruição em Gaza estão erodindo a legitimidade das operações de Israel e provocando ultraje entre as populações árabes. Mas Israel precisa manter abertas as portas para a normalização com regimes sunitas.

E há o risco de uma conflagração regional. As trocas de fogo entre milícias “por procuração” do Irã, especialmente o Hezbollah no Líbano, com Israel e com bases militares americanas na Síria e Iraque, têm sido contínuas, mas contidas. Um ataque aberto do Hezbollah poderia obrigar Israel a invadir o Líbano, eventualmente tragando para o conflito tropas americanas. Se o Irã retaliar, por exemplo, fechando o Estreito de Ormuz, por onde passam cerca de 30% do petróleo e do gás globais, o impacto sobre a economia mundial seria devastador. Os EUA e países do golfo árabe se veriam obrigados a uma operação de desbloqueio, mas o Irã poderia reagir insuflando milícias por todo o Oriente Médio. Todos perderiam e não é racional para o Irã conduzir a essa escalada. Mas o país segue alertando contra “linhas vermelhas” e, se o conflito em Gaza se tornar ainda mais sangrento, a racionalidade pode ir pelos ares.

As incursões graduais de Israel sinalizam que ele tenta manejar esses riscos, substituindo a aniquilação imediata do Hamas por uma estratégia híbrida: ferir o Hamas de morte, mas deixar que sangre até a impotência.

Um desafio final, porém, resta obscuro: o que fazer depois? Uma opção viável seria concertar, com a alavancagem dos EUA, uma coalizão de países árabes para restabelecer um governo civil em Gaza. Mas eles estão hesitantes e a operação passaria necessariamente pela participação da Autoridade Palestina, a adversária do Hamas que governa a Cisjordânia.

O problema é que a Autoridade Palestina é corrupta, esclerosada e desacreditada e não há sinal de que o governo de Benjamin Netanyahu esteja revendo suas políticas de ocupação e atrito na Cisjordânia, que contribuíram largamente para essa corrupção, esclerose e descrédito.

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PARIDADE DE GÊNERO É QUESTÃO REPUBLICANA

Editorial O Estado de S. Paulo

Tão mais justo será o País quanto menor for o abismo entre a demografia, onde as mulheres são a maioria da população, e a política, em que se perpetua a sub-representação feminina

Novos dados do Censo 2022, divulgados pelo IBGE no dia 27 passado, revelam que o Brasil é um país cada vez mais feminino. No ano passado, 51,5% da população era de mulheres, ante 48,5% de homens. São números que, como há muito se sabe, não apontam para uma nova realidade, mas que confirmam uma tendência demográfica que só tem se consolidado no tempo.

Também não é novidade, eis o ponto a lamentar, que, malgrado avanços sociais conquistados nos últimos anos no que concerne à paridade de gênero, a representação feminina na política brasileira ainda é muito desigual. O Congresso, para citar apenas o exemplo mais eloquente desse descompasso, ainda é dominado por homens e, talvez por isso, ainda se move orientado por visões de mundo e percepções da vida em sociedade marcadamente masculinas.

Essa separação entre duas realidades muito nítidas, a política e a demográfica, não dá conta de encaminhar a miríade de interesses em jogo em uma sociedade diversa e complexa como a brasileira. Tão mais justo será o País quanto menor for o abismo entre a demografia, onde as mulheres são a maioria da população, e a política, em que se perpetua a sub-representação feminina. É nessa direção que a sociedade deve caminhar caso almeje a construção de um Brasil mais inclusivo no futuro.

A pavimentação desse caminho auspicioso não será feita apenas pela força da lei, como a das cotas eleitorais, que obriga cada partido ou coligação a preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo nas eleições para Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. As cotas agem como uma espécie de motor de partida para transformações que, ao fim e ao cabo, hão de vir da própria sociedade.

Alinhadas à formação de novas lideranças, uma das principais missões dos partidos, as cotas para candidaturas de gênero, desde que preenchidas com espírito público e respeito à lei, tendem a aumentar a presença feminina no Congresso e, desse modo, fortalecer a agenda de interesses das mulheres no Poder Legislativo – o que acaba estimulando um círculo virtuoso em toda a sociedade. Hoje, lamentavelmente, vê-se o contrário: com menos mulheres do que homens no Congresso, há menos espaço para a discussão e promoção de seus direitos.

A sociedade civil está repleta de exemplos de boas ações de promoção da paridade de gênero em múltiplas frentes da vida cotidiana. É dever dos partidos, como representantes que são dos diferentes interesses, valores e ideologias dos cidadãos, participar desse esforço coletivo e estimular essas lideranças femininas a ingressar na vida político-partidária, começando por suas próprias estruturas administrativas.

Há alguns dias, o presidente Lula, a propósito da substituição de Rita Serrano na presidência da Caixa por um homem, queixou-se de que “os partidos não têm mulheres para indicar” ao governo. Ora, é claro que têm. A questão de fundo é que essas mulheres não são estimuladas a participar mais ativamente da vida partidária, quando não são impedidas de alçar voos mais arrojados, até chegarem às esferas decisórias. Dos 23 partidos representados no Congresso, contam-se em poucos dedos os que são liderados por mulheres.

A sub-representação feminina em cargos políticos é um problema que vai além da desigualdade de gênero. Estáse tratando de severas consequências para a formulação de políticas públicas e para uma representatividade política mais equânime da população. Quando as mulheres não estão adequadamente representadas, consequentemente, suas preocupações e necessidades tendem a ser negligenciadas. E isso não raro resulta em políticas públicas que não abordam questões cruciais, como igualdade salarial, violência de gênero e acesso à saúde reprodutiva, entre outras.

Por fim, mas não menos importante, o caminho para a superação de uma mazela tão secular quanto vexatória passa ainda pela promoção, desde as escolas, da educação sobre igualdade de gênero e a conscientização sobre a importância da representação das mulheres em múltiplas esferas da vida nacional.

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A TRIBULAÇÃO DE HADDAD

Editorial O Estado de S. Paulo

O que todos queriam saber é se o ministro ainda contava com respaldo de Lula para buscar o déficit zero em 2024. Sua irritação ante as perguntas dos jornalistas demonstrou que não

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tinha uma tarefa difícil de ser cumprida nesta segunda-feira: convencer o País de que o governo ainda tem como meta zerar o déficit fiscal em 2024. Bem que ele tentou, mas o presidente Lula da Silva tornou seu trabalho impossível.

Como reafirmar um compromisso sobre o qual já havia muito ceticismo sem desautorizar o chefe? Havia pouquíssimas formas de fazê-lo de maneira convincente, mas a convocação de uma entrevista, logo após uma reunião entre Haddad e o presidente, alimentou expectativas.

Esperava-se de Haddad que dissesse que Lula não escolheu bem as palavras ou foi mal interpretado. Não seria o primeiro nem o único ministro da área econômica a fazê-lo. O que se viu, porém, foi bastante constrangedor. Depois de um fim de semana de silêncio, Haddad ainda achava que poderia tergiversar.

Primeiro, chegou ao Ministério acompanhado dos economistas Paulo Picchetti e Rodrigo Alves Teixeira, nomes indicados para a diretoria do Banco Central (BC). Numa segunda-feira normal, este seria um tema de muito interesse da imprensa. Não era o caso.

Depois de apresentá-los, o ministro passou a meia hora seguinte a repetir a importância de medidas para recuperar a arrecadação e a lamentar decisões do Congresso, do Judiciário e de governos anteriores que contribuíram para erodir a base fiscal. Sem corrigi-las, não seria possível elevar as receitas – e este, segundo Haddad, teria sido o contexto no qual Lula se baseou para reduzir a importância do déficit zero.

Claro que não colou. Incisivamente questionado pelos jornalistas sobre a meta fiscal do ano que vem, o ministro passou a responder às perguntas com ironia e irritação. Por fim, referiu-se à meta de déficit zero como “minha meta” e encerrou a entrevista no momento em que foi instado a explicar claramente o que queria dizer com isso. Não respondida, a dúvida era pertinente: afinal, a meta fiscal de Haddad é a meta fiscal de Lula?

O ministro pode ter a meta que quiser, desde que esteja combinado com seu chefe. Do contrário, não será uma meta crível. Desde sempre, todos sabiam, inclusive dentro do governo, que a meta de déficit zero era utópica, e nunca ficou claro como Haddad pretendia reverter o rombo das contas públicas em tão pouco tempo sem anunciar medidas estruturais para aumentar impostos ou reduzir os gastos públicos.

Que a base fiscal do governo tem sido corroída nos últimos anos não é segredo para ninguém. A maior evidência disso é que as receitas não têm acompanhado o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). O superávit pontual atingido em 2022 não teria sido alcançado se não fosse a disparada das cotações do petróleo.

As despesas, por outro lado, têm subido de forma constante nos últimos anos e tiveram um impulso extra, muito além do necessário para recompor o Orçamento destroçado pelo então presidente Jair Bolsonaro, na emenda constitucional da transição – e isso no primeiro ano de mandato de Lula, período preferencial para os governantes adotarem medidas mais austeras.

Atingir o déficit zero era impossível. O que todos queriam saber é se Haddad ainda contava com o respaldo político do presidente para perseguir ativamente a meta e defendê-la. Sua irritação demonstrou que não.

O incômodo do ministro é compreensível, mas ele terá de começar a se acostumar. As enfáticas perguntas dos repórteres, que Haddad não gostou, voltarão a ser feitas pelo setor produtivo, pelos investidores e pelos parlamentares.

Durante a entrevista, o dólar voltou a se valorizar ante o real, a despeito da onda de enfraquecimento da moeda norteamericana no exterior; o Ibovespa caiu, descolado da alta registrada nos mercados internacionais; e os juros futuros continuaram a subir, embora seja esperado que o Banco Central anuncie uma nova redução dos juros amanhã. Não foi um movimento meramente especulativo, mas demérito do desacreditado Haddad.

Não é improvável que deputados e senadores, ao discutirem a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024, se sintam à vontade para propor a alteração da meta à revelia do ministro. Mas, se hoje Haddad sangra em praça pública, a culpa não é das perguntas incisivas da imprensa. É da sinceridade irresponsável do presidente da República.

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REFORMA AZEITADA

Editorial Folha de S. Paulo

Congresso precisa ser ágil ao votar alterações necessárias no ensino médio

Finalmente o governo federal enviou ao Congresso o projeto de lei que altera a reforma do ensino médio. O programa foi sancionado em 2017, com um cronograma que previa conclusão para 2024.

A reforma foi alvo de protestos —muitos de cunho político e corporativista— que exigiam, de modo insensato, sua revogação. Afinal, o objetivo da mudança é válido: reduzir a evasão escolar ao aumentar a autonomia dos alunos na escolha de um currículo mais focado em suas aptidões.

Contudo, de fato, a implementação foi problemática. Antes de 2017, os três anos do ensino médio tinham 2.400 horas de disciplinas obrigatórias a todos os alunos. A reforma expandiu a carga para 3.000 horas, sendo 1.800 para as tradicionais, como português e matemática, e 1.200 para os chamados itinerários formativos, com matérias de escolha dos estudantes.

O problema é que as redes de ensino não contam com infraestrutura (salas de aula, laboratórios, oficinas, material didático etc.) e professores suficientes, com formação especializada, para uma expansão ampla e de qualidade.

Ademais, desconsiderou-se a situação dos jovens que conciliam estudos e trabalho, para os quais o aumento da carga horária poderia levar à evasão escolar.

Por isso, o Ministério da Educação agiu com sensatez ao interromper a implantação da reforma em abril e instituir uma consulta pública com entidades do setor.

Segundo o projeto enviado ao Congresso, a carga horária das disciplinas tradicionais passa de 1.800 (60%) para 2.400 (80%).

Os quatro itinerários formativos se mantêm, mas articulam três áreas do conhecimento —como por exemplo "Linguagens, Matemática e Ciências da Natureza"—, em vez de focar em apenas uma.

A eles, soma-se a possibilidade de oferta de ensino técnico profissional, fundamental para inserção de jovens no mercado de trabalho —neste caso, a carga do currículo comum diminui para 2.100 horas.

Ainda é preciso enfrentar a questão dos jovens que trabalham. Em setembro, Camilo Santana, ministro da Educação, indicou que criaria programa de bolsa e poupança para alunos do ensino médio, mas ainda não foram definidos critérios, orçamento e implementação.

Agora, espera-se que o Congresso aja com celeridade na votação do projeto. Os quase 8 milhões de jovens que cursam essa etapa do ensino não podem mais esperar.

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JANELA QUE SE FECHA

Editorial Folha de S. Paulo

Censo revela envelhecimento do país, que começará a perder bônus demográfico

"Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, no meu coração" animava o país, em 1970, a famosa canção ufanista de Miguel Gustavo Martins, quando a seleção se consagraria campeã mundial de futebol, pela terceira vez, no México.

Naquele ano, em meio ao chamado "milagre econômico", o PIB cresceria 10,4%, sustentado pelo grande endividamento externo na ditadura militar (1964-1985) e a migração acelerada do campo para as cidades. O país era também consideravelmente mais jovem.

Dados do Censo de 2022 divulgados na semana passada, contudo, revelam, meio século depois, um Brasil que envelhece rápido, impondo desafios cada vez maiores para o aumento do bem estar em um contexto de crescimento econômico persistentemente baixo.

Se, entre 1970 e 2022, a população aumentou pouco mais de 2,2 vezes, de 90 milhões para 203,1 milhões, os brasileiros com 65 anos ou mais saltaram 7,5 vezes, de 2,95 milhões para 22,2 milhões. Os acima de 80 anos decuplicaram, passando de 451 mil para 4,6 milhões.

Na contramão, o total de crianças e pré-adolescentes (0 a 14 anos) despencou de 42% para 19,8%. E aqueles no miolo da estratificação, onde concentram-se os que têm idade para trabalhar (15 a 64 anos), são agora 69,3%, ante 54,7% em 1970 —e 68,5% no Censo de 2010.

Para o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor por duas décadas na Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, os últimos 50 anos têm sido o "período dourado" do bônus demográfico. Mas 2022 parece marcar o auge das condições favoráveis ao Brasil.

Tudo indica que, a partir de agora, essa janela de oportunidade comece a se fechar, com o aumento da chamada razão de dependência.

O termo refere-se à quantidade de menores de 14 anos e maiores de 65 que existem para cada pessoa em idade ativa, entre 15 e 64 anos. A regra serve para analisar a carga para sustentar indivíduos que não estão trabalhando e que, portanto, dependem dos ativos.

Com a perspectiva de diminuição do total de trabalhadores como proporção de idosos, o desafio que se coloca é aumentar a produtividade dos que estão no mercado, para que gerem mais riqueza.

Neste quesito, infelizmente, o Brasil apresenta resultados decepcionantes, sobretudo pelo fato de quase 40% da força de trabalho ser informal, setor em que os empregos são bem menos produtivos.

Na raiz do problema está, mais uma vez, a persistente crise fiscal brasileira e os juros elevados pagos pelo setor público, que inibem investimentos produtivos e a criação de mais vagas formais. A janela do bônus demográfico que se fecha é mais um alerta para que o problema seja resolvido o quanto antes.

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SECA NO NORTE É FATOR ADICIONAL DE PREOCUPAÇÃO COM A ECONOMIA

Editorial Valor Econômico

Custa a crer a inexistência de planos alternativos de logística, uma vez que a seca é tradicional nesta época

A seca histórica na região Norte já afeta negativamente a vida de 15% da população do Amazonas, que está com problemas de abastecimento de água e locomoção, e com 60 dos seus 62 municípios em estado de emergência. Agora, entrou no radar a preocupação com o impacto da seca na atividade econômica no fim de ano. Pelos rios são conduzidos 95% do transporte dos insumos que abastecem as fábricas da Zona Franca de Manaus e escoados produtos acabados para o varejo do país. Já se dá como certo que as vendas de eletrônicos da Black Friday em novembro perderão descontos, e há o receio de que o Natal seja afetado. Há problemas também no escoamento de produtos agrícolas de exportação pelos portos do Arco Norte.

As indústrias da Zona Franca de Manaus cobrem 26 setores econômicos e empregam 500 mil pessoas, 12,5% da população do Estado. O polo é responsável por toda a produção de ar-condicionado, televisores, máquinas de lavar louça e micro-ondas do país. Boa parte dos equipamentos eletrônicos, como celulares (30%), fones e relógios inteligentes (40%), são lá produzidos, assim como 80% das bicicletas e quase 100% das motocicletas.

O primeiro sinal de alerta veio das montadoras de motocicletas, que, já no início de outubro, reclamaram das dificuldades para a chegada de insumos e escoamento da produção, e do consequente aumento dos fretes. Depois de três anos consecutivos de produção afetada pela pandemia, as empresas esperavam um período mais tranquilo. Tudo parecia correr bem até setembro, quando a produção acumulada em 1,19 milhão de unidades mostrava o melhor resultado em nove meses desde 2013. Mas a seca histórica pode frustrar a expectativa de que o ano mantenha a recuperação. No fim de outubro, quatro empresas que juntas representam 19,6% do mercado - Yamaha, Kawasaki, JTZ e Triumph - anunciaram férias coletivas.

As empresas do polo geralmente programam férias coletivas entre o Natal e os primeiros dias de janeiro, período de menor demanda. Mas este ano será diferente. Cerca de 30 empresas informaram o Sindicato dos Metalúrgicos no Amazonas (SindMetal- AM) que estão antecipando as férias por conta da falta de insumos causada pela seca. Entre elas está a Samsung, que produz em Manaus de tablets e smartphones a televisores e aparelhos de ar-condicionado. A Philco não descarta a providência. Algumas empresas afirmam que se preveniram, antecipando a compra de componentes em julho. Uma delas é a Mondial. Mas restou a dificuldade de despachar a mercadoria para os centros consumidores.

O porto de Manaus, situado onde o Rio Negro encontra o Rio Amazonas, registrou o nível mais baixo desde que os registros começaram a ser feitos em 1902, superando 2010, que tinha sido o menor nível até agora. Problema maior está nas hidrovias do Rio Madeira e do Solimões, que conectam as principais cidades da região amazônica. O Rio Amazonas abriga a navegação de cabotagem e também foi afetado pela baixa das águas. Uma alternativa tem sido o uso de balsas, que, no entanto, são mais lentas e transportam 5% a 10% do volume dos navios.

Há reflexos também na produção de energia. A redução da vazão dos rios da região Norte obrigou o desligamento de uma das maiores hidrelétricas do país, a usina de Santo Antonio, situada no rio Madeira, em Rondônia. Outra grande hidrelétrica no mesmo rio, Jirau, seguiu operando para fornecer energia para o sistema Acre-Rondônia. Com isso, foi desligado o linhão de transmissão do rio Madeira, o maior do país, com 2,4 mil quilômetros, que conecta a produção para o Sistema Interligado Nacional (SIN), usado para transferir energia de uma região para outra do país em caso de necessidade. Felizmente os reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste estão bem abastecidos, com mais de 60% da capacidade.

O governo federal prometeu contribuir com R$ 100 milhões para a dragagem do rio Amazonas, na expectativa de aumentar a profundidade para comportar o calado dos navios que chegam ao porto com insumos ou transportam grãos, soja e milho. O sucesso da empreitada, porém, depende principalmente do fluxo de água. No caso dos grãos, a alternativa dos produtores do Centro-Oeste seria voltar ao passado e retomar a antiga - e cara - rota de escoar a safra pelos portos de Santos ou Paranaguá, que era utilizada antes do desenvolvimento dos portos do Arco Norte.

Custa a crer a inexistência de planos alternativos de logística, uma vez que a seca é tradicional nesta época. A redução da vazão dos rios está sendo intensificada neste ano pelo El Niño e pelo aumento da temperatura do Atlântico Norte, fenômenos naturais, exacerbados pelo aquecimento do planeta, o que reforça a importância das iniciativas em favor do ambiente. O Amazonas foi um dos Estados que mais desmataram e queimaram a floresta nos últimos tempos, a ponto de a cidade de Manaus ter enfrentado dias de céu escurecido pela fumaça.

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