Renovação Liberal: a associação familiar para onde vai o
dinheiro do MBL
O Movimento Brasil Livre (MBL), que surgiu em 2014
carregando a bandeira do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e do
combate intransigente à corrupção, se autodenomina uma entidade sem fins
lucrativos, segundo consta em sua página no Facebook. Porém, há um lado
nebuloso sobre como se organiza e se mantém financeiramente este movimento, que
conta com 2,5 milhões de fãs em seu perfil na rede social. Todos os recursos que
recebe por meio de doações, vendas de produtos e filiações são destinados a uma
"associação privada" — como consta no site da Receita Federal — ,
chamada Movimento Renovação Liberal (MRL), registrada em nome de quatro
pessoas, sendo três deles irmãos de uma mesma família: Alexandre, Stephanie e
Renan Santos. Este último é um dos coordenadores nacionais do MBL e um dos
rostos mais conhecidos do grupo.
A família Santos responde atualmente a 125 processos na
Justiça, relativos a negócios que tiveram antes da criação do MRL. O EL PAÍS
teve acesso a estes processos. A maioria é relativa à falta de pagamento de
dívidas líquidas e certas, débitos fiscais, fraudes em execuções processuais e
reclamações trabalhistas. Juntos, acumulam uma cobrança da ordem de 20 milhões
de reais, valor que cresce a cada dia em virtude de juros, multas e cobranças
de pagamentos atrasados.
Três membros desta mesma família, além de uma quarta pessoa,
aparecem como únicos associados da Renovação Liberal, a entidade privada
"sem fins econômicos e lucrativos" que recebe o dinheiro do MBL. Seu
estatuto, registrado em cartório em julho de 2014, diz que se trata de uma
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). De acordo com a
legislação brasileira, doadores de uma OSCIP podem descontar do Imposto de
Renda as colaborações feitas a uma entidade como o MRL.
Até hoje, o Movimento Renovação Liberal não consta no
cadastro nacional de OSCIP disponibilizado pelo Ministério da Justiça.
Consultando o CNPJ do Renovação Liberal (22779685/0001-59) no site da Receita
Federal, o que se encontra é uma associação privada, criada em março de 2015, cuja
atividade principal é “serviços de feiras, congressos, exposições e festas”.
Além disso, apenas Stephanie Liporacci Ferreira dos Santos,
irmã de Renan Santos, aparece na Receita Federal como presidenta da entidade.
Ou seja, o que aparece na Receita não corresponde ao quadro societário que
aparece no estatuto da associação. O endereço do Renovação Liberal fica,
atualmente, num bairro nobre da zona sul de São Paulo, no mesmo imóvel onde
está a sede nacional do MBL. De acordo com fotos e publicações em suas páginas
de Facebook, Stephanie mora na Alemanha, onde foi visitada por seus pais e
irmãos em julho deste ano.
Segundo Cecília Asperti, advogada e professora de Direito da
Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), o mero fato de que o estatuto social diga que
a entidade se trata de uma OSCIP não significa que ela seja uma. “Somente podem
qualificar-se como tal as pessoas jurídicas (de direito privado sem fins
lucrativos) que tenham sido constituídas e que se encontram em regular
funcionamento há, no mínimo, três anos”, afirma Asperti. “Para tanto, é
necessário fazer um requerimento perante o Ministério da Justiça observando-se
os critérios estabelecidos em lei. Cabe, então, à pasta federal julgar se a
associação enquadra-se ou não nos requisitos”, explica a advogada.
O dinheiro doado ou repassado ao MBL é canalizado para o
Movimento Renovação Liberal da seguinte maneira: quando alguém doa (e se filia)
ao MBL, paga uma taxa por meio de um serviço de internet (PayPal). O dinheiro,
então, é direcionado ao CNPJ do Renovação Liberal. Também a venda de artigos
vinculados à marca, como bonecos pixulecos, canecas e camisetas, tem os
recursos direcionados à entidade de Renan e seus irmãos, como constatou este
jornal ao fazer compras na página do movimento.
Questionado pelo EL PAÍS, o MBL diz que "não se deve
confundir" o Renovação Liberal com o grupo. "O MBL é uma associação
de fato, que congrega milhares de indivíduos de diversas localidades do país
identificados com causas de natureza política, social e econômica. Para não perder
sua essência de movimento cívico compreendido como reunião espontânea de
pessoas, optou-se por essa formatação. O Movimento Renovação Liberal presta
apoio formal ao MBL, por exemplo em relação à realização de eventos",
disse nesta sexta-feira, por e-mail. [Veja as respostas na íntegra no box
abaixo].
Ausência de prestação de contas
Tanto o MBL quanto a associação Renovação Liberal nunca
apresentaram ao público uma prestação de contas. O EL PAÍS questionou o grupo
sobre sua arrecadação e recebeu a seguinte resposta: "O MBL é o movimento
político mais perseguido do Brasil. E, portanto, como entidade privada, não
tornamos público o balanço financeiro, em respeito à privacidade e integridade
de nossos colaboradores, membros e doadores". Também não consta no
cartório em que a entidade está registrada atas de assembleias gerais ou
registro da instituição de um conselho fiscal, contrariando o que está previsto
no próprio estatuto do Renovação Liberal — e o que, em tese, prevê a natureza
de uma OSCIP.
Os chamados coordenadores nacionais do MBL já foram
impelidos em outras ocasiões a apresentar suas contas publicamente por órgãos
de imprensa, adversários políticos, simpatizantes e até partidos aliados, mas
nunca o fizeram. No dia 22 do mês passado, por exemplo, a Juventude do PSDB-SP
— importantes dirigentes deste partido contam com o apoio declarado do MBL para
as eleições de 2018 —, divulgou uma nota em que critica a falta de
transparência financeira do movimento: “Hoje, o MBL tem sua agenda esgotada, e
não se observa mais utilidade a esta organização que, aliás, nunca deixou clara
sua origem, seu funcionamento e, principalmente, seu método de financiamento.
(...) A Juventude do PSDB do Estado de São Paulo aproveita, ainda, para
convidar o Movimento Brasil Livre ao debate honesto e transparente sobre o seu
modo de financiamento, desafiando-o publicamente a disponibilizar prestação de
contas periódica do movimento”.
A nota acima foi divulgada após a notícia de que o MBL e
parlamentares jovens do PSDB estavam ensaiando uma aliança para as eleições de
2018. O EL PAÍS entrou em contato com Juventude paulista do PSDB, que, por meio
de sua assessoria de comunicação, confirmou que a nota publicada na imprensa
representa o posicionamento do órgão estadual até hoje. Já André Morais,
presidente da Juventude Nacional do PSDB, disse à reportagem que respeita a
posição da ala paulista da entidade, mas que ela não representa a opinião do
órgão nacional. “Temos mais semelhanças do que diferenças com o MBL”, afirmou
Morais.
“Agentes da CIA”
A falta de transparência para divulgar suas contas já gerou
uma série de teorias sobre quem patrocina o MBL. De testas de ferro da CIA a
fantoches dos Irmãos Koch, um grupo empresarial norte-americano que apoiou o
presidente Donald Trump nas últimas eleições. Os jovens do grupo não perderam
tempo de capitalizar sobre as teses que os cercam para atrair doadores. Os
interessados em colaborar com o MBL podem se filiar ao movimento de acordo com
diversas escalas de valores, que variam de 30 reais a 10.000 reais. Pelo valor
mais baixo, o doador se registra na categoria chamada Agente da CIA. Segundo
informa a página cadastral, este plano dá direito a acesso a fóruns de debates,
votações em questões internas e participação em sessões de videoconferências.
Por 100 reais, é possível tornar-se um doador Irmãos Koch.
Há ainda outras seis categorias, com nomes como Exterminador
de Pelegos, Imperialista Yankee e Privatiza Tudo. A filiação premium chama-se I
am the 1% e custa 10.000 por mês, teoricamente dando direito à participação em
congressos, votações e jantares. Apesar desse controle no número de filiações,
o MBL disse o seguinte para o EL PAÍS: "Estamos em 24 Estados da federação
e em centenas de municípios. Cada núcleo é independente, não sendo possível
afirmar quantos somos".
Além disso, os colaboradores que se filiam não possuem
qualquer direito sobre a entidade que controla as finanças do movimento.
Conforme consta no estatuto da Renovação Liberal, a entidade possui apenas
quatro associados, e somente eles têm direito a voto, cadeiras em assembleias
gerais, no conselho consultivo e no conselho fiscal. O Artigo 15 do estatuto
(na imagem) prevê que apenas a assembleia geral poderá aprovar a entrada de
novos membros. Mas isso jamais foi feito desde que a associação foi fundada,
conforme mostram os documentos referentes à entidade, entabulados no 8º
Cartório de Registro Civil de Pessoa Jurídica de São Paulo.
Aqueles que são chamados de coordenadores nacionais do MBL,
como Kim Kataguiri, Fernando Holiday e o próprio Renan Santos, não foram
eleitos por ninguém e jamais poderão ser substituídos em eventual votação dos
que supostamente se filiam ao movimento. Tampouco poderão os doadores do MBL
votar ou decidir sobre qualquer destinação do dinheiro que o movimento acumula,
nem mesmo aprovar suas contas. Tudo isso cabe apenas aos irmãos Santos e ao
quarto associado, Marcelo Carratú Vercelino, empresário morador de Vinhedo, no
interior paulista.
Problemas na Justiça
Os irmãos Santos e seus pais são alvos de pelo menos 125
processos na Justiça brasileira. Somente em nome de Renan Santos e das empresas
familiares de que é sócio, há 16 ações cíveis e mais 45 processos trabalhistas.
Ele nega ter agido de má fé em qualquer um desses casos, embora admita as
dívidas, fruto, segundo ele, das "dificuldades de ser empresário no
Brasil", conforme afirmou ao portal UOL. Em mais da metade das ações
judiciais a que respondem, o tempo para Renan e sua família se defender já
passou, tornando a dívida líquida, certa e exequível. Esses processos correram
à revelia, o que quer dizer que os acusados sequer se deram ao trabalho de
defender-se na Justiça. As cobranças estão sendo realizadas pelos tribunais,
mas não têm tido resultado, visto que oficiais de Justiça não encontram valores
nem nas contas das empresas, nem nas de seus proprietários. Há casos de
oficiais de Justiça que foram cobrar Renan e seus irmãos em endereços
anunciados como sedes das empresas, mas não encontraram ninguém.
AS RESPOSTAS DO MBL AO EL PAÍS
Pergunta. Qual a relação entre o MBL e a empresa Movimento
Renovação Liberal?
Resposta. Antes de tudo há um erro na pergunta: O Movimento
Renovação Liberal não é uma empresa, mas sim uma Associação Civil sem fins
lucrativos. A relação entre o Movimento Renovação Liberal e o Movimento Brasil
Livre precisa ser compreendida a partir da natureza jurídica de cada um deles.
Não se deve confundir um com o outro. O MBL é uma associação de fato, que
congrega milhares de indivíduos de diversas localidades do país identificados
com causas de natureza política, social e econômica. Para não perder sua
essência de movimento cívico compreendido como reunião espontânea de pessoas,
optou-se por essa formatação. O Movimento Renovação Liberal presta apoio formal
ao MBL, por exemplo em relação à realização de eventos, tendo inclusive
registrado perante o INPI e cedido o uso da marca MBL, evitando-se que pessoas
de má-fé pudessem se aproveitar de todo trabalho realizado por indivíduos que
lideram o movimento. Atualmente, os ataques sofridos pelo MBL apenas confirmam
o acerto da medida.
P. Quanto o MBL já arrecadou neste ano com a filiação de
novos membros e venda de produtos pelo site? E desde sua fundação?
R. O MBL é o movimento político mais perseguido do Brasil.
E, portanto, como entidade privada, não tornamos público o balanço financeiro,
em respeito à privacidade e integridade de nossos colaboradores, membros e
doadores.
P. Quantos membros o MBL possui em todo o Brasil? E só em
SP?
R. Estamos em 24 Estados da federação e em centenas de
municípios. Cada núcleo é independente, não sendo possível afirmar quantos
somos.
P. Vocês estão disputando na Justiça a propriedade do nome e
da logomarca do MBL. Por que não conseguiram a propriedade antes?
R. Essa questão é risível. A marca está devidamente
registrada e não há qualquer questionamento judicial nesse sentido. MBL tem cara
e sempre teve seus líderes, tais como Kim, Holiday e Renan. O resto é papo de
oportunista.
FE DE ERRORES
Em uma primeira versão desta reportagem, o EL PAÍS disse que
uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) deve prestar
contas publicamente todos os anos e ser avalizada pelo Ministério da Justiça.
Estas exigências, porém, não constam mais no ordenamento jurídico brasileiro. O
texto foi corrigido.