domingo, 31 de agosto de 2025

OS SONÂMBULOS

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Livro destrincha detalhes da eclosão da Primeira Guerra Mundial; há paralelos com o mundo de hoje

"Aqueles que não lembram o passado estão condenados a repeti-lo", escreveu George Santayana. Tenho sérias dúvidas em relação à validade universal da máxima. No mínimo, "condenados" é um termo forte demais.

Acompanho, porém, o filósofo na ideia mais geral de que conhecer o passado é uma coisa positiva. Mesmo que não funcione como vacina contra erros pretéritos, o conhecimento da história nos ajuda a entender o presente, o que pode ou não afetar o futuro.

Não acho que estejamos na iminência de uma guerra mundial nem que um evento dessa magnitude poderia ser prevenido pela leitura de livros, mas, mesmo assim, recomendo "Os Sonâmbulos" de Christopher Clark, uma obra já meio antiga (2012) que destrincha a eclosão da 1ª Guerra Mundial.

Há semelhanças entre o contexto geopolítico de hoje e o do início do século 20 que fazem valer a pena revisitar o passado. Em ambas as situações tínhamos um mundo relativamente próspero, no qual potências antigas davam sinais de decadência enquanto as ascendentes se esforçavam para projetar força e liderança.

Nos dois casos, vivia-se um período de radicalismo retórico, no qual nacionalismos e a defesa da soberania davam o tom da política interna de vários países. Ali mais do que aqui, uma política de alianças entre nações ajudou a manter a estabilidade global até o dia em que deixou de funcionar assim e começou a empurrá-las para o conflito.

Clark mostra que a maior parte dos líderes (excluídos alguns generais prussianos) queria a paz, ainda que não a qualquer preço. Eles também se empenharam em tomar decisões racionais, equilibrando objetivos internos com os das alianças. Só que o fato de todos agirem mais ou menos do mesmo modo levou a erros e armadilhas das quais esses mesmos líderes depois não conseguiam recuar.

Havia, é claro, desde atores ignorantes e impetuosos até sumidades intelectuais com amplo conhecimento de história e diplomacia. Não se notam diferenças importantes de desempenho entre eles, o que nos traz de volta a Santayana.

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JULGAMENTO DE BOLSONARO É RECADO PARA CANDIDATOS A DITADOR

Celso Rocha de Barros, Folha de S. Paulo

Democracia precisa provar que tem mira melhor que a do fascismo

No próximo dia 2 começa o julgamento de Jair Bolsonaro. Ele é culpado.

Se tivesse sido bem-sucedido, seus adversários não estariam em uma mansão paga pelo PL esperando julgamento: já teriam perecido nos porões sob tortura. Suas tornozeleiras seriam as cordas do pau-de-arara.

Mas o julgamento não é só sobre a democracia brasileira, muito menos sobre as manobras dos pré-candidatos a presidente em 2026.

Desde que Trump declarou guerra ao Brasil por causa do julgamento, o mundo notou que somos um campo de batalha importante na luta internacional pela democracia.

A revista britânica The Economist publicou uma matéria sobre o julgamento de Bolsonaro com o título "O que o Brasil pode ensinar aos Estados Unidos". O texto mostra como o Brasil lidou muito melhor com Bolsonaro do que os Estados Unidos com Trump. E conclui: "ao menos por enquanto, o papel de adulto democrático do hemisfério migrou para o Sul".

Trump também parece concordar com a The Economist: acredita que o julgamento de Jair tem implicações para seu próprio movimento autoritário. É por isso que o Brasil sofre um embargo comercial e Alexandre de Moraes foi punido com as sanções da Lei Magnitsky.

Se a Suprema Corte e o Congresso americanos tiverem 10% da coragem do STF brasileiro, Trump não vai conseguir implementar a ditadura que deseja nos Estados Unidos.

Por que o Brasil ocupou esse lugar central na luta global pela democracia?

Faz mais sentido do que parece: o Brasil é desenvolvido o suficiente para ter um Judiciário razoável, mas subdesenvolvido o suficiente para ter uma memória recente de viver sob o autoritarismo.

Essa memória, aliás, foi constantemente reativada pelos próprios bolsonaristas, com a idolatria ao torturador Brilhante Ustra, os elogios recorrentes à ditadura militar, a Pinochet e Stroessner, as ameaças de novo AI-5, as ofensas às vítimas de torturas.

Como Jair vinha dessa linhagem política de militares golpistas, suas ameaças à democracia eram mais evidentes: Jair Bolsonaro foi um golpista mais "old school" que Trump em seu primeiro mandato, o que o tornou mais reconhecível como ameaça à democracia.

A mídia internacional, aliás, deveria pesquisar a opinião de Eduardo Bolsonaro, filho do Jair e atual xodó do Departamento de Estado de Trump, sobre o 6 de janeiro americano.

Em entrevista de 2021, Eduardo disse que se os invasores do Capitólio fossem mais organizados, teriam matado "os policiais e os congressistas que eles tanto odeiam". E acrescentou, já pensando no que seu pai faria: "No dia em que a direita for 10% da esquerda, a gente vai ter guerra civil em todos os países do Ocidente".

No primeiro mandato de Trump, era errado chamar Bolsonaro de "Trump tropical": Jair era muito mais fascista que Donald, ao menos até o 6 de janeiro. Agora, no segundo mandato, é que o presidente americano parece disposto a se tornar um "Jair do Norte", desmontando a democracia americana com velocidade alarmante.

Os ministros que julgarão Jair devem ter consciência do que estão fazendo: além de punir quem ameaçou a democracia brasileira, darão um recado para candidatos a ditador mundo afora. A democracia precisa provar que demora mais para apertar o gatilho, mas tem mira melhor que a do fascismo.

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ÁRVORES SÃO TESTEMUNHAS SILENCIOSAS

Dorrit Harazim, O Globo

Do ponto de vista dos palestinos, oliveiras arrancadas eram a vida, o sustento, o alimento e a essência da cultura local

O que é uma árvore? O que são 3.100 árvores? A pergunta nada tem de aleatório. No caso em questão, a resposta se bifurca em duas variáveis — depende de “para quem” e “para que” serviam as 3.100 oliveiras arrancadas de uma aldeia palestina na Cisjordânia.

A força bruta naquela região já faz parte da paisagem, por repetir-se há décadas. Colonos judeus fincam novos postos em terras que não lhes pertencem, entram em choque com os aldeões, contam com a cumplicidade ou indiferença das Forças de Defesa de Israel e vão aumentando seu latifúndio.

O episódio da quinta-feira, dia 22, deixou um colono invasor ferido, e 12 palestinos foram presos, com todas as moradias da aldeia devassadas pelos militares. Só que um dos palestinos envolvidos no confronto tinha conseguido escapar. Para facilitar sua captura, a solução encontrada foi desbastar o terreno, eliminando 3.100 oliveiras. Simples assim. Não com motosserras, mas por um exército de vorazes escavadeiras. À luz do dia e sem constrangimento. Vida que segue.

Consideradas estorvo para a segurança de Israel, as árvores foram arrancadas do solo à vista dos descendentes de quem as plantara. Do ponto de vista dos palestinos, elas eram a vida, o sustento, o alimento e a essência da cultura local. Eram testemunhas silenciosas da história de todo um povo.

Só que a natureza é teimosa, insiste em sobreviver a seu pior inimigo — o ser humano — e ensina a não desesperançar. Como não se lembrar das papoulas que brotaram nos campos chacinados da Batalha de Flandres, em 1914? A terra havia sido revirada com tamanho furor nos combates de trincheira da Grande Guerra que sementes dormentes havia décadas conseguiram reemergir na devastação. E logo papoulas, de aspecto tão frágil! O combatente e poeta canadense John McCrae imortalizou em verso o que sentiu ao vê-las: Nas terras de Flandres, as papoulas vão brotar/Entre as cruzes, em filas, a nos lembrar/O lugar onde repousamos, em paz e solidão/E no céu as cotovias em corajosa canção/Voam, pouco ouvidas entre o som da explosão.

Como explicar, também, o centenário salgueiro logo à direita da entrada de Auschwitz 1, um dos três campos de extermínio nazista do complexo? Ele fora ali plantado muito antes da Segunda Guerra, à época em que o local era apenas uma caserna militar perto de Cracóvia. Cresceu robusto, próximo aos trilhos que levavam à morte, e continua ali como testemunha silenciosa do horror, enquanto vão morrendo uma a uma as árvores plantadas pelos aprisionados para encobrir as instalações de extermínio de Auschwitz 2-Birkenau e Auschwitz 3.

Halina Birenbaum, uma das sobreviventes do Holocausto ainda viva (95 anos), dedicou àquelas árvores um de seus muitos poemas sobre a necessidade de nunca esquecer: Muitos, como eu, confessaram às árvores aqui, suplicaram lembrança/Queriam subir ao topo e voar para longe/Todas as marcas deles desapareceram, foram varridas/E as árvores viram tudo, as árvores ouviram/E, como é seu costume,/Cresceram, brotaram folhas, permaneceram em silêncio.

Também faz bem à alma se emocionar com a pereira-de-jardim encontrada entre os destroços das Torres Gêmeas um mês depois do ataque terrorista do 11 de Setembro de 2001. Seu tronco estava quase carbonizado, e umas poucas raízes pareciam farelos. Mas ela ainda respirava. Recebeu tratamento especialíssimo por nove anos. Hoje mede mais de 9 metros de altura, foi batizada “Árvore da Sobrevivência” e está novamente frondosa, enraizada na parte sul do memorial nova-iorquino. Serve de lembrança viva das perdas e de prova de que resistir é preciso. Suas sementes são enviadas todo ano a alguma cidade do planeta que tenha passado por grande dor coletiva.

E assim voltamos às 3.100 oliveiras de uma Palestina que o governo de Benjamin Netanyahu teima em enterrar viva — primeiro em Gaza, depois na Cisjordânia. Não conseguirá. A História já nos deu demonstrações suficientes de que eliminar pessoas é fácil, matar identidades é mais difícil. A força e grandeza da frase “I contain multitudes”, imortalizada por Walt Whitman, é monumental quando comparada à força bruta de um exército que perdeu a razão. Extraída do poema “Song of myself” (Canto de mim mesmo), “eu abrigo multidões” simboliza a vastidão do eu, sua riqueza interna e a coexistência das contradições tão essenciais para o entendimento da condição humana. Ao destruir as oliveiras da Palestina, Israel está destruindo a si mesmo.

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COMÉDIAS DA VIDA PÚBLICA BRASILEIRA

Bernardo Mello Franco, O Globo

Da ditadura a Bolsonaro, Verissimo expôs a comédia da vida pública brasileira

Em mais de cinco décadas, cronista comentou eleições, escândalos e guerras sem perder a piada

No Brasil, o fundo do poço é apenas uma etapa. O poder em Brasília é apenas uma forma hierarquizada de solidão. Todo brasileiro é igual perante a lei, contanto que não seja pé de chinelo, porque aí é culpado mesmo. As frases são de Luis Fernando Verissimo, mestre de dizer tudo com poucas palavras. Em mais de cinco décadas na imprensa, ele escreveu sobre eleições, privatizações, guerras e escândalos variados. Sem nunca perder a piada.

O cronista debutou em 1969, tempo de arbítrio e repressão. “Um dia escrevi sobre teoria da evolução do Darwin. A crônica foi censurada. Até hoje não sei se o censor era um criacionista anti-Darwin ou se apenas visse na teoria que somos descendentes de macacos uma alusão a gorilas, logo militares”, ironizou, tempos depois.

Quando a ditadura agonizava nas mãos do general Figueiredo, Verissimo criou uma de suas personagens inesquecíveis: a Velhinha de Taubaté, que acreditava em todos os governos desde Getulio Vargas. Em 1987, o cronista decretou pela primeira vez a morte da senhora. Depois de confiar cegamente no Plano Cruzado, ela havia pedido a fé no bigode do Sarney.

Dois anos depois, o país recuperou o direito de eleger um presidente e escolheu Collor. “Muitos acham que foi um erro instaurar a República, especialmente depois dos resultados de quarta-feira”, comentou Verissimo, dias depois de o caçador de marajás vencer o primeiro turno.

No governo FH, o cronista continuou a usar o humor como arma de protesto. Contestou a aliança com a direita, a rendição ao neoliberalismo e o abandono das ideias que ele defendia como sociólogo. “O Collor sempre foi meio assustador, o Éfe Agá é um homem civilizado e simpático com o qual você gostaria de conversar sobre tudo que houve depois que ele deixasse a Presidência, de preferência na semana que vem”, escreveu.

Nesse tempo, Verissimo foi uma voz constante em defesa do MST, demonizado pelas elites nativas. “Os sem-terra cometeram vários crimes que justificam sua execução sumária. O primeiro foi o de existir”, escreveu, depois do massacre de Eldorado. “Alguns não só existiam como se manifestavam. Outros foram ainda mais longe: se transformaram em vítimas. Morreram, num claro desafio à ordem estabelecida. Em muitos casos, de tocaia, só para aparecer mais”, arrematou.

Na campanha de 2002, o cronista ironizou as reações exaltadas à notícia de que o candidato do PT havia tomado um vinho francês. “Quem o Lula pensa que é, tomando Romanée-Conti? Gente! O que é isso? Onde é que estamos? Romanée-Conti não é pro teu bico não, ó retirante. Vê se te enxerga, ó pau-de-arara. O teu negócio é cachaça”, escreveu.

Muitos leitores não entenderam o deboche, e choveram cartas indignadas ao GLOBO. “Quando o leitor não entende o que o jornalista escreveu, a culpa é sempre do jornalista. Peço desculpa”, respondeu Verissimo. Em outra crônica, ele defendeu que os gramáticos criassem o ponto de ironia para evitar mal-entendidos.

Em 2005, no auge do escândalo do mensalão, o cronista publicaria um novo obituário da Velhinha de Taubaté. “Ela morreu na frente da televisão, talvez com o choque de alguma notícia”, escreveu.

Quando Bolsonaro subiu a rampa, Verissimo se espantou com os sinais de volta ao passado. “São tantos os militares no governo que tem gente perguntando quem está cuidando dos quartéis”, anotou, no segundo mês de governo. O autor das “Comédias da Vida Pública” fazia falta desde que sofreu um AVC e parou de escrever, em 2021. Agora fará mais ainda.

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OLHAR DOS QUARTÉIS NO TEMPO PRESENTE

Míriam Leitão, O Globo

Entre membros das Forças Armadas, existe a visão de que o julgamento de Bolsonaro e de 20 militares é um sinal de amadurecimento institucional no país

Não se pode dizer que o julgamento que começa esta semana esteja sendo encarado com naturalidade pelas tropas e pelo oficialato, mas o cumprimento das etapas do devido processo legal deu o conforto de as Forças Armadas irem se acostumando com o que está acontecendo. O ex-presidente Jair Bolsonaro estava há muito tempo na política, porém nesse julgamento ocorre algo inédito. Nunca houve quatro oficiais, que chegaram ao topo da hierarquia militar, sentados no banco dos réus para ouvir suas sentenças de juízes civis. Há ainda um tenente-coronel da ativa, que é o delator. Mesmo assim, com tantos militares envolvidos, o que se ouve nas Forças Armadas é que esta não é uma questão militar, mas “político-jurídica”.

A explicação é que, apesar de haver tantos fardados e estrelados, os generais Augusto Heleno, Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira estavam em cargos políticos à época dos fatos. Só estava em cargo militar o ex-comandante da Marinha, Almir Garnier. Heleno era ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Braga Netto e Paulo Sérgio foram ministros da Defesa, o que eles consideram cargo político, mesmo quando exercido por militar. Braga Netto foi candidato a vice-presidente.

Tanto a tropa quanto o alto comando estão em silêncio e assim permanecerão. O barulho está apenas nas redes sociais do pessoal da reserva, como sempre. “Estamos aqui cumprindo nossa missão constitucional”, disse um oficial-general. Na visão que eles expressam, o que está acontecendo mostra a nossa “maturidade institucional”, porque o caso “está afeto à Justiça”.

Ao todo, na Ação Penal, dos 31 que serão julgados por tentativa de golpe de Estado, 20 são militares. Onde cumprirão pena caso sejam condenados? Da ativa ou da reserva, eles têm a prerrogativa de requerer o cumprimento da pena numa unidade militar. Inclusive o ex-presidente Bolsonaro, que é capitão reformado. Mas a Justiça é que decidirá.

Numa História como a brasileira, marcada pelo intervencionismo militar, pelos golpes ou tentativas de golpe, em que os conspiradores e golpistas sempre contaram com a certeza da impunidade, o que acontecerá a partir de terça-feira não é trivial. Em nome da suposta pacificação nacional, quem atentava, com sucesso ou não, contra a democracia sempre recebeu o benefício da anistia. Desta vez, o tema permanece em disputa, mas com larga vantagem para quem defende que a lei se cumpra.

Haverá um momento de tensão militar mais adiante. Após transitado em julgado, os que forem condenados a mais de dois anos terão que enfrentar outro processo na Justiça Militar. O Ministério Público Militar, de ofício, vai questionar o Superior Tribunal Militar se o oficial, estando na reserva ou na ativa, deve responder a um processo de “indignidade para o oficialato”. Quem for condenado perderá o posto e a patente.

Quem receber uma pena de menos de dois anos terá seu caso decidido pelo comandante da Força à qual pertence. O comandante tem a prerrogativa de convocar um Conselho de Justificação para decidir sobre o futuro daquele militar. Ou seja, o destino de Mauro Cid pode acabar sendo decidido pelo comandante do Exército. Cid tem pedido como benefício uma pena menor que dois anos.

Os que forem eventualmente absolvidos e estiverem na ativa podem requerer a reintegração às tropas. A expectativa nas Forças Armadas é de que o transitado em julgado seja para breve, porque eles estão na última instância e depois da decisão do Supremo Tribunal Federal, é só esperar a fase dos recursos e embargos.

Em tempos de julgamento de golpistas, e de conflito com os Estados Unidos, o que tira mais o sono dos oficiais é o segundo problema. A relação entre Estados Unidos e Brasil na área militar sempre foi muito boa, desde a Segunda Guerra Mundial. Houve apenas uma intercorrência na denúncia do acordo de cooperação militar em 1977 pelo então presidente Ernesto Geisel. Depois, tudo foi retomado. Efetivos das três Forças fazem intercâmbio nos Estados Unidos. Um escritório de compra está instalado em Miami. Comissões militares vão frequentemente aos Estados Unidos comprar material de emprego militar. Tudo está em compasso de espera agora. O que se diz é que “obviamente o Brasil não pode ceder” no que está sendo exigido, mas há uma torcida para que “a relação flua”. Este é o tempo presente, visto da ótica dos quartéis.

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HISTÓRIA EM ESPIRAL

Merval Pereira, O Globo

“Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”, disse Edmund Burke, filósofo irlandês do século XVIII

“Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”, disse Edmund Burke, filósofo irlandês do século XVIII. A frase me veio à mente assistindo na Academia Brasileira de Letras (ABL) à palestra do cientista político e professor associado do IESP-UERJ Christian Lynch sobre o livro “À margem da história da República”, coletânea organizada em 1924 por Vicente Licinio Cardoso, que reflete principalmente as ideias que ganharão hegemonia na organização institucional e na direção intelectual do Brasil de 1920 a 1980.

Para ele, elas contaminaram a esfera pública na década de 20, a partir do governo de Arthur Bernardes, e ganharam materialidade durante a Era Vargas, dando origem ao estado e às concepções de sociedade brasileira que vão durar até a década de 1990, quando desaparece o mundo que lhes deu origem, ou seja, o curto século XX, na concepção do historiador Éric Hobsbawn.

A obra, considerada “um manifesto político modernista”, é, para Lynch, “tanto um diagnóstico da Primeira República quanto um prenúncio das mudanças que culminariam na Revolução de 1930”. As coincidências com os acontecimentos atuais são muitas, o que, segundo Christian Lynch, evidencia “a necessidade de estudá-las na sua dinâmica histórica, para compreendermos eventualmente o que estamos vivendo hoje”. Ele fez um relato ironicamente sublinhando as repetições históricas, para chamar a atenção da importância de analisá-las.

“Era uma vez uma vez um país latino-americano, o Brasil, que desejara se reinventar contra suas antigas mazelas por meio de um novo regime constitucional progressista. Durante duas décadas tudo pareceu andar bem. Até que, depois de uma eleição presidencial disputada e cujo resultado foi questionado em sua lisura, se impôs uma decepção generalizada. O liberalismo entrou em crise. Os mais avançados denunciavam o já não tão novo regime por sua incapacidade em avançar em suas promessas. Mas a crise do liberalismo não vinha só de dentro.

"De fato, a globalização que organizava o mundo havia décadas colapsara. O incremento do movimento migratório e de mercadorias, com o surgimento concomitante de novas tecnologias, trouxe pânico diante das crises econômicas. O cosmopolitismo e o primado da economia cediam lugar a um nacionalismo agressivo no cenário internacional. Entrementes, uma pandemia paralisou o mundo, matando milhões e milhões de pessoas, gerando mais insegurança e pânico, impondo maiores controles de fronteira e mercadoria.

"Potências emergentes questionavam o status quo tradicional das potências do Atlântico Norte. Um país tradicionalmente vinculado à democracia se converteu ao fascismo. Ao mesmo tempo, a crise levara ao poder no Brasil um desastroso governo comandado por um militar, cujo autoritarismo o fizera chocar-se com o Supremo Tribunal Federal e quase levara o país à ditadura. Ao mesmo tempo, reacionários religiosos, julgados extintos desde a nova Constituição, se rearticularam politicamente em crítica contra a laicidade da República.

"Um novo presidente do Brasil, eleito na esteira do desastroso governo militarista, foi eleito com o objetivo de restaurar o estado anterior de coisas e pacificar o país. Mas o vidro havia se partido. Mesmo conservadores mais moderados criticavam a independência do STF. Outros viam a própria Constituição como excessivamente cosmopolita e permissiva, inadequada aos novos tempos. Foi nesse contexto de transição de época que uma nova geração de intelectuais preocupados com o futuro do país publicou uma coletânea que era um verdadeiro manifesto político dos nossos tempos”.

A Constituição não era a de 1988, mas a de 1891; a eleição não era de 2018, mas de 1909-1910 entre Rui Barbosa e Marechal Hermes da Fonseca; quem não respeitou o STF foi Hermes da Fonseca; a pandemia não era a da COVID, mas a da gripe espanhola. O país democrático que se tornou fascista não era os Estados Unidos, mas a Itália. Se a história não é cíclica, ela anda em espiral, comenta Christian Lynch.

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sábado, 30 de agosto de 2025

SINCERAMENTE , DONA ECONOMIST

Flávia Oliveira, O Globo

Sabe lá o que é ser uma nação nascida da brutalidade colonial e, sistematicamente, golpeada?

A revista britânica The Economist escreveu sobre o exemplo de maturidade democrática que o Brasil de Lula dá aos Estados Unidos de Trump. Só pensei em Vinícius de Moraes. Não se trata de “poesia a esta altura”, mas das situações em que brasileiros nadamos de braçada. No livro “Para viver um grande amor” (1962), Vinícius dedicou poema “a um americano simpático, extrovertido e podre de rico” que encontrara em Los Angeles (Califórnia) dias antes de retornar ao Brasil, depois de meia década nos Estados Unidos. Mister Buster não compreendia por que o poeta preferia voltar à Latin America, com prejuízo financeiro, mesmo podendo ficar um ano mais na América. Na resposta em poesia lambuzada de ironia, o brasileiro enfileira bens e serviços, propriedades e angústias que cercam a vida boa do gringo. E finaliza exaltando experiências que só o Brasil proporciona:

— Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:/O senhor sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?/O senhor sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?/O senhor sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?

Dois meses atrás, em duro editorial, a Economist afirmou que a política externa de Luiz Inácio Lula da Silva “faz o Brasil parecer cada vez mais hostil ao Ocidente”. Em título, destacou que o presidente da República “perde influência no exterior e popularidade em casa”. Nesta semana, ciente da empreitada de Donald Trump em retaliar mercadorias e autoridades brasileiras por anistia de Jair Bolsonaro, aliado da extrema direita, a revista britânica — conservadora, desde sempre — mudou de tom. “O que o Brasil pode ensinar à América” foi o título de capa para uma encorpada reportagem sobre o julgamento, a partir de terça-feira, do núcleo crucial da trama golpista. Ao todo, são oito réus, entre os quais o ex-presidente, três generais e um almirante.

Contrastando com os Estados Unidos, o Brasil “dá um exemplo de maturidade democrática” por ter investigado criminalmente o ataque às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Nos Estados Unidos, o republicano Trump insuflou a violência contra o Congresso para tentar impedir a certificação da vitória do democrata Joe Biden nas urnas em 2020. Cinco pessoas morreram. Foi acusado de quatro crimes, livrou-se da condenação, elegeu-se para o segundo mandato. Empossado em janeiro último, concedeu indulto coletivo a 1.500 condenados, entre eles Jacob Anthony Chansley, o extremista que, torso nu, rosto pintado com a bandeira americana, pele de urso com chifres na cabeça, viralizou como imagem-símbolo da invasão do Capitólio. A indumentária remete ao tribalismo masculino (ou masculinismo), movimento que advoga a supremacia dos homens, em detrimento dos direitos de mulheres e pessoas LGBTQIA+.

Conhecido por Viking do Capitólio ou Xamã do QAnon — teoria da conspiração que marca o ultratrumpismo —, Chansley foi acusado de seis crimes, mas acabou condenado a 41 meses por obstrução de procedimento eleitoral, depois de acordo com a promotoria. Ficou preso por dois anos e esteve em regime aberto até ser indultado por Trump. Em liberdade, postou numa rede social:

— Fui perdoado, bebê. Agora vou comprar umas armas.

Foi essa figura caricata, radicalizada e anistiada que inspirou a ilustração de capa, em que Bolsonaro usa na cabeça idêntico adereço e traz o rosto pintado com as cores da bandeira do Brasil. A Economist informa que o processo pelo golpe tentado, entre outros crimes, avançou, mesmo sob a pressão dos Estados Unidos. Instado por Eduardo Bolsonaro, o governo Trump impôs tarifas de 50% a produtos brasileiros, abriu investigação em meia dúzia de setores por concorrência desleal, revogou vistos de autoridades e aplicou a Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes, relator da ação penal no Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro e o filho deputado já estão indiciados por coação no curso do processo.

Em discurso no início do mês, o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, listou os momentos em que o Brasil enfrentou golpes, contragolpes, intervenções militares, tentativas ou rupturas institucionais. Em 136 anos de República, foram duas dezenas de ameaças, incluindo o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), os 21 anos de ditadura militar (1964-1985) e o plano bolsonarista de ficar no poder, que “fracassou por incompetência, não por intenção”, nas palavras da Economist:

— Os dois países parecem estar trocando de lugar. Os Estados Unidos estão se tornando mais corruptos, protecionistas e autoritários. (...) Em contraste, mesmo com o governo Trump punindo o Brasil por processar Bolsonaro, o país está determinado a salvaguardar e fortalecer sua democracia.

São as marcas de maturidade política a mostrar que, hoje, “o papel do adulto democrático do Hemisfério Ocidental mudou para o Sul”.

É, Dona Economist, sabe lá o que é ser uma nação nascida da brutalidade colonial e, sistematicamente, golpeada?

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MORRE LUIS FERNANDO VERISSIMO

Do g1 RS

Luis Fernando Verissimo, um dos maiores escritores do Brasil, morre aos 88 anos

Obra do romancista se espalhou pela TV, cinema e teatro após ganhar o Brasil nas páginas dos jornais e livros. Ele foi filho de Erico Verissimo e um dos autores mais lidos do país.

O escritor Luis Fernando Verissimo morreu aos 88 anos, na madrugada deste sábado (30), em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ele estava internado na UTI do Hospital Moinhos de Vento desde o dia 11 de agosto. A causa da morte foi complicações decorrentes de uma pneumonia, informou a instituição.

Verissimo tinha Parkinson e problemas cardíacos – em 2016, implantou um marcapasso. Em 2021, o escritor sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), e segundo a família, enfrentava dificuldades motoras e de comunicação.

O escritor deixa a mulher, Lúcia Helena Massa, três filhos e dois netos.

A despedida ocorrerá no Salão Nobre Julio de Castilhos, na Assembleia Legislativa do RS, a partir das 12h.

Verissimo dizia ter herdado informalidade do pai, Erico

Veríssimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Viveu parte da infância nos Estados Unidos porque o pai, o escritor Erico Verissimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, autor de obras como "O Tempo e o Vento", dava aulas de literatura brasileira nas universidades de Berkeley e de Oakland.

"O pai foi um dos primeiros escritores brasileiros a escrever de uma maneira mais informal. E eu acho que herdei um pouco isso. Essa informalidade na maneira de escrever", disse sobre o pai.

Luis Fernando Verissimo vendeu 5,6 milhões de livros

A carreira começou no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde começou como revisor em 1966. No Rio de Janeiro, trabalhou como tradutor.

O primeiro livro, "O Popular", foi publicado em 1973. Ao todo, Verissimo teve mais de 70 livros publicados e 5,6 milhões de cópias vendidas, entre crônicas, romances, contos e quadrinhos.

O escritor também escrevia colunas para os jornais "O Estado de S.Paulo", "O Globo" e "Zero Hora".

Discreto nos hábitos e nas declarações, Verissimo ainda vivia na casa onde cresceu depois do retorno ao Brasil. O imóvel no Bairro Petrópolis, em Porto Alegre, foi comprado em 1941 pelo pai.

O escritório onde Erico trabalhava é conservado intacto pela família. Cercado de livros, Luis Fernando tinha o costume de escrever em outro cômodo da casa, onde também guardava o saxofone e dezenas de discos e CDs de jazz.

Metódico, só interrompia o trabalho quando a mulher, Lúcia, o chamava para o almoço. Já à noite, parava para assistir ao Jornal Nacional. Quando queria curtir seu estilo de música preferido, o fazia sem distrações. “Música é sentar e ouvir”, disse em entrevista em 2012.

'Ed Mort', 'analista de Bagé' e outros personagens

O humor de contos e crônicas marcou sua obra. Entre os personagens mais conhecidos criados por ele estão os de "Ed Mort e outras histórias", de 1979, "O analista de Bagé", de 1981 e "A velhinha de Taubaté", de 1983. Também criou a tirinha "As cobras", publicada na "Folha da Manhã", nos anos 70. "Comédias da vida privada", de 1994, deu origem à série da Rede Globo produzida durante os três anos seguintes.

"Um desafio porque o humor de televisão, ao contrário do que possa parecer, é mais difícil de fazer que o humor impresso, o humor gráfico, vamos dizer assim (...) Não tenho uma vocação humorística, mas consigo eventualmente produzir humor. Mas é uma coisa mais deliberada, mais pensada, do que espontânea, no meu caso", disse em entrevista na época.

No final da década de 80, foi um dos roteiristas do programa de humor "TV Pirata". Entre sucessos comerciais também estão "Comédias para se ler na escola" e "As mentiras que os homens contam", de 2000.

Um escritor e músico tímido

Quando morou nos Estados Unidos, Veríssimo estudou no Roosevelt High School, em Washington. Foi lá que desenvolveu o gosto pelo Jazz e teve aulas de saxofone. Mas, por trás do saxofone e das páginas dos livros, se escondia um cara tímido.

"Minha timidez é... Por exemplo: tenho horror de fazer isso que estou fazendo agora: dar entrevista, falar em público e tal. Eu sempre digo que não dominei a arte de falar e escrever ao mesmo tempo, são duas coisas que se excluem, então é nesse sentido é que se manifesta a minha timidez", disse à RBS TV.

Mas, a economia nas palavras não se aplicava às máquinas de escrever e, depois, aos computadores. O autor tímido tinha muita coisa para falar. "Essa é uma das vantagens da crônica. A gente pode ser o que quiser escrevendo uma crônica".

A cada homenagem que recebia, como quando fez 80 anos, mais provas de que não precisava de longas conversas para arrancar uma risada. "Têm sido tão agradáveis as homenagens, inclusive da família, que eu tô pensando em fazer 80 anos mais vezes", brincou.

Em entrevista ao programa "GloboNews literatura", em 2012, ele falou sobre o seu conhecido comportamento introspectivo. Conhecido por respostas concisas em entrevistas, Luis Fernando Verissimo negou que fosse uma pessoa calada. “Não sou eu que falo pouco, os outros é que falam muito”.

Paixão pelo futebol e pelo Inter

Além do jazz e da literatura, o futebol era outra das paixões de Luis Fernando Verissimo. Mais especificamente o Inter, time ao qual declarou fidelidade em diversas oportunidades e que foi tema do livro “Internacional, Autobiografia de uma Paixão”.Em entrevista em abril de 2012, lembrou de seu jogo inesquecível, um clássico Gre-Nal, que também foi sua primeira partida em um estádio de futebol.

“Lembro a emoção de estar em campo. Só ouvia futebol pelo rádio. Ali, uma cerca nos separava dos jogadores. Dava para ver as feições, sentir a respiração deles. Eu estava vendo as cores do jogo, uma sensação completamente diferente. Nunca vou me esquecer também do cheiro de grama”, contou, sobre o Estádio dos Eucaliptos, antiga casa do Inter.

Cobriu Copas do Mundo desde 1986, edição em que lamentou a eliminação do Brasil nos pênaltis diante da França nas quartas de final - mais uma partida marcante, revela. Pelo Inter, listou outras tantas. Falava com satisfação da final do Brasileirão de 1975 e do tricampeonato invicto em 1979.

Sobre o título do Mundial de Clubes de 2006, vencido pelo Inter, escreveu a crônica “Não me acordem”, celebrada por colorados. “Vejo como o triunfo do Gabiru (autor do gol), o grande herói que era criticado. Algo meio melodramático. Foi um momento de sonho. Antes do jogo, o sentimento era: ‘Se perder de pouco, está bom’”, recordava.

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DALVA DE OLIVEIRA, A RAINHA DA VOZ

Há exatos 53 anos, morria a cantora e compositora Dalva de Oliveiral. Dalva nasceu na cidade de Rio Claro (SP), em 5 de maio de 1917. Faleceu no Rio de Janeiro em 30 de agosto de 1972.

Dalva de Oliveira de voz afinada, e bela, considerada a Rainha da Voz ou o rouxinol brasileiro, sua extensão vocal ia do Contralto ao Soprano.

Segundo a revista Rolling Stone, Dalva de Oliveira foi considerada uma das maiores vozes da música brasileira de todos os tempos.

Biografia de Dalva de Oliveira

Dalva de Oliveira (1917-1972) foi uma cantora brasileira que fez sucesso nos anos 30, 40 e 50. Com uma extensão vocal que ia do contralto ao soprano, recebeu o apelido de “Rouxinol do Brasil”.

Dalva de Oliveira, nome artístico de Vicentina de Paula Oliveira, nasceu em Rio Claro, interior do Estado de São Paulo, no dia 5 de maio de 1917. Era filha mais velha de Mário de Oliveira, um carpinteiro, e da portuguesa Alice do Espírito Santo.

Seu pai que era músico nas horas vagas, tocava clarinete e organizava serenatas com seus amigos músicos. Com oito anos Dalva ficou órfã de pai e em busca de trabalho, sua mãe mudou-se para São Paulo levando as quatro filhas. Em São Paulo, trabalhou como governanta e colocou as filhas em um internato.

Em 1934, a família mudou-se para o Rio de Janeiro. Dalva passou a frequentar o Cine Pátria onde conheceu e logo iniciou um namoro com Herivelto Martins, que trabalhava ao lado de Francisco Sena formando o dueto Preto e Branco.

Dalva ingressou no grupo e passou a se apresentar como “Dalva de Oliveira e Dupla Preto e Branco”. Em 1936, Francisco faleceu sendo substituído por Nilo Chagas. Em 1937 lançaram “O Trio de Ouro”, nome dado por César Ladeira. Nesse mesmo ano, Dalva e Herivelto se casaram. Dessa união nasceu, Peri, que se tornou um grande cantor conhecido como Pery Ribeiro e Ubiratan.

Com o trio, Dalva gravou diversas músicas de sucesso, entre elas: “Ceci e Peri”, “Batuque no Morro”, “Adeus Estácio”, “Lamento Negro” e “Lá na Mangueira”. Em 1947, com a separação do casal, o trio se desfez. Era o início de uma longa batalha judicial pela guarda dos filhos, que acabaram sendo levados para um internato.

Em 1950, Dalva retomou a carreira solo e em 1951 lançou as músicas “Tudo Acabado”, “Olhos Verdes” e “Ave Maria do Morro”. Em 1952 recebeu o título de “Rainha do Rádio”.

Ainda em 1952, em uma excursão a Buenos Aires, Dalva conheceu o ator Tito Climent, que se tornou seu empresário e mais tarde seu segundo marido. Morando em Buenos Aires, o casal adotou Dalva Lúcia Oliveira Climent. Em 1963 o casal se separou e Dalva retornou ao Brasil, perdeu a guarda da filha e passou a morar sozinha em seu casarão no Rio de Janeiro. Todos os anos ela dava um tempo em sua agenda e recebia seus filhos na sua casa durante as férias escolares do mês de janeiro.

Em 1965, Dalva sofreu um grave acidente automobilístico, ao lado de seu namorado, Manuel Nuno, modesto rapaz, vinte anos mais jovem que ela, sendo obrigada a dar um tempo na carreira.

No fim dos anos 60, Dalva casou-se com Manuel e comemorou com uma festa em sua mansão. Dalva de Oliveira, que fez grande sucesso com as músicas “Bandeira Branca”, “Ave Maria do Morro”, “Tudo Acabado”, “Errei Sim”, “Hino ao Amor”, “Estão Voltando as Flores”, entre outras, foi considerada uma das maiores vozes da música brasileira.

Dalva de Oliveira faleceu no Rio de Janeiro, no dia 30 de agosto de 1972.

Texto de Dilva Frazão, E-biografia

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sexta-feira, 29 de agosto de 2025

SOBERANIA ALÉM DA PROPAGANDA

Artigo de Fernando Gabeira

A momentânea crise entre Brasil e EUA colocou a soberania no topo da agenda. É o tema central do discurso do governo, deve se tornar slogan e, possivelmente, ocupar um espaço de destaque na campanha presidencial. Mesmo sem subestimar a importância simbólica da soberania com seus discursos e bonés, é preciso aproveitar a oportunidade para um exame objetivo da real independência de um país. De nada adianta apenas cantar: “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”. É preciso examinar, serenamente, os caminhos da soberania, e isso inspira um bom debate para o ano eleitoral que se aproxima.

Um dos temas que me parecem não resolvidos na nossa soberania é o controle efetivo do território. Importantes cidades como o Rio de Janeiro são parcialmente dominadas por grupos armados que impõem suas próprias leis. Uma orientação soberana seria reconquistar essas áreas e liberar milhões de pessoas do jugo do crime organizado. Mesmo o controle efetivo das fronteiras e um pacto de defesa com países amazônicos é essencial porque a Amazônia, principalmente, também tem importantes bolsões dominados pelo tráfico de drogas, animais e contrabando.

Para ser soberano, é também necessário ter uma capacidade de defesa própria, com uma indústria bélica nacional, inteligência estratégica e capacidade de dissuasão. O Congresso tem se omitido na discussão desse tema. Durante a pandemia, constatamos num momento de grande dramaticidade que não tínhamos insumos médicos nem equipamentos para enfrentar a tragédia. Já que o tema é soberania, as eleições de 2026 deveriam fazer um balanço em nossa vulnerabilidade: é menor hoje, quais são os passos para reduzi-la?

No campo tecnológico e digital temos enfatizado o controle das big techs, submetendo-as às leis nacionais. É um importante aspecto da soberania. Mas precisamos desenvolver a capacidade de produzir alguma tecnologia própria (semicondutores, IA, satélites). Nesse caso, estaríamos mais protegidos diante da possibilidade de boicote. Tenho escrito sobre isso e talvez a campanha presidencial possa ser um espaço de discussão do tema.

Outro tema que pode suscitar algum debate é o controle sobre os recursos naturais. O Brasil caminha para uma transição energética. Pode ter energia abundante e barata. Mas é preciso ter um controle maior de seus recursos: água, florestas e minerais estratégicos. Estes estão na ordem do dia. O Brasil precisa ter um levantamento completo dos minerais estratégicos. E uma política de exploração. Dificilmente, será algo estreitamente nacional. Como já não é a esta altura embrionária. Em Goiás, a Serra Verde Mining, que explora terras raras, é de capital norte-americano. Recentemente, o The New York Times revelou que o Brasil e os EUA estudavam um projeto conjunto de mapeamento e exploração desses minérios. Não só o tarifaço, como a hostilidade e a desconfiança entre os governos dificultaram a continuidade dessas conversações.

A ideia de soberania não é contraditória com o multilateralismo. Na verdade, eles podem se reforçar mutuamente. Neste momento de recomposição internacional, quase todos os atores nacionais estão em movimento, se reajustando. São as chances de o Brasil avaliar sua soberania no novo quadro. No caso militar, por exemplo, a dependência dos EUA precisará ser superada com abertura para a Europa, embora o momento não seja bom: os europeus estão se rearmando. Enfim, como a soberania subiu ao topo da agenda, fica a esperança de um bom debate em 2026. Essa esperança existe sempre, mas sempre se frustra. Agora, pelo menos, temos um fio condutor: soberania, quero uma para votar. É possível discutir o tema sem um antiamericanismo estéril. Da mesma forma, não é preciso, como diz o governador Tarcísio, dar uma vitória a Trump. Ele é de um narcisismo sem fim. Basta dizer que se interessa pelas guerras do mundo porque gostaria de ter um Prêmio Nobel da Paz.

As sanções políticas como a Lei Magnitsky também podem nos levar a uma reflexão sobre nosso sistema financeiro. Até que ponto pode se tornar relativamente autônomo, sem uma dependência excessiva de moedas ou bancos estrangeiros?

A verdade é que o tema soberania abre uma avenida para grandes debates e seria uma pena que se limitasse apenas ao lado simbólico das manifestações de afeto pelo Brasil. Se assim acontecer, de uma certa forma vamos ver a passagem de Trump como algo que nos estimulou a avançar, ao invés de ficarmos apenas estupefatos com suas loucuras.

Ele nos colocou num dilema: voltar ao velho discurso nacionalista ou afirmar um projeto soberano que é, na verdade, um antídoto ao isolamento e um passo a mais na maturidade democrática?

Não se trata de um projeto apenas de esquerda ou apenas do tipo Yankees, go home do passado. Na verdade, por mais que tenhamos a tendência de acionar mecanismos passados, eles simplesmente ignoram que o passado passou. Não estamos na revolução industrial, com estradas de ferro e fábricas: hoje as big techs dominam e analisam nossos dados – o que vale uma discussão sobre como trazer isso ao espaço público.

Um projeto de soberania significa também um alto nível de unidade nacional, uma oportunidade de superação de uma atmosfera polarizada. Vê-lo como um simples ativo eleitoral envolto numa superfície politicamente mercadológica é uma forma de reduzir nosso futuro.

Artigo publicado no jornal Estadão em 29 / 08 / 2025

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quinta-feira, 28 de agosto de 2025

NO ESCURINHO DO SISTEMA

Malu Gaspar, O Globo

PEC da Blindagem mostra que, no escurinho do sistema, bolsonaristas e Centrão se acertam

Fazer o que bem entende sem ser cobrado ou punido é o sonho de qualquer um. Mas, para deputados, senadores, governadores, prefeitos, presidente da República, juízes ou ministros do Supremo, é uma causa que ganha status de prioridade sempre que o ambiente político permite. No Brasil, desde que a Lava-Jato fez água, não passa um ano sem que brote no Congresso alguma iniciativa destinada a desmontar o aparato de fiscalização e controle do uso dos recursos públicos.

Já tivemos a Emenda Constitucional que impedia a prisão de deputados por crimes que não fossem inafiançáveis, a que garantia a parlamentares acesso irrestrito aos inquéritos sobre eles mesmos, inclusive os protegidos por sigilo, além de um projeto que tornava crime chamar de ladrão políticos condenados por corrupção. Esses não passaram, mas outros viraram lei, como o que liberou advogados de ter de apresentar contratos formais para justificar o recebimento de recursos, ou a emenda que afrouxou a Lei de Improbidade Administrativa e dificultou a punição de autoridades por desvios de conduta.

A ofensiva em curso, o pacote da blindagem, surgiu no gabinete do ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), numa noite tumultuada. Um grupo de deputados invadira o plenário em protesto contra a prisão domiciliar de Bolsonaro e se recusava a devolver a cadeira do atual presidente, Hugo Motta (Republicanos-PB), a menos que se votasse a anistia aos presos do 8 de Janeiro. Revezavam-se na invasão, alternando ataques ao STF com críticas ao “sistema” — que, na narrativa da extrema direita, atua para tirar Bolsonaro do jogo eleitoral.

Foi quando os líderes reunidos no gabinete de Lira perceberam a oportunidade de ressuscitar projetos que tentam emplacar há anos. O primeiro diz que só o próprio Congresso pode autorizar a abertura de investigação sobre parlamentares, até mesmo inquéritos policiais, e o segundo tira do STF o poder de julgá-los, mudando o foro dos processos para instâncias inferiores.

O foco do Centrão é escapar de investigações sobre desvios de recursos de emendas. Mas o argumento apresentado no calor da hora foi que, só quando estiverem livres do Supremo, os deputados e senadores terão coragem de aprovar a anistia aos presos do 8 de Janeiro (o plano original serviria para libertar também Jair Bolsonaro). O líder do PLSóstenes Cavalcante, aceitou o acordo, de que Hugo Motta foi apenas informado.

A primeira parte do plano, chamada de PEC das Prerrogativas, virou prioridade na pauta da Câmara ontem. A mudança de foro ainda não se sabe se vinga, mas não porque os parlamentares tenham desistido, e sim porque uma ala teme que ficar nas mãos de juízes de primeira instância possa lhes render ainda mais problemas.

A consequência das mudanças é óbvia: um “liberou geral” para todo tipo de desmando, já que abrir inquéritos contra deputados e senadores ficará praticamente impossível. Também não será surpresa se o crime organizado despejar todo o dinheiro que puder na campanha de 2026 para colocar seus integrantes no Congresso.

A extrema direita, que se diz pela democracia e enche a boca para acusar Lula de bandido, sabe disso, mas finge que não vê. Os deputados de esquerda — que, diante dos microfones, chamam o pacote de salvo-conduto para os golpistas, mas nos corredores admitem que podem ajudar a aprová-lo — também sabem.

Para justificar o empenho pela aprovação dos projetos, Sóstenes repete aos quatro ventos que só tenta proteger os parlamentares das chantagens dos ministros do Supremo. Mas quem está chantageando quem, quando e por que, no entanto, ele não diz.

A única forma de conter essa onda é submeter os parlamentares ao vexame da exposição dos conchavos e à pressão da opinião pública. Foi assim com as últimas tentativas de passar a boiada da impunidade, e é por isso que os dois projetos vêm sendo discutidos a portas fechadas e em segredo. No escurinho do sistema, fronteiras ideológicas deixam de existir, e as causas por que esses guerreiros da democracia dizem lutar simplesmente desaparecem.

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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

JÁ COMPREI PIPOCA PARA VER BOLSONARO

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Julgamento de golpistas no STF é avanço institucional, marca decadência política do ex-presidente, mas não zera sua influência eleitoral

Já comprei pipoca para assistir, a partir da semana que vem, ao julgamento de Jair Bolsonaro e de militares que o apoiavam por tentativa de golpe de Estado. Não há muita dúvida nem sobre o veredicto que será dado à maioria dos réus nem sobre a importância histórica desse juízo.

Um dos erros em série cometidos pelo Brasil foi o de nunca responsabilizar plenamente os militares pelas várias rupturas e viradas de mesa que promoveram ao longo de nossa não tão longa história democrática. Impunidade nessas situações é praticamente um convite à próxima intervenção.

Espera-se que a condenação agora eleve substancialmente o custo de ignorar as regras fundamentais da democracia e ponha fim ao ciclo de golpismo barato.

Politicamente, a situação é mais ambígua. É certo que o processo contra o ex-presidente, encimado pela assombrosa campanha de Eduardo Bolsonaro por sanções dos Estados Unidos contra o Brasil, marca uma redução da influência da família.

Receio, porém, que os Bolsonaros, apesar da trajetória descendente, ainda conservem força suficiente para vetar candidaturas de direita, o que significa que não voltarão imediatamente para o campo da irrelevância política de onde não deveriam ter saído.

Em relação ao pleito de 2026, as coisas são ainda mais fluidas. A polarização transforma a disputa naquilo que meus colegas das páginas de esporte chamam de jogo de seis pontos. Perdas de um lado são ganhos para o outro e vice-versa.

No início do ano, o governo Lula parecia caminhar resolutamente para as cordas, mas as reinações de Dudu combinadas com preços de comida um pouco mais comportados recolocam o petista no jogo com boas chances.

Nada garante, contudo, que Lula não cometerá nenhuma tolice digna de Bolsonaros ou verá sua proverbial sorte revertida.

O que quer que aconteça na eleição, no plano institucional a condenação de golpistas representa inequívoco avanço, o que já faz valer a pipoca.

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O USO DO SAGRADO COMO FERRAMENTA DO FASCISMO

Luís Sabanay, Folha de S. Paulo

Quando púlpito e palanque se confundem, o adversário vira inimigo da fé e o apoio político assume feição de devoção

, quando nasce de experiências autênticas, é espaço de encontro, escuta e defesa da dignidade humana. Em sua melhor expressão, promove compaixão e convivência. Mas, distorcida para servir a interesses de dominação, perde o sentido original e se converte em barreira ao diálogo. Governos autoritários conhecem esse poder e frequentemente envolvem seus projetos em símbolos e narrativas sagradas, criando um verniz moral que intimida críticas.

religião, como conjunto de crenças, ritos e valores, pode ser fonte de solidariedade ou de opressão. Sua força mobilizadora também a torna vulnerável à manipulação política travestida de legitimidade moral. A história mostra isso: Mussolini Adolf Hitler contaram com líderes religiosos para reforçar discursos nacionalistas como missão divina; no apartheid, interpretações bíblicas seletivas sustentaram a segregação. O enredo é recorrente: constrói-se um inimigo interno, que pode ser o diferente, o inconformado ou o crítico, e eleva-se um líder a guardião de uma ordem sagrada.

No Brasil, essa lógica encontrou terreno fértil com o avanço de correntes evangélicas, sobretudo pentecostais e neopentecostais, mas também em movimentos carismáticos católicos e outras tradições.

Quando púlpito e palanque se confundem, o adversário vira inimigo da fé e o apoio político assume feição de devoção. Sermões e programas religiosos se misturam a jingles e slogans, enfraquecendo a neutralidade do Estado e a liberdade de crer ou não crer.

O fenômeno é global. Nos Estados Unidos, o cristianismo nacionalista molda leis e tribunais e já serviu de base à Ku Klux Klan. Na Hungria e na Rússia, narrativas religiosas reforçam nacionalismos e leis restritivas. Em Israel, setores ultranacionalistas usam a tradição judaica para legitimar a ocupação de territórios palestinos como promessa divina. Na África e na Ásia, líderes muçulmanos, cristãos e hinduístas fundem religião e política para sustentar governos ou restringir minorias. Na América Latina, igrejas e religiões afrodescendentes são, em certos contextos, atraídas para legitimar candidaturas, barganhar favores ou assegurar proteção judicial.

Apesar disso, a religiosidade também carrega potencial libertador. Igrejas, como as que abrigaram judeus durante a Segunda Guerra Mundial ou acolheram perseguidos políticos na América Latina, ofereceram refúgio contra a opressão. Proteger esse potencial exige educação para distinguir fé genuína de manipulação e criar espaços de encontro entre diferentes crenças para defender sociedades plurais.

A lição é clara: quando a religião se ajoelha ao poder político, abdica de sua missão ética; quando o poder se apropria do sagrado, renuncia à justiça. Garantir liberdade religiosa é impedir que ela se torne arma contra os direitos que deveria proteger. Essa tarefa exige coragem, lucidez e persistência para preservar o elo entre fé, democracia e justiça social.

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O DECLÍNIO DA DEMOCRACIA AMERICANA

Wilson Gomes, Folha de S. Paulo

Pela primeira vez em oito décadas, no clube das superpotências não resta nem sequer uma democracia funcional

E os Estados Unidos, hein? Durante oito décadas, vendidos como o farol da democracia e a garantia de que regimes baseados em liberdades e direitos poderiam florescer. Hoje, porém, esse capital simbólico se dissolve rapidamente e oferece ao mundo menos um exemplo a seguir do que um modelo a evitar.

Quem diria que, em 2025, apenas cogitar entrar naquele país já significa abrir mão de dez direitos e renunciar a cinco liberdades fundamentais? E que, se conseguir atravessar a fronteira —ou, sendo residente, decidir permanecer—, a pessoa terá de aceitar uma perda substancial em praticamente todos os direitos que lhe conferem as constituições liberal-democráticas.

O sujeito acorda em solo americano e lá se foram alguns de seus direitos individuais, pois o primeiro artigo da nova constituição afirma que Trump é o Estado e é ele quem decide sobre o que se pode falar e qual opinião se deve ter. Seus direitos sociais, inclusive os econômicos, tampouco permanecem intactos, porque é o Estado quem determina com quem se negocia, a que taxas e com quais produtos.

Nem preciso falar dos direitos de terceira geração —ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente—, porque esses encontram hoje no governo americano o seu principal antagonista em nível global. Basta acreditar neles para ser considerado antiamericano.

A justiça internacional virou anedota, já que o segundo artigo da constituição trumpista estabelece que as leis dos Estados Unidos, interpretadas exclusivamente pelo governo, se sobrepõem a quaisquer normas nacionais ou decisões de organismos multilaterais.

Se o presidente (vamos chamá-lo assim por falta de um título mais excelso) decide que perpetradores de crimes contra o Estado de Direito devem ser considerados democratas —como o húngaro Antal Rogán—, enquanto democratas são violadores de direitos humanos, não pode ser contestado. Basta um ato de Trump e tiranos viram democratas e democratas, déspotas —justificações não são necessárias, o presidente não deve explicações.

Em poucas semanas, juízes do Tribunal Penal Internacional e da Suprema Corte do Brasil —que ousaram julgar genocidas ou golpistas sob a proteção do presidente— foram eles próprios julgados e condenados no único tribunal que realmente conta na galáxia: o arbítrio de Trump. Netanyahu e Bolsonaro são uns santos, os juízes que os julgam, monstros.

Decisão inquestionável, sanções imediatas. E só uma pessoa no planeta pode arbitrar a dosimetria. Imaginem quem.

Todos os condenados estão sujeitos às únicas leis que agora valem incondicionalmente para todos os cidadãos do planeta. Da decisão não cabe recurso; ao contrário, qualquer reação é tratada como agravante. O caso das tarifas ilustra bem: anuncia-se 50%. "Mas, se o país reagir, aumentarei para 100%, 1.000%, até onde eu quiser."

O mesmo vale para quem ousar desafiar o édito que transforma um tribunal ou indivíduo em pária do sistema financeiro: quem oferecer guarida a um "criminoso" segundo a lei de Trump será severamente punido. O braço longo da lei americana alcançará o dissidente, sua família e seus amigos onde quer que estejam. Fronteiras, magistrados e leis nacionais não bastarão para poupá-los. O mundo inteiro vive sob a regra infantil de mãe de chinelo na mão ameaçando: "Se correr é pior".

De longe, o mais grave é a constatação de que, pela primeira vez em 80 anos, no clube das três superpotências não resta uma democracia funcional. E isso altera um equilíbrio delicado, mas essencial, que desde 1945 permitiu que as democracias prosperassem.

Mudanças eram esperadas, mas em outra direção. Muitos apostaram na democratização da Rússia após o esfacelamento da União Soviética. Outros acreditaram que a economia de mercado, dominada com eficiência pela China, suavizaria sua ditadura. Nada disso ocorreu.

O inesperado foi a "desdemocratização" dos Estados Unidos —e a velocidade vertiginosa com que a erosão avançou, sem encontrar resistências, num país repleto de instituições criadas justamente para conter o absolutismo. Em outras palavras: ninguém esperava ver os Estados Unidos transformados naquilo que, por oito décadas, sua retórica denunciou como características dos "regimes inimigos da liberdade".

É daí que surgem os paradoxos do presente. De repente, um regime liberticida como a China parece a fada sensata diante do caos produzido por Trump nas relações internacionais. E até Putin, sanguinário e perigoso, que "apenas" deseja anexar um vizinho, parece menos ameaçador por deter uma fração mínima do poder do americano.

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OPOSIÇÃO DE RESULTADOS

Dora Kramer, Folha de S. Paulo

União Progressista fortalece o centrão e enfraquece Bolsonaro na definição dos rumos da direita

Sobre o cinismo oposicionista da federação denominada União Progressista, dona de ministérios e cargos importantes no governo do PT, muito já se falou e falaremos mais um pouco adiante.

Outro aspecto dessa junção do PP com o União Brasil, contudo, merece atenção. Serão 109 deputados e 14 senadores em via de serem 15, tornando-se a maior bancada do Congresso. Parlamentares em amplíssima maioria identificados com o centrão. Na Câmara, ultrapassam o PL de Jair Bolsonaro que, assim, perde o privilégio daquela condição.

Além disso, juntos, PP e União terão em caixa R$ 1,151 bilhão dos fundos eleitoral e partidário, considerados os últimos repasses de dinheiro público. Surge, aí, a possibilidade de uma modificação significativa no equilíbrio de forças no Parlamento e fora dele.

Perde muito mais o bolsonarismo que o petismo. Este já tem como dada sua função meramente utilitária de meio de acesso ao aparelho estatal. Aquele, no entanto, ainda guarda alguma cerimônia no trato do ex-presidente como guia genial da direita.

Isso pode mudar. Ainda é cedo para afirmar com certeza, embora seja possível aventar a hipótese de que se fortaleça nesse campo o descolamento da liderança e orientação de Bolsonaro nas articulações para a disputa presidencial de 2026.

A manutenção da palavra do ex-presidente como determinante para decisões da direita já é considerada um estorvo em voz baixa. Reclamos que tendem a ganhar decibéis com a provável condenação no Supremo e os atritos promovidos pela prole do capitão.

O oposicionismo de resultados, expresso na presença de indicados dos novos federados na máquina pública, não deixa de ser um reforço à União Progressista. O comando de quatro ministérios, controle de diretorias da Caixa Econômica Federal e de boas cadeiras na Codevasf são ativos assaz interessantes para a formação de robustas bancadas na eleição parlamentar.

Para isso, precisam mais da condescendência pragmática do governante que de obediência às ordens do oponente.

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TRUMP CONTRA O FEDERAL RESERVE

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

EUA ameaçam sanções contra países que regulam ou tributam plataformas sociais

Donald Trump atropela as instituições americanas, públicas ou privadas, como universidades e escritórios de advocacia; ameaça empresas por meio de extorsão, faz o diabo. Pode estar mais perto de mandar no banco central, no Fed.

Seja lá o que se pense a respeito de bancos centrais, o BC americano é um dos motivos principais do crédito, da confiança, no mercado dos títulos da dívida do governo dos Estados Unidos (isto é, dos empréstimos para o governo federal americano).

O Fed é mais do que isso, mas o exemplo é relevante, aqui e agora. Trata-se de um mercado, de uma dívida, de US$ 30 trilhões, o equivalente ao valor de 14 PIBs do Brasil. No limite, um Fed bananeiro pode afetar o crédito do governo e da economia americana.

Pois bem. Trump não está nem aí. Se não tem receio de balançar as estruturas financeiras do país, por que teria problemas em dar mais tiros em países como o Brasil?

Nesta mesma semana em que tenta decapitar uma diretora do Fed, Trump anunciou que vai aumentar o imposto de importação ("tarifas") de produtos de países que regulem ou também tributem as "big techs".
Isto é, Trump ameaça mais encrenca com União Europeia, Canadá, Coreia do Sul e países como o Brasil, que já está sob investigação americana, o que pode redundar em novas sanções.

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva está para enviar ao Congresso um ou dois projetos de regulação de "big techs", plataformas sociais, essas coisas. Afora novas turumbambas no Congresso, deve fazê-lo no setembro do julgamento de Jair Bolsonaro, outro motivo possível de mais tiros no Brasil.

No que interessa a ele, Trump teve sucesso no "tarifaço". Dobrou ou ignorou todos os países, com exceção da China, que respondeu com chumbo na mesma medida, porque pode. Ameaça intervenções variadas em semicondutores, produtos farmacêuticos, móveis, jujuba, quem sabe.

Até agora, não tem contestação jurídica ou oposição política relevantes nos Estados Unidos. Não teve de se preocupar nem mesmo com os povos dos mercados, que pelo menos nesta terça-feira não deram a mínima para o plano de decapitar Lisa Cook, a diretora do Fed.

Juros e preços de ações se moveram como em um dia tedioso de fim de férias de verão —nada. Em abril, na semana das "tarifas da libertação", o tamanho da maluquice ao menos levou Trump a recuar.

Trump demitiu ou acredita ter demitido Cook —pode vir a ser um caso enrolado e comprido na Justiça. O presidente dos Estados Unidos indica os sete diretores do conselho do Fed, que sempre votam no que fazer da taxa básica de juros (Trump já tem dois nomeados, vai indicar um terceiro, seu ideólogo econômico, Stephen Miran, e pode ter mais uma vaga na mão, se tiver a cabeça de Cook).

Os sete do conselho são acompanhados de mais cinco votantes: o presidente regional do Fed de Nova York e outros quatro dos doze chefes dos Feds regionais (em rodízio). O conselho pode encrencar a nomeação dos presidentes regionais, a cada cinco anos, como será o caso em 2026.

Em resumo, Trump pode ter uma diretoria para chamar de sua no ano que vem. Pode não nomear gente tão lunática e despreparada como é aquela que ocupa mais da metade de seu secretariado (ministério). Mas é grande o risco de o BC dos EUA fazer também parte do admirável mundo novo de Trump.

Se Trump faz o que faz com um pilar do centro do capital, acha mesmo que é o imperador do mundo, como diz Lula. O que vamos fazer para fugir dos tiros?

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MOVIMENTO DOS EVANGÉLICOS DESIGREJADOS

Denise Santana, Correio Braziliense

Ao mesmo tempo em que o Brasil registra o aumento de evangélicos, há um movimento de abandono da comunidade de fé: evangélicos se desligam das igrejas institucionais e optam por cultivar uma fé autônoma

O cenário atual do segmento evangélico mostra pessoas entrando e saindo das igrejas. O Censo Demográfico 2022 sobre religião, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que o número de evangélicos aumentou no Brasil, chegando a 26,9% da população, somando 47,4 milhões de pessoas. Apesar desse crescimento, existe outra realidade: o abandono da comunidade de fé, em que evangélicos se desligam das igrejas institucionais e optam por cultivar uma fé autônoma. O movimento ficou popularmente conhecido como desigrejados.

Esse desligamento dos membros traz um novo panorama para a igreja institucional, que passa por mudanças. Antigamente, existiam os católicos romanos e ortodoxos praticantes e os não praticantes, mas os evangélicos eram praticantes. Hoje, existe o crente que não quer mais frequentar a igreja institucional.

Cada pesquisador categoriza de uma maneira os subgrupos de desigrejados. Entendo que são três. O primeiro grupo comporta os decepcionados, que são pessoas que abandonaram a comunidade pelos mais diversos motivos, mas que não querem o fim da igreja institucional. O segundo são os radicais, que defendem o fechamento dos templos. O terceiro são os consumidores, que são usuários de algumas atividades congregacionais, mas não querem compromisso de membresia e comunhão.

As pessoas estão abandonando as comunidades de fé pelos mais variados motivos. Conversando com os desigrejados que estão formando comunidade nas redes sociais para criticar o segmento, especialmente no Facebook, percebi que a evasão acontece porque discordam da institucionalização da Igreja, da variedade de denominações religiosas, da secularização das Igrejas históricas, da profissionalização do pastorado, da busca pelo diploma de teologia reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC), da variedade de métodos de crescimento das Igrejas onde os líderes buscam quantidade de pessoas em detrimento da qualidade espiritual dos membros, dos ministérios que têm somente foco em reuniões que visam bater metas da liderança, da disputa entre as pessoas para atingir as metas, da estrutura organizacional (templo, culto regular aos domingos, tesouraria, ofícios, oferta, dízimo, CNPJ, clero oficial, confissão de fé, rol de membros, a igreja ter propriedade, escola ou seminário), da hierarquia na denominação que não permite viver o sacerdócio de todo o crente, da igreja empresa com pastores que buscam lucro financeiro e viraram homens de negócio, da Teologia da Prosperidade, do abuso espiritual dos líderes, dos escândalos sexuais e financeiros, e da política partidária nos templos, que polarizou os fiéis.

É preciso pensar os aspectos sociais mais amplos que têm levado as pessoas a abandonarem as igrejas. O movimento pode ser entendido por meio da desinstitucionalização. O desigrejamento é fruto da crise institucional que a Igreja Evangélica atravessa, uma falta de pertencimento que atinge todas as esferas da sociedade, inclusive a área religiosa. Também pode ser entendido pela destradicionalização. Anteriormente, era normal uma pessoa permanecer em uma Igreja porque a família era daquela tradição religiosa. Hoje, a pessoa é autônoma na escolha da fé, podendo romper com laços religiosos familiares. Ocorre uma quebra significativa entre as gerações na transmissão da herança religiosa, que antes era repassada de pai para filho, o que faz com que o legado dos valores, dos saberes e dos bens simbólicos se dilua de geração em geração. A sociedade vive uma crise na transmissão da herança cultural com reflexos em todas as áreas, como família, Estado, movimentos sociais, entidades civis e tradições religiosas.

Existe, ainda, a crise axiológica, que gera a decadência de valores e o descrédito pessoal e das instituições. Essa crise também deve ser levada em conta quando se busca desenhar os caminhos que explicam o desigrejamento. A crise axiológica aumenta quanto mais se articulam os eventos humanos, como a secularização, a modernidade, a globalização, as mudanças de condições culturais, sociais e de trabalho. Na contemporaneidade, a cultura dominante instiga a sociedade ao imediatismo, à busca permanente de novidades e de novas experiências, a ser o próprio construtor das suas verdades. A cultura também prega aversão à tutela institucional, o fim da verdade absoluta, o individualismo, a religiosidade emotiva, o pluralismo e o pragmatismo.

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UM MUNDO EM DISTOPIA

Rodrigo Craveiro, Correio Braziliense

Vivemos uma espécie de distopia, uma inversão de valores que me causa estranheza e preocupação

Vivemos uma espécie de distopia, uma inversão de valores que me causa estranheza e preocupação. A maior potência do planeta — ou seria a China? — é governada por um narcisista. Alguém que, apesar de promover uma perseguição sem precedentes aos imigrantes ilegais e travar uma batalha ideológica contra as maiores universidades de seu país, faz uma autocampanha para ganhar o Nobel da Paz. Um chefe de Estado que se orgulha de ter acabado com a guerra entre Israel e Irã, mesmo que tenha mandado seus caças e bombardeios atacarem o território iraniano e ameaçado matar o aiatolá Ali Khamenei. Um presidente que impõe tarifas ao mundo para dobrar-lhe os joelhos e fazer valer seus interesses econômicos; que não se furta em se intrometer em assuntos de outras nações, em uma clara ingerência política e diplomática; e que demite a diretora do próprio Federal Reserve (Banco Central dos EUA), ainda que essa atribuição não seja sua. 

A distopia faz com que alguns normalizem o fato de um deputado federal licenciado fazer uma campanha deliberada contra a economia da própria nação, à sombra daquele mesmo líder americano, apenas para impedir que o Supremo Tribunal Federal honre seu papel de guardião da Constituição. Esse mesmo deputado, a partir dos Estados Unidos, tenta obter à marra uma anistia para o pai, acusado de golpismo, e ameaça jogar no desemprego e na sarjeta milhões de brasileiros. Como ele próprio disse, em um cenário de terra arrasada no Brasil, pelo menos se sentirá vingado. 

Depois da doutrinação ideológica, muitos brasileiros aceitam passivamente a matança na Faixa de Gaza como uma ação legítima contra o grupo terrorista Hamas. Não se comovem com as cenas de horror, os corpos empilhados, os seres humanos castigados pela fome e transformados em ossos e pele. A indiferença de muitos países lança a humanidade em uma letargia. É quase como a também normalização da morte em massa. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, considera um ataque ao único hospital em funcionam na Faixa de Gaza e os assassinatos de cinco jornalistas no bombardeio de segunda-feira, em Khan Yunis, como um "acidente trágico". É quase sempre a mesma desculpa esfarrapada: a de que o Hamas usa hospitais como base. Como se isso legitimasse o massacre de civis. Ontem, Israel afirmou ter eliminado "seis terroristas" no hospital e alegou que o alvo era um cinegrafista do Hamas. 

No Brasil, não se pode mais defender as aspirações — legítimas, diga-se de passagem — do povo palestino por um Estado independente e soberano. Pouco antes de escrever este artigo, o ministro da Defesa de Netanyahu, Israel Katz, chamou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de "antissemita apoiador do Hamas". Tudo porque Lula tocou em um grande tabu, ao comparar as ações das Forças de Defesa de Israel em Gaza às do Exército nazista durante o Holocausto. Todos os dias recebemos imagens de Gaza pelas agências de notícias. Muitas delas mostram crianças de corpos esquálidos, engolidos pela fome.

A distopia segue seu curso na guerra da Rússia contra a Ucrânia. O presidente Vladimir Putin parece determinado a forçar a ex-república soviética a ceder parte de seu território. É mais um absurdo de um conflito repleto de absurdos. As forças russas sequestraram cerca de 20 mil crianças ucranianas e as levaram para territórios ocupados ou para a própria Rússia. Mais um sinal de um mundo em dessaranjo. 

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