Na sexta-feira 29, o Ministério Público de São Paulo intimou
para prestar depoimento o ex-presidente Lula, sua mulher Marisa Letícia e o
ex-presidente da OAS, Leo Pinheiro. Lula será ouvido em 17 de fevereiro como
investigado, sob a suspeita de ter praticado crimes de ocultação de patrimônio
e lavagem de dinheiro. Frente a frente com os promotores, a família do
ex-presidente e o empreiteiro terão de apresentar justificativas mais
plausíveis do que aquelas já expostas até agora a respeito do tríplex
localizado no condomínio Solaris, no Guarujá, e reformado pela OAS, que na
semana passada transformou-se em alvo da mais recente fase da Operação Lava
Jato. As suspeitas, segundo os procuradores, recaem sobre o uso dos
apartamentos do Solaris, entre eles o de Lula, para “repasse disfarçado de
propina a agentes envolvidos no esquema criminoso da Petrobras.” Em outras
palavras, pagamento de suborno do Petrolão.
ISTOÉ teve acesso a três documentos que comprometem as
versões exibidas por Lula, desde que o caso veio à tona. No ano passado, quando
surgiram as primeiras denúncias de que a empreiteira OAS, envolvida nas
falcatruas da Petrobras, desembolsou mais de R$ 700 mil na reforma do
apartamento no litoral paulista, o Instituto Lula se esmera em negar com
veemência que o ex-presidente ou a ex-primeira-dama Marisa Letícia sejam donos
do imóvel. Eles seriam, segundo insistem em afirmar, apenas cooperados de uma
cota da quebrada Bancoop, a Cooperativa Habitacional dos Bancários de São
Paulo, já comandada por dirigentes petistas, como João Vaccari Neto e Ricardo
Berzoini, hoje ministro de Dilma, que deixou mais de três mil famílias sem ver
a cor de seus imóveis e do dinheiro aplicado por eles movidos pelo sonho da
casa própria. O discurso do principal líder petista persistiu até semana
passada, apesar de toda a sorte de depoimentos que confirmaram a presença
rotineira de integrantes da família Lula durante as obras responsáveis por
mudar (para melhor) a configuração do tríplex. Os documentos que ISTOÉ
apresenta agora revelam que Lula jamais abriu mão do imóvel. Há sete anos, a
família Lula deveria ter exercido o direito, caso tivesse interesse, de se
desfazer da cobertura de frente para a praia e receber a restituição em
dinheiro do que havia desembolsado até ali. Mas não o fez. Na época, um acordo
foi selado, transferindo o empreendimento atrasado e inacabado da Bancoop para
a OAS.
Ratificado na assembleia dos proprietários em 27 de outubro
de 2009 e subscrito pelo ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, o “Termo de
Acordo para Finalização do Residencial”, de 14 páginas, é taxativo. Diz que os
investidores do inacabado Residencial Mar Cantábrico, renomeado tempos depois
para Solaris, tinham dez dias a contar daquela reunião para se desligarem da
Bancoop. Precisavam, afirma a cláusula 8.1 do capítulo VIII, também optar entre
duas opções em até 30 dias. A primeira, afirma o capítulo X, receber os valores
em espécie com multa. A outra consistia em manifestar o desejo de ficar com o
imóvel e custear novas despesas para sua finalização. Os valores já pagos, então,
iriam ser transformados em uma carta de crédito pela OAS que deveria ser “usada
com exclusividade como parte de pagamento para a aquisição de unidade do
empreendimento”. Evidente que aquela era uma oportunidade para que os até então
aspirantes a adquirir o imóvel desistissem dele, caso tivessem vontade. Mais do
isso. As cláusulas 8.2, 8.3 e 8.4 afirmam que “os cooperados que não atenderem
ao disposto item 8.1 infringirão deliberação da Assembleia” e “serão
penalizados” com a “sua eliminação da Bancoop”.
Não foi uma mera ameaça. Segundo apurou ISTOÉ junto a cooperados da
empresa, quem descumpriu esses itens acabou acionado na Justiça. Por isso
torna-se completamente inverossímil a nota divulgada pelo Instituto que leva o
nome do ex-presidente, quando sugere que a família Lula poderia decidir, em
2015, entre ficar ou não com o apartamento. Se porventura isso acontecer,
sobretudo depois da eclosão do escândalo, ficará configurado mais um
favorecimento da empreiteira OAS, implicada no Petrolão, ao petista e seus
familiares.
Outro documento ao qual ISTOÉ teve acesso revela que a OAS
nunca colocou à venda o tríplex destinado à família Lula, o 164 A, ao contrário
da atitude tomada em relação a outros imóveis descartados por cooperados em
2009. Os apartamentos dos que não demonstraram interesse em migrar da
cooperativa para a empreiteira, logo, foram repassados ao mercado. É lícito
supor que se Lula tivesse manifestado a intenção de se desfazer da cobertura,
seu apartamento receberia o mesmo tratamento dos demais. Definitivamente não
foi o que aconteceu. A tabela de vendas com 12 páginas, de uma empresa
associada à OAS e responsável pela comercialização das unidades restantes do
Solaris, no Guarujá, é bem clara. O documento datado de fevereiro de 2012
mostra que 33 unidades do condomínio Solaris estavam disponíveis naquela
ocasião. Em uma das colunas, a tarja
preta sobre o tríplex 164 A de Lula indica que, sim, o imóvel já tinha dono e
não poderia ser comercializado. Naquele ano, havia até um tríplex esperando por
compradores, mas o da torre vizinha ao prédio de Lula.
Autoridades
familiarizadas com o esquema da Bancoop também estranham outra afirmação do
Instituto Lula: a de que Marisa teria adquirido cotas do empreendimento.
“Genericamente, este negócio de cotas é coisa de consórcio. Cooperativa, como a
Bancoop, é algo diferente. Ali, o que a pessoa adquire é um apartamento X ou
Y”, diz o promotor paulista José Carlos Blat. Num outro documento obtido por
ISTOÉ, um dos cooperados - que preferiu ter o nome preservado - assina o termo
de adesão da Bancoop em março de 2004. O acordo já previa o número do
apartamento. Outros ex-proprietários confirmaram que já sabiam previamente dos
apartamentos que caberiam a eles, antes mesmo de realizarem qualquer pagamento
à cooperativa. “Para mim e para muitos, o apartamento já vinha definido na hora
da compra”, diz a advogada e ex-cooperada Tânia de Oliveira “Até porque havia
variações de preço de acordo com o tamanho, o andar, a vista e a localização”,
afirma.
Os documentos lançam luz sobre as inconsistências das
versões apresentadas por Lula. Os trâmites, por assim dizer, burocráticos desde
a incorporação pela OAS dos apartamentos da falida Bancoop são fundamentais
para atestar documentalmente que, sim, a família do ex-presidente sempre teve a
intenção de permanecer com o tríplex de frente para a praia. Desmoronam o
castelo de areia em que se transformou o imóvel do petista. O escândalo, no
entanto, vai além de uma questão de formalização. Uma série de depoimentos
revela que Lula e Dona Marisa agiram – com impressionante desassombro, até
serem confrontados com os fatos – como verdadeiros donos do imóvel. A
ex-primeira-dama acompanhou de perto a reforma do tríplex, paga pela OAS. Não
foram poucas as alterações, como uma simples troca de azulejos do banheiro, por
exemplo. As mudanças conferiram uma roupagem nova e mais sofisticada ao imóvel,
com cerca de trezentos metros quadros e vista para o mar. Segundo o engenheiro
Armando Dagre, um dos donos da Talento Construtora, empresa responsável pela
reforma, as obras foram típicas de quem pretende se instalar no imóvel
deixando-o à sua feição. Por isso foram empreendidas mudanças significativas na
área da piscina, com a instalação de um espaço gourmet, no acabamento do piso,
que passou a ter revestimento de porcelanato, e na escada, que deixou de ser o
único elo entre os três pisos do apartamento: para que Lula e seus familiares
pudessem vencer os três andares do imóvel com mais conforto foi determinada a
instalação de um elevador privativo. As despesas somaram cerca de R$ 750 mil,
pagas pela empreiteira envolvida no Petrolão. O engenheiro foi além em seu
relato. Afirmou ter testemunhado uma das visitas da ex-primeira-dama no imóvel
em 2014. Em sua companhia, estavam o filho Fábio Luiz e nada menos do que Léo
Pinheiro, ex-presidente da OAS e réu no Petrolão. As idas de Marisa ao prédio
foram atestadas por outros dois funcionários do condomínio, em depoimento ao
MP-SP. De acordo com eles, de tão interessada, ela chegou a perguntar sobre o
uso das áreas comuns – seguindo à risca a liturgia que todo proprietário de um
imóvel adquirido na planta cumpre. Depois da vistoria, a mulher de Lula
participou do processo tradicional de recebimento das chaves do imóvel.
“Pegamos as chaves do apartamento no dia 5 de junho, inclusive dona Marisa —
disse Lenir de Almeida Marques, casada com Heitor Gushiken, primo do
ex-ministro Luiz Gushiken, morto em 2013 e que foi também presidente do
Sindicato dos Bancários de São Paulo. O Solaris abriga outros moradores bem
próximos do petista, como João Vaccari Neto e Freud Godoy, uma espécie de
faz-tudo do ex-presidente, que, depois de atuar por vinte anos como seu
guarda-costas, virou assessor especial do Planalto durante sua gestão.
Esses fatos por si só já colocariam Lula numa enrascada, uma
vez que poderiam ensejar uma denúncia por ocultação de patrimônio, como defende
um integrante do MP-SP. As investigações acerca da relação de Lula com o
imóvel, no entanto, ganharam nova dimensão na semana passada com a entrada do
edifício Solaris no radar da força-tarefa da Lava Jato. A “Triplo X”, nome
alusivo a tríplex, mira segundo os procuradores “todos os apartamentos” do
edifício Solaris, no Guarujá, que estariam sendo usados “para repasse
disfarçado de propina (pela OAS) a agentes envolvidos no esquema criminoso da
Petrobras.” Questionado durante entrevista coletiva, se Lula seria o foco da operação, o
representante do MPF respondeu: “Se houver um apartamento lá que esteja em seu
nome [de Lula] ou que ele tenha negociado, vai ser investigado como todos os
outros.”
Durante a Operação, da qual participaram 80 agentes, foram
recolhidos documentos na OAS, Bancoop e na Mossack Fonseca, empresa responsável
por viabilizar a constituição da offshore Murray, sediada no Panamá. Ela foi
usada para registrar 14 apartamentos, entre eles um tríplex no Solaris, e
ocultar seus verdadeiros donos. A Mossack Fonseca já havia aparecido
anteriormente na Lava Jato por auxiliar outros réus a esconderem dinheiro da
corrupção da Petrobras em paraísos fiscais. Além da companhia - apontada como
uma facilitadora de lavanderias de dinheiro por procuradores -, as
investigações centram em imóveis que pertenceriam a familiares de João Vaccari
Neto, ex-tesoureiro do PT e preso na Lava Jato. Um apartamento situado no
condomínio e declarado à Receita pela esposa de Vaccari tem sua escritura em
nome de uma funcionária da OAS. Chamou atenção também o fato de Marice Correa,
cunhada do ex-tesoureiro do PT e que chegou a ser detida no Petrolão, ter
comprado e revendido um imóvel para a própria empreiteira por quase o triplo do
valor em apenas um ano. A chave para elucidar esta lavanderia, para as
autoridades, é Nelci Warken, ex-prestadora de serviços de marketing à Bancoop.
Presa na quarta-feira, ela é tida como laranja do esquema.
O novo escândalo abala Lula como nunca antes. Pelo simples
fato de que, agora, a denúncia envolve suspeitas de favorecimento no campo
estritamente pessoal. No imaginário popular, sai do abstrato e já quase
banalizado “desvio de verbas para campanhas” para o concreto e tangível
benefício próprio materializado num confortável tríplex com vista para o mar.
Diante do exposto, fica complicado persistir na retórica de vítima das elites,
enquanto os meros mortais de carne e osso o imaginam refestelado na
espreguiçadeira da piscina reformada por uma empreiteira contemplando a vista
para o mar da praia do Guarujá. A história política brasileira recomenda
alerta. Uma outra reforma potencializou a queda de outro ex-presidente do
Planalto. Em 1992, Collor viu sua popularidade se deteriorar com a divulgação
das cachoeiras motorizadas, do lago artificial e das fontes luminosas da Casa
da Dinda, cujo suntuoso jardim de marajá foi reformado por um paisagista
renomado com dinheiro proveniente de contas do tesoureiro, Paulo César Farias.
Único nome com musculatura eleitoral para dar prosseguimento ao projeto de
poder petista em 2018, Lula corre o risco de ver seu castelo de areia desabar,
e junto com ele todo o capital político que acumulou em quarenta anos de vida
pública.