terça-feira, 30 de junho de 2020

O LARANJAL DE FLÁVIO BOLSONARO

Marcos Strecker, ISTOÉ

No pedido de prisão de Fabrício Queiroz, o Ministério Público do Rio aponta cinco vezes Flávio Bolsonaro como “líder de uma organização criminosa”. É uma menção devastadora para Jair Bolsonaro. Nunca a família de um presidente da República teve envolvimento com o crime organizado. A prisão de Queiroz é a ponta do iceberg do maior escândalo que envolve o presidente desde que tomou posse. Já o filho 01 é um problema desde a campanha eleitoral do pai, quando era investigado por um suposto esquema de rachadinhas na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O envolvimento com milícias cariocas, que veio à tona, são o dado mais explosivo.

As revelações surgiram com a Operação Furna da Onça, um desdobramento da Lava Jato, que apurava as movimentações suspeitas superiores a R$ 1,2 milhão de Queiroz, detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Como era assessor parlamentar de Flávio na Alerj, além de amigo de 40 anos de Jair Bolsonaro, Queiroz virou um problema e foi demitido no final de 2018 pelo primogênito do presidente, no mesmo dia em que o pai, então deputado federal, desligou a filha de Queiroz, Nathalia, que estava lotada no seu próprio gabinete na Câmara. Queiroz é apontado pelo MP como o operador financeiro do esquema das rachadinhas (desvio de parte do salário dos servidores), quando Flávio era deputado estadual,. É suspeito dos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa entre 2007 e 2018. Ao autorizar a sua prisão, o juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, apontou repasses de ex-assessores que superam R$ 2 milhões. Os saques totalizam quase R$ 3 milhões. As investigações que levaram à sua captura envolveram a quebra de sigilo de 103 pessoas e o compartilhamento de provas com a Operação Intocáveis, que mirava o miliciano Adriano da Nóbrega. A primeira ofensiva do MP cumpriu 24 mandados de buscas em dezembro de 2019. Foi a partir dessas buscas que se chegou ao esconderijo de Queiroz. A investigação sobre Flávio deve embasar as primeiras denúncias a serem apresentadas à Justiça, o que deve ocorrer nos próximos dias, envolvendo ainda outro deputado.

Financiamento da milícia

Para o MP, o esquema da rachadinha não visou apenas o benefício pessoal de Flávio. Serviu para financiar a milícia por meio de Queiroz e do ex-policial Adriano da Nóbrega, apontado como integrante do “núcleo executivo da organização criminosa”. Este é outro personagem que assombra Flávio. Ex-capitão do Bope, Adriano era o líder do grupo de milicianos e assassinos de aluguel Escritório do Crime, investigado pela participação na morte da vereadora Marielle Franco. Adriano e Queiroz se conheceram quando serviram juntos no 18º Batalhão da PM. Na época, Flávio homenageou Adriano com uma comenda da Alerj, quando este estava preso, acusado de homicídio. Seu papel no esquema de rachadinhas é grande. O MP estima que ele depositou R$ 400 mil para Queiroz. Sua mãe foi lotada no gabinete de Flávio, assim como a ex-mulher, Danielle Mendonça da Costa. As investigações apontam que eram funcionárias fantasmas. Adriano foi expulso da corporação em 2014. Foragido, foi morto em fevereiro, ao resistir à prisão na Bahia, num episódio nebuloso.

A ligação do gabinete de Flávio com milicianos não se resume a Adriano da Nóbrega. O MP afirma que Queiroz mantém influência sobre a milícia de Rio das Pedras, onde atuava Nóbrega. Além disso, a ISTOÉ revelou em fevereiro de 2019 que a ex-assessora de seu gabinete na Alerj Valdenice de Oliveira Meliga, a Val, era irmã dos milicianos Alan e Alex Rodrigues Oliveira. Ela era uma funcionária de confiança de Flávio, que delegou a ela a responsabilidade pelas contas de sua campanha para o Senado. A ISTOÉ obteve pelo menos dois cheques de Flávio assinados por ela na campanha. Além do envolvimento com milícias, Val revelou pistas sobre o uso de laranjas e expedientes na campanha de 2018 para fazer retornar ao PSL o dinheiro do fundo partidário. A legenda, na época, era comandada por Flávio Bolsonaro no Rio. A conexão com milicianos é vista como o “fundo do poço” por diretores da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que passou a enxergar fatos concretos para embasar um pedido de afastamento do presidente.

Outro personagem na mira do MP é o advogado Luis Gustavo Botto Maia, responsável pelas contas eleitorais da campanha de Flávio ao Senado. Ele teria participado do planejamento e fuga de Queiroz e passou a atuar “de forma criminosa” no esquema. De acordo com as investigações, Botto Maia e Queiroz atuaram para atrapalhar as investigações sobre folhas de ponto de funcionários da Alerj. Também teria participado de um plano de fuga de Queiroz e de sua mulher Márcia Oliveira de Aguiar, com a ajuda de Raimunda Veras Magalhães, mãe de Adriano, antes de sua morte. O advogado ainda teria se reunido em dezembro com o “Anjo” (codinome de Frederik Wassef, ex-defensor de Flávio e do pai) e com Queiroz, em Atibaia. Foragida, Márcia frequentou a casa de Atibaia, conforme confirmou a advogada Ana Flávia Rigamonti, que trabalhou com Wassef.

Para o MP, as atividades bancárias de Queiroz comprovam que transferia parte dos recursos ilícitos desviados da Alerj diretamente ao patrimônio familiar de Flávio, mediante depósitos e pagamentos de despesas pessoais. Os investigadores detectaram pelo menos 116 boletos bancários referentes ao custeio do plano de saúde e das mensalidades escolares das filhas dele e da sua esposa, Fernanda Bolsonaro, com dinheiro em espécie. A suspeita dos promotores é que despesas no valor total de R$162 mil podem ter sido quitadas por Queiroz. O MP conseguiu imagens do circuito interno de uma agência bancária dentro da Alerj que mostram o momento em que Queiroz pagou dois boletos escolares das filhas de Flávio em dinheiro vivo, em 2018. Não é o único caso em que há operações suspeitas feitas com dinheiro vivo. O Coaf identificou 48 depósitos de R$ 2 mil cada, num total de R$ 96 mil, nas contas de Flávio. As investigações concluíram ainda que houve indícios de lavagem de dinheiro em outros bens adquiridos pelo senador. É o caso do pagamento de R$ 31 mil, em espécie, a uma corretora de valores, feito para cobrir prejuízos financeiros referentes a investimentos que Flávio e Carlos Bolsonaro fizeram na Bolsa de Valores.
Também há outros indícios. O dinheiro supostamente também era lavado por meio de uma loja de chocolates num shopping do Rio — que recebia aportes maiores do que o faturamento — e aplicado em imóveis. Entre 2010 e 2017, o senador comprou 19 imóveis por R$ 9 milhões. Segundo os promotores, lucrou R$ 3 milhões em transações imobiliárias com suspeitas de “subfaturamento nas compras e superfaturamento nas vendas”. O MP analisou 37 transações imobiliárias do senador entre 2005 e 2018. As suspeitas sobre essas transações vão ser aprofundadas nas próximas etapas da investigação.

Flávio até agora conseguiu se livrar do único inquérito conduzido pela Polícia Federal no Rio de Janeiro, a apuração de falsidade ideológica para fins eleitorais, que se refere ao financiamento para a aquisição de um imóvel. O senador atribuiu valores distintos a um mesmo imóvel nas declarações de bens entregues à Justiça Eleitoral nas eleições de 2014 e 2016. A PF já pediu o seu arquivamento. O promotor eleitoral do caso avalizou o arquivamento. O juiz Itabaiana, que também conduz a apuração da “rachadinha” na 27ª Vara Criminal, submeteu o arquivamento à Câmara do MPF.

O filho 01 do presidente tenta se desvencilhar da imagem de Queiroz, sem sucesso. Após a revelação de um áudio em que Queiroz dá orientações sobre como conseguir nomeações em gabinetes no Congresso, em outubro de 2019, o senador afirmou que não tinha mais “nenhum tipo de contato” com o ex-assessor. Em maio, defendeu Queiroz e o chamou de um “cara correto e trabalhador”. Tentou bloquear as investigações do MP várias vezes. Em julho de 2018, conseguiu que o ministro Dias Toffoli, do STF, suspendesse todas as investigações no País que tinham como base dados compartilhados pelo Coaf sem autorização prévia da Justiça. A medida só foi revertida pelo plenário da corte em novembro, quando as investigações puderam ser retomadas. Em dezembro, o cerco começou a se fechar. O filho do presidente ainda aposta que o MP não vai conseguir apresentar sua denúncia. Conseguiu na quinta-feira, 25, um habeas corpus no Tribunal de Justiça do Rio que trava o processo, ainda que as provas tenham sido preservadas. Alegou ter direito ao foro privilegiado, pois os fatos investigados ocorreram quando era deputado estadual. É um alívio provisório. Ao mesmo tempo, mudou de tática. Depois da prisão de Queiroz e do afastamento do advogado Frederik Wassef, pediu para ser ouvido no inquérito.

Bolsonaro acuado

Jair Bolsonaro sustenta que não tem ligação com o escândalo do filho. Mas suas digitais estão por toda parte. Pouco antes de assumir, tentou explicar o repasse de R$ 24 mil de Queiroz para a conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Disse que o valor se referia ao pagamento de empréstimo não declarado de R$ 40 mil. Entre os supostos funcionários fantasma do gabinete do filho, dez eram da família Siqueira, de Resende, no Rio. Todos são parentes de Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher do presidente. A ligação com Queiroz é notória. O mandatário já admitiu que a condecoração a Adriano da Nóbrega na Alerj ocorreu a seu pedido. Naquela época “Adriano era um herói”, disse. Mas o presidente nega ter ligação com milicianos.

O presidente, seus familiares e apoiadores estão cada vez mais acuados pelas várias investigações no STF: de interferência na PF, o inquérito das Fake News e o inquérito sobre atos antidemocráticos. Com o avanço das investigações sobre Flávio, Bolsonaro moderou os ataques ao STF e tem evitado aparições públicas. Sentindo o risco para o seu mandato, tem procurado reforçar a aproximação com o Centrão. As investigações contra o filho também abalaram a confiança dos militares. Diante do que já se sabe e do que está por vir, sua situação se deteriora. Um dos últimos pilares para o seu apoio era o combate à corrupção, imagem que conseguiu sustentar enquanto Sergio Moro era ministro. Não mais. As suspeitas só aumentaram desde a descoberta do esquema de laranjas, ainda durante a campanha eleitoral. Os rolos de Flávio estão colocando à prova sua autoconfiança caudilhesca, amparada na família e nos amigos.

Bookmark and Share

QUASE DOUTOR, QUASE MINISTRO

Bernardo Mello Franco, O GLOBO

Depois de se revelar um quase doutor, Carlos Alberto Decotelli arrisca virar um quase ministro. O novo titular da Educação deveria tomar posse hoje. A cerimônia foi cancelada após a descoberta de que ele turbinou o próprio currículo.

O ministro foi anunciado na quinta-feira como uma escolha técnica. Em quatro dias, suas credenciais desabaram como peças de dominó. Ao contrário do que dizia, o professor não concluiu doutorado em Rosário, na Argentina. Tampouco fez pós-doutorado em Wuppertal, na Alemanha.

Para completar, surgiram indícios de que Decotelli cometeu plágio em sua dissertação de mestrado. A Fundação Getulio Vargas informou que vai investigar o caso, e o mestre prometeu “revisar” as passagens que copiou e colou no trabalho.

O professor não é o primeiro figurão do governo Bolsonaro a ostentar títulos imaginários. O ministro Ricardo Salles já inventou um mestrado em Yale, e a ministra Damares Alves fantasiou que era mestre em educação e direito constitucional no Brasil. No passado, a então presidenciável Dilma Rousseff também teve que remover dois diplomas do currículo.

Salles e Damares conseguiram se segurar, mas a situação de Decotelli é mais complicada que a deles. O histórico acadêmico era seu principal cartão de visitas, e ele foi escolhido para a pasta que supervisiona todo o ensino superior no país.

Além de desgastar a própria imagem, o professor criou um embaraço para seus padrinhos. Oficial da reserva da Marinha, Decotelli contou com o pistolão dos ministros militares. Ontem alguns generais já se penitenciavam pela indicação. A Abin também sai mal do episódio. Mais uma vez, ficou claro que o filtro para as nomeações do governo só funciona no papel.

Em países que levam a educação a sério, quem falseia o currículo não passa um dia nessa cadeira. No Brasil de Bolsonaro, até um Weintraub pode chegar lá. Por ora, o presidente deixou a posse em banho-maria. Diante dos antecessores, um ministro que mente ainda pode ser um mal menor.

Bookmark and Share

O SILÊNCIO DE JAIR

Carlos Andreazza, O GLOBO

Fato novo de verdade será se o recato atual de Jair Bolsonaro, ainda breve, tiver vindo para ficar. À luz da história de ascensão do bolsonarismo como fenômeno reacionário com ímpeto para a ruptura e ante a forma beligerante como esse projeto autocrático se expressou uma vez no poder: duvido. Porque a permanência do “Jairzinho Paz & Amor” equivaleria à inanição da base social — a sectária — que o sustentou até aqui, e que depende de conflitos constantes e da forja de inimigos artificiais para existir. A rigor: falo de um modo de existência por meio do qual a persona pública Bolsonaro existe.

Tomaria ele o risco de prescindir da parcela da sociedade — cerca de 15% — que lhe garante um piso de partida competitivo e que o tem apoiado de maneira irrestrita? E tomaria pelo quê?

Mais prudente seria supor que se trate de silêncio circunstancial condicionado por ocorrências recentes — um presidente de súbito, e brevemente, convertido à República sob a pressão das apurações policiais.

Refiro-me, antes de qualquer outro, ao caso Queiroz; que caso Queiroz não é — ao menos não prioritariamente. O caso Flávio Bolsonaro, pois; em cujo gabinete, sempre extensão do escritório do pai, operava-se o esquema de rachadinha em função do qual o ex-assessor foi preso — e que tem investigado se o dinheiro levantado pelo caixa paralelo haveria financiado empreendimentos imobiliários da milícia.

Esta me parece ser a principal razão para o silêncio. Bolsonaro sabe que perderia o apoio dos militares se ficasse comprovado um grau de conexão de sua família com milicianos para além das relações já conhecidas nas modalidades de homenagens legislativas e empregos a parentes. Não me parece que um general como Braga Netto, que comandou a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, topasse tocar — ainda que apaixonado pelo espírito milagreiro de um Pró-Brasil — o programa desenvolvimentista pós-pandemia com o filho do chefe denunciado por associação econômica a uma organização criminosa.

Milícia seria o limite para os fardados, mesmo que esses flexíveis ora no Planalto.

Outra explicação para o silêncio transitório seria a dupla de inquéritos que correm no Supremo sob relatoria de Alexandre de Moraes; notadamente aquele dito das Fake News. Proponho ao leitor considerar que essa investigação seja o agente, o marca-passo, que dita o ritmo das reações do presidente — o que, sim, coloca-o em posição passiva. Até quando? Por quanto mais?

Trabalho com esta tese: a de que Bolsonaro teria, momentaneamente, perdido o condão de dar as cartas e pautar o debate; daí por que o silêncio. Não creio ser arranjo duradouro tanto quanto acredito que o rompimento dessa autocontenção venha com barulho. Questão de tempo até que arrebente.

Não é quadra simples. À espera do próximo movimento de Moraes, Bolsonaro estaria acuado, condição explosiva para alguém de sua natureza, e ao mesmo tempo aliviado — talvez iludido — pela sessão do STF que declarou a constitucionalidade do inquérito ter-lhe também limitado o objeto, em seguida ao quê se poderia esperar diligências menos agressivas. Será?

Ele aguarda. É espera precária. Difícil apostar na duração do Bolsonaro passivo; sobretudo porque — retomo — a continuidade de seu silêncio, tanto mais se ligado à ideia de que se deixara tutelar, significaria fazer minguar o grupo militante que lhe dá chão qualquer que seja a crise, mas cuja fidelidade depende das guerras fabricadas contra o establishment.

Note-se que influentes vozes do bolsonarismo — como Filipe Martins, depois de meses de pouca exposição — têm se manifestado, desde dentro do Planalto e não sem alguma insatisfação, para cobrar senso prático da militância diante do que seriam os limites de ação do presidente. Há algum temor aí, materializado na chegada do outrora criminalizado centrão e na debacle de Weintraub; temor lastreado em hipótese formulada assim: ainda que improvável, dado que arriscadíssima, não se poderia descartar a possibilidade de que Bolsonaro — radicalizando a troca de pele — testasse o campo para abandonar sua base social mais antiga.

Ele talvez considere ter exemplos de sucesso para encorajá-lo. Perdeu Mandetta e Moro, com prejuízos na classe média; danos, no entanto, que conseguiria compensar — mantendo estável o patamar de aprovação — com os efeitos do auxílio emergencial aos mais pobres. Este progresso continua. Bolsonaro avança, inclusive no Nordeste, e talvez o cálculo projete que a implementação do Renda Brasil, perenizando a ajuda, e englobando e ampliando em muitos milhões a população coberta pelo Bolsa Família, dar-lhe-ia a gordura para precisar progressivamente menos da porção autoritária de seu populismo.

Duvido — repito. Mas: quem tem cargo tem medo antes; e por motivos outros.

Bookmark and Share

IMUNIDADE DURADOURA ?

Hélio Schwartsman, Folha de S.Paulo

Causou preocupação o estudo chinês publicado na Nature Medicine que mostrou que pacientes contaminados pelo vírus Sars-CoV-2 experimentaram uma significativa redução nos níveis de IgG e de anticorpos neutralizantes entre dois e três meses após a infecção. Em alguns casos (40% dos assintomáticos e 13% dos sintomáticos), a doença se tornou indetectável pelos testes sorológicos.

O estudo, que precisaria ser replicado, tem uma série de implicações, todas inquietantes. A mais óbvia é que precisamos desconfiar dos resultados de testes para anticorpos, seja nos inquéritos sorológicos, seja para a emissão dos chamados passaportes de imunidade. Aqui, a própria ideia de liberar a circulação de pessoas que apresentem testes positivos se torna duvidosa, já que não há segurança nem de que os exames retratem adequadamente quem já teve contato com o vírus nem de que a imunidade propiciada por uma infecção prévia seja duradoura.

É esse último ponto que incomoda. Se a imunidade é mesmo de curta duração, não poderemos contar com a imunidade de rebanho nem no futuro, e até a possibilidade de desenvolvermos vacinas eficazes pode ser colocada em questão.

E não é só. Todos os modelos que usamos para projetar o avanço da epidemia são do tipo SIR, isto é, presumem que as pessoas que se recuperam permaneçam nessa condição por um tempo razoável. Se eles estão errados, deveríamos adotar modelos SIS, que trariam cenários mais sombrios.

Devemos, então, nos desesperar? Ainda não. Como dizem os médicos, a clínica é soberana. O vírus circula há mais de seis meses na China e ainda não vimos levas de pacientes recuperados voltando a ficar doentes. Quando isso acontecer, teremos uma resposta precisa sobre a duração da imunidade. Por ora, o que dá para dizer é que o enigma da resistência à Covid-19 é mais complexo e deve incluir, além de anticorpos neutralizantes, a imunidade inata e a celular.

Bookmark and Share

DIÁRIO DA CRISE

Do Blog do Gabeira

Diário da Crise CI

Um dia depois de União Europeia barrar a entrada de brasileiros, a China decidiu suspender a compra de carne de três frigoríficos do país: JBS, Mafrisa e Minuano.

Dois desses frigoríficos estão no Rio Grande do Sul e um no Mato Grosso. A razão do veto chinês muito possivelmente é a existência de muitos trabalhadores atingidos pela Covid 19 nesses frigoríficos.

Interessante notar que isto não é um problema nacional. Trabalhadores em frigoríficos norte-americanos também sofreram muito. No auge da crise, alguns lugares foram fechados.

E é também necessário lembrar que uma nova cepa de gripe surgiu esta semana na China. Ela se parece que a H1N1 e apareceu também numa criação de porcos.

Muita gente já começou a discutir a maneira como se criam e matam os animais que alimentam o mundo. Eles são confinados em espaços mínimos, alguns entupidos de antibióticos e a sensação geral é de que são uma fonte permanente de epidemias.

Creio que esse tema deve ser colocado na agenda, quando se discutirem as mudanças provocadas pelo coronavírus.

A China já prometeu controlar o consumo de animais selvagens, vendidos nos mercados populares.

Mas as grandes criações e frigoríficos precisam passar por uma revisão. Há duas razões para isso: a segurança biológica, despertada pela epidemia de coronavírus e a mudança na consciência de parte da juventude.

A crueldade com os animais, ainda que sejam os que transformados em alimentos, começa a ser questionada.

Noticias sobre desemprego no Brasil mostram que 7,8 milhões de pessoas perderam seus postos de trabalho até maio, como resultado da pandemia.

Isso é apenas um dado da profunda crise econômica que enfrentamos. Por isso, acho estranho Bolsonaro dizer que o país vai para a frente com a harmonia entre os poderes.

Claro que a harmonia dos poderes é algo que ajuda. Mas de nada adianta a harmonia de poderes medíocres e impotentes diante de uma nova e desafiadora situação.

Belotelli finalmente caiu. Tenho um certo constrangimento em continuar falando disso. Ele foi desmentido em dois países, Argentina e Alemanha, acusado de plagiar 70 por cento do texto de sua tese e desmentido pela Fundação Getúlio Vargas.

Vamos deixá-lo em paz. Os comentaristas agora discutem se a ala ideológica vai superar a ala militar e apontar o novo ministro.

Governo cheio de alas, parece uma escola de samba. Como diz o José Simão, quem sabe a ala da baianas não encontra um nome?

Bookmark and Share

PRIORIDADES AOS RUMINANTES

José Casado, O GLOBO

O pandemônio na pandemia avançou: o governo Jair Bolsonaro decidiu dar prioridade aos ruminantes.

Na última quinta-feira, enquanto o país contava 55 mil humanos mortos pela da doença e por deficiências na rede hospitalar, o ministro Marcelo Álvaro Antônio (PSL-MG), do Turismo, resolveu investir na “revitalização” do Bodódromo de Petrolina (PE), onde ruminantes de chifres ocos podem ser degustados a céu aberto, em geral assados.

Pernambuco é dos estados mais afetados pelo vírus, com mais de 4,5 mil mortos. O governo, porém, achou mais urgente investir R$ 32 milhões em obras turísticas no reduto eleitoral dos herdeiros de Clementino de Souza Coelho (1885-1952), o “coronel” Quelê, construtor de um império político regional no início do século passado.

O prefeito beneficiário, Miguel de Souza Leão Coelho, é candidato à reeleição pelo MDB. Seu pai, Fernando Bezerra Coelho, é o atual chefe do clã. Foi prefeito três vezes, ministro de Dilma (Integração) e está sob investigação no Supremo por suspeita de corrupção (R$ 41 milhões) em contratos da Refinaria Abreu e Lima. Bolsonaro o escolheu como líder da sua “nova política” no Senado.

Em plena pandemia, o governo separou R$ 5 bilhões para o Ministério do Turismo. No início de maio, Bolsonaro editou uma Medida Provisória (nº 963) atribuindo urgência e relevância a esse crédito extraordinário, com a justificativa de emergência por causa da Covid-19.

É caso único de governo que confere às obras turísticas importância e urgência para enfrentar o novo coronavírus. O problema é que não há turismo. As pessoas não saem de casa porque temem a morte nas filas de hospitais públicos onde falta quase tudo, de respiradores a analgésicos. E 76% das empresas do setor estão fechando as portas, segundo o Sebrae, porque não têm acesso ao crédito prometido pelo governo.

Bolsonaro e o ministro do Turismo perceberam no vírus uma oportunidade para ajutório aos aliados nas eleições municipais. Prioridade aos ruminantes é o novo símbolo do pandemônio governamental na pandemia.

Bookmark and Share

A RAZÃO DE VOLTAR AO VELHO DEBATE

Míriam Leitão, O GLOBO

Os shows de Gilberto Gil e Milton Nascimento no fim de semana emprestaram uma trilha sonora sutil e linda ao clima de resistência ao autoritarismo. A pesquisa da “Folha de S.Paulo” trouxe o alento de que aumentou para 75% o apoio à democracia entre brasileiros. Novas manifestações da coalizão de políticos e de atores da sociedade civil surgiram. O Brasil parece ter recuado várias quadras no seu processo histórico, tendo que retomar o esforço de convencimento das virtudes da democracia e lembrar o que foi a ditadura. É necessário?

O vice-presidente Hamilton Mourão, em artigo publicado no “Estadão” há um mês, disse que lendo “colunas de opinião e os despachos de egrégias autoridades” fica a impressão de que “sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil”. Aqueles anos não foram dourados — chumbo é o elemento químico que melhor descreve o período — e a demografia derruba a tese.

Na faixa etária de 65 anos ou mais estão menos de 10% da população. Metade brasileiros tem até 33 anos, é mais jovem que a democracia. Quem tem hoje 43 anos nasceu em 1977, o ano da última luta dentro do Exército, quando a linha dura, encarnada pelo general Sílvio Frota, foi derrotada pelo ditador Ernesto Geisel. Daí para o final do governo militar foram ainda sete anos. O Brasil se livrou penosamente do arbítrio, construiu sua democracia com esforço e deveria estar no trabalho árduo de aperfeiçoá-la. Quem vê de forma idílica aquele período terrível está dentro do governo, e não fora dele. O debate voltou porque ficou inevitável diante da agenda do atual presidente da República.

A democracia tem maioria de defensores, segundo Datafolha, mas há números que assustam. Some-se a parcela dos que concordam que é preciso fechar o Supremo Tribunal Federal com os que discordam em parte ou concordam em parte e teremos 39% aceitando, total ou parcialmente, o fechamento do STF. Os que defendem o tribunal são 56%. Ainda que 62% atestem que o legado da ditadura foi ruim, 25% dizem que a ditadura deixou mais realizações positivas do que negativas. É preciso olhar também o aviso negativo dos números.

Na entrevista à “Época”, Mourão defende os que estão sendo investigados pelo Supremo no inquérito das fake news, dizendo que eles não ameaçam ninguém e que deveriam pagar uma cesta básica e pronto. Totalmente diferente foi o tom usado por ele para definir os que se opõem ao governo. No artigo do “Estadão”, de 3 de junho, chamou os manifestantes contra Bolsonaro de “baderneiros”, “umbilicalmente ligados ao extremismo internacional”. Disse que eles são “caso de polícia e não de política”. No dia seguinte, Bolsonaro os chamou de “terroristas”.

O problema não são apenas os que pedem intervenção militar. Os atos ficaram muito mais importantes quando o presidente participou e os estimulou a seguir adiante. Por que a manifestação pró-ditadura do domingo não teve o mesmo impacto? Porque o presidente não foi. Bolsonaro tem aproveitado os últimos fins de semana para sempre fazer viagens não anunciadas a algum destacamento militar. Primeiro, no entorno de Brasília, neste fim de semana, em Minas Gerais.

Como disse Fernando Gabeira no artigo de ontem neste jornal, a democracia atualmente é comida pelas bordas. É a maneira como o autoritarismo se instala e essa é uma república com muitas tentativas de intervenção militar. O país vem dizendo, de diversas formas, que percebeu o risco.

Gil em festa junina de aniversário cantou com a família clássicos nordestinos. Um, de Dominguinhos e Fausto Nilo, parecia feito agora: “Ô tempo duro no ambiente/ Ô tempo escuro na memória/ O tempo é quente/ E o dragão é voraz/ Vamos embora de repente/ Vamos embora sem demora/ Vamos pra frente que pra trás não dá mais.” Esse duplo dizer aprendeu-se naquele tempo. Milton, no domingo, cantou profundo como se faz em Minas: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”

Pode-se entender disso a pandemia que já matou tantos brasileiros, pode-se entender muita coisa. A delicadeza poética foi afinada na ditadura. A formação de frentes também foi aprendida naquela época. A resistência tem muitos caminhos. O projeto de Bolsonaro é enfraquecer a democracia. Seria estúpido não ver.

Bookmark and Share

DEMOCRACIA EM DISPUTA

Pablo Ortellado, Folha de S.Paulo

A última pesquisa Datafolha mostrou que o apoio à democracia disparou e atingiu o maior índice desde que começou a ser medido, em 1989. Setenta e cinco por cento apoiam hoje a democracia, ante 62% que a apoiavam em dezembro de 2019 e índices ainda menores no passado.

Uma interpretação possível, como a que constava na manchete da Folha de domingo (“Apoio à democracia bate recorde diante do risco Bolsonaro”), é a de que, reagindo às ameaças de ruptura institucional, os brasileiros reforçaram seu apoio à democracia. Mas será que essa é a interpretação mais plausível?

Antes da pesquisa de junho de 2020, o recorde de apoio à democracia havia sido registrado em outubro de 2018, às vésperas da eleição presidencial, quando a dúvida era se Bolsonaro venceria apenas com larga vantagem ou se elegeria logo no primeiro turno.

O que parecia explicar aquele recorde de apoio à democracia era o fato de um candidato outsider, sem alianças, sem financiamento de campanha e sem tempo de TV ter conseguido derrotar todo o establishment político. De fato, se deixássemos de lado que esse candidato fazia apologia da ditadura militar e defendia a tortura —como parece que fez seu eleitor—, aquele sucesso eleitoral mostrava mesmo um vigor da democracia brasileira e um triunfo da soberania popular.

O fenômeno de 2018 talvez seja a chave para entender o novo recorde de 2020. A leitura de que o crescente apoio à democracia é apenas reação contra o autoritarismo de Bolsonaro despreza o fato de que, se uma parte dos bolsonaristas faz apologia da ditadura, celebrando até mesmo o AI-5, uma parte maior adotou o léxico da democracia.

Estes últimos acreditam que é preciso proteger a democracia de uma ditadura do STF e dos governadores: do Supremo, porque extrapola seu papel ao se impor sobre o Executivo, e dos governadores, porque ameaçam prender os cidadãos sob o pretexto de um vírus cuja letalidade é exagerada. Para eles, seriam também antidemocráticas as tentativas de censura às redes sociais, sob o pretexto de combater notícias falsas, assim como a interferência de organismos internacionais, como a OMS, que ferem a soberania nacional.

Enquanto uma parte do bolsonarismo faz o discurso da ordem autoritária, outra parte concebe esse mesmo projeto como a expressão mais plena da democracia. Isso talvez explique o fato de que, na pesquisa Datafolha, quem avalia bem Bolsonaro apoia menos a democracia, mas só um pouco menos (68% contra 79% dos demais).

Tanto críticos como apoiadores de Bolsonaro celebram a democracia –mas atribuem sentidos muito diferentes a ela.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

Bookmark and Share

POUCO TEMPO

Merval Pereira, O GLOBO

As chances de o senador Flavio Bolsonaro conseguir que seu processo sobre a “rachadinha” continue na segunda instância no Rio de Janeiro são próximas de zero. O decano do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, defensor intransigente do fim do foro privilegiado, foi sorteado para relatar uma ação do partido Rede contra a decisão do TJ do Rio, – ele deve ficar também com a ação do Ministério Público do Rio -, mas qualquer dos ministros atuais tem a mesma posição, alguns até mais drásticas.

O ministro Marco Aurélio Mello, na reunião de maio de 2018 que decidiu, por unanimidade, restringir o foro privilegiado para deputados federais e senadores, parecia estar adivinhando a polêmica decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que devolveu o processo do senador Flavio Bolsonaro para a segunda instância do Poder Judiciário, contrariando a jurisprudência definida naquela sessão.

Ao apoiar o voto de relator Luis Roberto Barroso, divergiu quanto ao que chamou “perpetuação do foro”. Queria que ficasse explícito que, caso a autoridade deixe o cargo, a prerrogativa cessa e o processo-crime permanece, em definitivo, na primeira instância da Justiça.

Na semana passada, quando da decisão do TJ do Rio, Marco Aurelio reagiu indignado: “É o Brasil do faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso, mas eu entendo de outra forma e aí se toca. Cada cabeça, uma sentença”. Na mesma linha, depois de ajustar seu voto à maioria, o hoje presidente do Supremo Dias Toffoli propôs naquela ocasião estender a todas as autoridades que tenham prerrogativa de julgamento em instâncias superiores, inclusive ministros do Supremo e do Ministerio Público, a restrição ao foro privilegiado.

Foi acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes, que queria até a edição de uma súmula vinculante considerando inconstitucionais dispositivos de constituições estaduais que estendessem a prerrogativa de foro a autoridades em cargo similar ao dos parlamentares federais. Pouco tempo depois, o STF considerou inconstitucional uma decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão que estendia a diversas autoridades o foro privilegiado.

Naquele 3 de maio de 2018, o Supremo decidiu, de acordo com o relator, ministro Luis Roberto Barroso, que o foro por prerrogativa de função conferido aos deputados federais e senadores se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas.

Em seu voto, Celso de Mello declarou-se a favor do fim de todas as prerrogativas em matéria criminal, que é o caso de Flavio Bolsonaro, por entender que todos os cidadãos devem estar sujeitos à jurisdição comum de magistrados de primeira instância,. Já no início do julgamento do chamado mensalão ele havia defendido que a questão do foro privilegiado merecia uma nova discussão.

A nova interpretação da Constituição foi um marco na restrição do foro, fazendo uma atualização dos procedimentos adotados anteriormente, quando o foro privilegiado protegia para sempre seu detentor, mesmo quando ele já não exercia a função que lhe dava essa prerrogativa especial, como acontece hoje com o senador Bolsonaro.

A tentativa de escapar da primeira instância é tão evidente que sua defesa já tentara anteriormente mudar o foro para o Supremo, alegando que Flavio Bolsonaro agora fora eleito Senador. O STF recusou essa manobra. Essa dança das instâncias judiciais, aliás, era uma truque muito usado pelos parlamentares, que a cada nova eleição conseguiam mudar o foro para a primeira instância, levando a que o processo voltasse sempre à estaca zero, até a prescrição.

Por isso, a decisão do Supremo naquela sessão de 2018, por proposta do relator Luis Roberto Barroso, foi de que, na publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.

Era comum a renúncia do parlamentar quando o processo chegava na fase final, para que ele retornasse à primeira instância. Flavio Bolsonaro está fazendo o inverso, quer sair da primeira instância, onde as investigações já estão avançadas, para tentar anular todas as provas já obtidas nesses dois anos de investigações. Só que lhe resta pouco tempo.

Bookmark and Share

(DES) CONSTRUÇÃO

Ana Carla Abrão, O Estado de S.Paulo

Instituições fiscais são de difícil construção. Mas, mostra a nossa história, de fácil desconstrução. A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que neste ano completou exatos 20 anos, foi um dos grandes avanços institucionais que o Brasil viveu. Era um momento de grandes reformas e grandes conquistas, a maior delas a estabilidade monetária. O pilar fiscal era parte da consolidação dessa conquista. A LRF foi a sua tradução.

A elaboração do projeto de lei complementar veio na esteira da renegociação de dívidas de Estados e municípios pela União. Quebrados após anos de irresponsabilidade fiscal, com crescimento descontrolado do endividamento subnacional, o seu maior objetivo era o de aperfeiçoar a gestão fiscal do País nos três níveis da Federação. Além disso, o projeto de lei resgatava conceitos básicos da gestão orçamentária, como planejamento, transparência e equilíbrio das contas públicas, definindo diretrizes de execução fiscal e delimitando competências e responsabilidades dos agentes públicos.

Há nela o lado da receita, forçando a previsibilidade e o monitoramento da arrecadação própria e de transferências e a compatibilização com o arcabouço orçamentário público já constituído, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei do Orçamento Anual (LOA).

Há também os limites e critérios de endividamento, com uma clara conexão com os anos de descontrole dos subnacionais, amarrando Estados e municípios numa camisa de força que funcionou pelos dez anos subsequentes – até o governo Dilma sorrateiramente ir desatando os fechos, abrindo brechas nos critérios e limites, o que se traduziu no colapso de vários Estados como, por exemplo, o Rio de Janeiro. Houve aí uma primeira grande desconstrução, que deu origem a várias outras que a equipe do governo Temer tentou (e em boa parte conseguiu) reconstruir.

Mas é no lado da despesa pública, consequência de décadas de descontrole, que a LRF mais se detém. Com o objetivo de conter o aumento constante do gasto público, a LRF determina limites e define conceitos com o objetivo de garantir o equilíbrio fiscal e, consequentemente, a boa gestão pública. Há conceitos gerais, como a condicionante de apontamento de fonte de financiamento para a criação de nova despesa, e há limites objetivos, como aqueles relacionados à despesa de pessoal ou aos serviços de dívida (pagamento de juros e amortizações) em relação à receita corrente.

Mas é na dimensão das despesas de pessoal que a LRF se viu lenta e continuamente desconstruída ao longo dos anos. A lei define limites de comprometimento da receita corrente líquida com despesas de pessoal de 50%, 60% e 60% para a União, Estados e municípios, respectivamente. As sanções pelo descumprimento desse limite abrangem desde o impedimento de contratação, proibição de criação de novos cargos ou pagamento de horas extras para funcionários, até a interrupção de recebimento de transferências intergovernamentais.

Além dessas sanções, os chefes do Executivo que não cumprirem os limites da lei respondem por crime de responsabilidade fiscal e podem ficar inelegíveis. Medidas de correção devem ser tomadas para retornar aos limites em até dois quadrimestres após o descumprimento. Os instrumentos para isso são a demissão dos servidores comissionados e, sequencialmente, daqueles estáveis contratados a menos tempo. A redução de jornada de trabalho com proporcional redução de salários é também uma saída prevista na LRF. Certamente menos traumática que as anteriores, mas suspensa por liminar aguardando o julgamento que finalmente ocorreu. Infelizmente.

Na decisão da semana passada, o STF decidiu pela inconstitucionalidade de dois dispositivos da LRF e feriu de morte os conceitos de justiça social e de controle de gastos. Além de eliminar a possibilidade de uso da redução de jornada como forma de cortar despesas de pessoal, o STF também proibiu a redução dos orçamentos dos Poderes autônomos em caso de frustração de receita.

Na prática, as decisões da Suprema Corte conseguiram não só desconstruir – agora formalmente – a LRF, mas também o feito de aprofundar ainda mais nossa desigualdade social, consagrando a divisão do Brasil em castas. Há a casta de servidores públicos, que têm seus salários protegidos da crise econômica, enquanto a maioria agoniza. Mas há ainda, dentro dessa casta, um subconjunto mais protegido contra intempéries e mazelas econômicas e sociais do Brasil, que são os servidores dos Poderes autônomos.

As duas decisões são cruéis e injustas, em particular neste momento. Blindam-se alguns em detrimento de tantos e mantém-se Judiciário, Legislativo e Ministério Público com seus orçamentos – e consequentes penduricalhos – intactos.

Ao Executivo cabe agonizar e cortar na carne gastos que atingem orçamentos prioritários, como os de educação e de segurança pública.

Zelar pela Constituição – missão primeira e imprescindível do STF – também significa zelar pela justiça social e pela equidade. Ao desconstruir a LRF, os ministros preteriram essa importante missão em favor do corporativismo.

*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.

Bookmark and Share

AO VENCEDOR, AS CARNES !

Eliane Costa Ribeiro, OS DIVERGENTES

Uma notícia apresentada em jornal de ampla circulação nacional chamou-me a atenção, recentemente.

O texto relatava, com aparente naturalidade, a atual tendência detectada entre os residentes de condomínios no Brasil. Falava da alta crescente de brigas entre vizinhos e condôminos, notadamente em razão do tema da flexibilização da quarentena. Uma verdadeira dor de cabeça para síndicos e administradores.

Segundo a notícia, vizinhos estariam travando grandes discussões sobre a necessidade de liberação das áreas comuns em prédios, em especial os parquinhos infantis, piscinas e academias de musculação/ginástica. Um cidadão teria advogado a abertura das piscinas, porque o próprio seria um nadador profissional.  Enfim, mais um com histórico de atleta para a nossa lista de insanidades reveladas pela pandemia.

Mas o melhor mesmo foi o caso de uma moradora que, segundo a reportagem, teria arremessado um pedaço de carne pela janela, porque se encontrava insatisfeita com a não liberação da área de churrasqueira do prédio.

Li e reli a notícia. Mais de uma vez.  Não é possível, pensei.

Aquilo não poderia ser real.

Mas era.

Faz tempo que já tínhamos notado que a era da barbárie havia aportado por aqui. Não só aqui, mas principalmente aqui. Afinal, não foi na civilizada Austrália que duas mulheres se digladiaram no supermercado por causa de um pacotão de papel higiênico? Embora até hoje eu não tenha entendido o porquê de tal atitude.

Ritual soturno em frente ao Supremo Tribunal Federal

Mas aqui tem sido um festival. Dancinhas em torno de caixões, manifestações de encapuzados à la “Ku Klux Klan” em frente à Corte Suprema do país, pedidos de intervenção militar e reedição do AI 5. Terá tudo isso sido naturalizado e resumido, pictórica e simbolicamente, no arremesso de carne pela janela?

Seria esta a imagem síntese de nossa desgraça?

Alheios aos perigos e cuidados decorrentes da pandemia da covid-19, essas pessoas querem mesmo se arriscar aos perigos, expor seus filhos, seus parentes, idosos e sua própria integridade?

Teriam sido eles imunizados por alguma vacina que não foi disponibilizada a nós, simples mortais?

Seriam eles adeptos inconscientes do “humanitismo”, a filosofia singular de Quincas Borba, o famoso personagem imortalizado por Machado de Assis? Seu mentor intelectual, que deu nome ao romance homônimo de Machado, preconizava que a guerra seria a melhor forma de seleção dos mais aptos.

O célebre escritor jamais teria pensado que sua criação filosófica, baseada nas teorias de seleção natural, de Charles Darwin, tão em desuso, seria ressuscitada em sua terra natal, mais de um século depois, não mais como fina ironia, como tentativa de alcance do real pelo nonsense, mas como crua realidade.

Sim, a sobrevivência dos mais aptos é o mote da filosofia “humanitista”, assim como é o pensamento daqueles que rejeitam o isolamento social. Afinal, os mais velhos seriam os mais fracos e sucumbiriam naturalmente à doença, cumprindo, rigorosamente, a lógica do pensamento “humanitista”.

Em seu livro, Machado nos deixa uma pista de que a lógica da sobrevivência dos mais aptos não lhes garantirá a glória em vida. A História também foi implacável com teorias de tal gênero.

Da minha janela, ainda não assisti – felizmente – a nenhum torneio de arremesso de carne.

Qualquer manifestação de tal natureza me fará lembrar a famosa música de Eduardo Dusek, “Nostradamus”.  Ao acordar, pela manhã, e se deparar com a barbárie, o compositor reagiu no limite impreciso que existe sempre entre o delírio e a sanidade e chamou Carlota, a cozinheira morta, gritando:

“- Levanta, me faz um café, que o mundo acabou!!!!!! “

Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região)

Bookmark and Share

OS "INFLUENCERS" DE BOLSONARO

Andrea Jubé, Valor Econômico

Jair Bolsonaro é o terceiro chefe de governo mais popular do mundo nas redes sociais, atrás do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e do presidente Donald Trump, segundo levantamento da consultoria Quaest. Se Bolsonaro se impôs como “influencer”, com dezenas de milhões de seguidores – embora adversários questionem uso de robôs – a pergunta é: quem influencia Bolsonaro?

Em 2019, na primeira semana do governo, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ministro Augusto Heleno, disse em uma coletiva de imprensa que o instinto de Bolsonaro havia falhado no trágico dia do atentado à faca na campanha eleitoral.

“Ele tem um sentimento muito grande de quando pode e quando não pode, mas um dia esse sentimento falhou”, comentou Heleno. “Com o tempo passando, talvez podemos ter algum trabalho para contê-lo, porque é da personalidade dele”, completou o ministro, até então considerado o “guru” presidencial.

Apesar do sentimento de “quando pode e quando não pode” que Heleno atribuiu a Bolsonaro, esse instinto de sobrevivência vinha dando sinais de nova pane nos últimos meses, guiando o presidente rumo ao cadafalso. Se a primeira falha quase lhe custou a vida, o novo defeito poderia lhe custar o mandato.

Foi o que o presidente ouviu do ampliado grupo de conselheiros de seu entorno, que há pelo menos três meses insistiam que ele governasse um tom abaixo. Como Heleno havia advertido, foi trabalhoso conter o presidente. Uma das primeiras crises que o chefe do GSI teve de contornar foi o episódio do “golden shower” no Carnaval do ano passado.

O esforço de tutela da ala militar ficou evidente quando dois dias depois da desastrosa publicação do vídeo obsceno, Bolsonaro apareceu na estreia das “lives” das quintas-feiras espremido entre dois generais: um Heleno com o cenho franzido à esquerda, e o porta-voz, Otávio do Rêgo Barros, à direita.

Naquela época, Heleno, Rêgo Barros e o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas despontavam como conselheiros presidenciais no campo moderado, em contraponto aos filhos Eduardo e Carlos Bolsonaro, de perfil combativo.

Um ano depois, em meados de março, Bolsonaro fez os primeiros movimentos de aproximação do Centrão e inaugurou as conversas ao pé do ouvido com caciques como Gilberto Kassab (PSD) e Ciro Nogueira (PP). Em paralelo, a ala militar ganhou o reforço dos generais Walter Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).

Todos tentavam convencer Bolsonaro a suspender as declarações incendiárias na saída do Alvorada, e a não comparecer às manifestações antidemocráticas, a fim de arejar a cena política. Mas como Heleno havia alertado, esse comportamento é da “personalidade dele”.

O discurso da caçamba de uma caminhonete em abril, diante do Forte-Apache, no Dia do Soldado, selou o início do agravamento da crise. “Nós não queremos negociar nada (…) é o povo no poder”, bradou a apoiadores, que portavam faixas pela intervenção militar, AI-5 e fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Desde então, sucederam-se reveses ao governo – o impedimento da nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da Polícia Federal, a divulgação do vídeo da reunião ministerial, a ação policial no inquérito das “fake news” -, até que um apelo eloquente de conciliação veio do discurso de posse do ministro das Comunicações, Fábio Faria, que conclamou um “armistício patriótico”. Ironicamente, era a véspera da prisão de Fabrício Queiroz.

Vários conselheiros presidenciais reconhecem que a detenção de Queiroz foi o fator decisivo para que Bolsonaro aceitasse renunciar ao estilo bélico. Desde a prisão, o Bolsonaro das declarações inflamadas emudeceu. Sobre o revés, apenas lamentou na “live”: “parecia que prenderam o maior bandido da face da terra”.

Uma fonte que acompanhou de perto esses desdobramentos diz que Bolsonaro finalmente assimilou os conselhos porque percebeu que não tinha força para continuar com todo aquele radicalismo. Foram decisivos para a mudança de postura o receio de interrupção do mandato e a necessidade de blindar os filhos. “A preocupação com o futuro dos filhos é maior do que tudo que você possa imaginar”, ressaltou.

A escalada da crise nos últimos meses fez surgir no entorno presidencial grupos de conselheiros. Na ala jurídica – certamente a mais sensível – despontam como os mais ouvidos: o ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, o presidente do STF, Dias Toffoli, e o ministro do STF Gilmar Mendes.

Embora o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, tenha assessorado Toffoli, fontes ligadas a “Jorginho” (como é chamado pelo presidente) atribuem a ele a aproximação entre Bolsonaro e o presidente do STF.

Durante a transição, o então Subsecretário de Assuntos Jurídicos (SAJ) do governo Michel Temer, Gustavo do Vale Rocha, e Jorge Oliveira, que ia assumir o mesmo posto, se aproximaram. Estreitados os laços, Rocha aproximou Oliveira e Toffoli.

Na esfera política, o grupo mais influente é formado pelo ministro Fábio Faria, e pelos presidentes de partidos: Kassab, Ciro Nogueira, e Marcos Pereira, presidente do Republicanos. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), reforça esse núcleo.

O Republicanos de Marcos Pereira abriu as portas para Flávio e Carlos Bolsonaro, que estavam desconfortáveis em suas legendas, onde não poderiam esperar pela criação do Aliança pelo Brasil. Flávio deixou o PSL, e Carlos saiu do PSC do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, desafeto de Bolsonaro. Na última semana, Pereira ofereceu um jantar de afago a Flávio, que contou com a presença de Maia e Alcolumbre.

Fontes privilegiadas do meio jurídico afirmam que a relação de Bolsonaro com o futuro presidente do STF, Luiz Fux, não será a mesma construída com Toffoli, que tem estilo conciliador. Fux deverá frequentar menos o Planalto. O passado também vai pesar: Fux era amigo do ex-ministro Gustavo Bebbiano, morto em março de ataque cardíaco, e com quem Bolsonaro rompeu no começo do governo.

Bookmark and Share

A CRISE CONTINUA

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

A erosão do “robusto currículo” do professor Carlos Alberto Decotelli dá raiva, pena e, principalmente, medo da disputa reaberta no Planalto para fazer o novo ministro da Educação depois do inusitado Vélez Rodríguez, do inqualificável Abraham Weintraub e do constrangedor Decotelli. A ala militar, que indicou o doutor que não é doutor, está envergonhada. A ala ideológica, dos filhos do presidente, está esfregando as mãos, gulosa. E o Centrão, vai desperdiçar essa chance?

As chances de Decotelli permanecer ministro pareciam ter ruído junto com o seu currículo, já que a tese de mestrado na FGV é acusada de fraude, o título de doutor na Argentina não existe e o pós-doutorado na Alemanha foi uma um devaneio – não há pós-doutorado sem doutorado. O presidente Jair Bolsonaro, porém, decidiu prestigiar “o lastro acadêmico e sua experiência de gestor”, em detrimento de “problemas formais de currículo”. Por enquanto, Decotelli fica. Até quando?

O único item do currículo que fica em pé é o curso de Administração na Universidade Estadual do Rio (Uerj), o que poderia ser suficiente para a posse no MEC. O problema é inventar títulos e ser acusado de plágio, um vexame inominável para ele próprio e um constrangimento desnecessário para Bolsonaro, que, induzido ao erro, publicou nas redes sociais o currículo cheio de buracos. Assim como ele, a mídia também.

Bastaram os repórteres vasculharem daqui e dali para descobrir esses buracos. Por que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) não fez o seu trabalho de filtro? Ou displicência, ou a checagem de nomes é só ideológica, ou a decisão foi tão rápida pelo presidente que não deu tempo de consultar o GSI/Abin. A terceira hipótese faz mais sentido. Bolsonaro tinha pressa para indicar um nome, porque a “ala ideológica” – leia-se: os filhos e assessores fascinados pelo tal guru da Virgínia – não queria perder a vaga. A “ala militar” agiu rápido e o presidente assinou a nomeação.

O fato é que Bolsonaro não dá a mínima para o ministério e para a própria Educação, fundamentais em qualquer lugar do mundo e ainda mais no Brasil, onde o problema maior, o problema-mãe, é a desigualdade social. Como criar uma grande nação com uma parcela tão grande da população excluída, sem chance de um lugar ao sol. Como salvar a Educação, garantir o futuro das crianças pobres? Com Vélez, Weintraub, Decotelli, ideologias fajutas, currículos fraudulentos? E esse drama não acabou. Pobre MEC, pobre Educação, pobres crianças pobres.

E por que a “pena”, ao lado de raiva e medo no primeiro parágrafo? Decotelli é um professor negro, respeitado no meio acadêmico, com perfil técnico, e foi muito bem recebido depois de dois traumas sucessivos no MEC. Num momento de mobilizações nos Estados Unidos e no mundo democrático pela igualdade racial, ele seria o primeiro negro num governo que tem na Fundação Palmares Sergio Camargo, um negro que nega o racismo no Brasil. Logo, Decotelli tinha tudo a ver. Mas não resiste aos fatos.

O professor deu estranhas versões ontem ao presidente e à mídia, dizendo que o plágio na tese de mestrado na FGV foi porque “leu demais” e que sua tese de mestrado foi reprovada por ser “muito profunda”, o que remete a uma comparação injusta, mas que acaba surgindo, com o mentiroso advogado Frederick Wassef. Haja cara de pau!

O que fica é tristeza, desencanto, constrangimento, vergonha. Decotelli parecia uma grande referência e exemplo, mas foi virando uma grande decepção e constrangimento. O presidente anuncia que ele fica, mas, como tudo o que é ruim sempre pode piorar, não convém desprezar a hipótese de um terceiro “olavista” no nosso MEC.

Bookmark and Share

A PANDEMIA E A VIDA BANAL

Do Blog do Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

Números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, divulgados ontem pelo Ministério da Economia, revelam que 331.901 vagas de trabalho com carteira assinada foram fechadas em maio. No trimestre, foi 1,478 milhão de empregos formais, desde março. Reflexo da pandemia no Brasil, que registrou a primeira morte em 17 daquele mês. O agravante é o fato de que o coronavírus também destruiu atividades produtivas no mercado informal, que funcionavam como válvula de escape para 36 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.

Apenas uma parcela desses atingidos será capaz de se reinventar, porque economizou recursos para travessia, dispõe de conhecimentos ou condições de adquiri-los ou tem uma vocação inata para empreender e se adaptar às circunstâncias. Outra, a grande maioria, permanecerá dependendo da ajuda do governo para sobreviver, até que a economia volte a crescer numa escala capaz de absorvê-los, novamente, no mercado de trabalho, o que pode não acontecer. Infelizmente, nosso país tem uma tradição de descartar mão de obra e substituí-la nos ciclos de modernização, desde a abolição da escravatura.

É aqui que a relação entre o chamado “novo normal” e a “vida banal” se bifurcam. A superação das dificuldades pela via do esforço pessoal faz parte do imaginário da nossa sociedade, seja pelo serviço público, seja pela carreira profissional bem-sucedida no setor privado, ou por meio do empreendedorismo. Em época de confinamento, palestras e debates sobre esse assunto se multiplicam, com dicas e recomendações que funcionam como uma espécie de manual de sobrevivência na pandemia. Entretanto, a maioria dos que foram expelidos do mercado não terá a menor chance de encontrar uma saída imediata por essa porta. Uma dimensão da crise é o escancaramento da relação entre pobreza e desigualdades; a outra, como se sabe, são as ameaças à nossa democracia.

A propósito, o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um velho amigo, me fez observações instigantes sobre a conexão entre os efeitos da pandemia e a chamada “vida banal” no cotidiano das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. É aí que o drama econômico e social da pandemia está se desenrolando da forma mais iníqua. Sem a esfera pública e suas políticas, adverte, a cautela no consumo, o empreendedorismo e a filantropia não dão respostas à pobreza, porque não levam em conta as desigualdades. E ainda prescindem da democracia.

Bandeira velha
Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia? A nova agenda proposta pela crise sanitária e econômica, segundo Bocayuva, passa não apenas pela renda básica, pressupõe o cooperativismo, a solidariedade no uso dos bens públicos, o compartilhamento de conhecimento e das inovações tecnológicas, as mudanças de padrão energético, de preservação ambiental e de garantia dos direitos sociais, em bases democráticas. Por toda a economia de serviços, cultura, educação, pesquisa, ensino, infraestrutura. Como num rap, conexões, fluxos, trânsitos, controles, uso do espaço, planejamento e instalação de equipamentos urbanos, retomada das atividades sociais, a produção, o consumo, os resíduos, a reposição e a reciclagem, para ele, tudo precisa ser repensado, no contexto das grandes mudanças em curso, das relações humanas à pesquisa.

De certa forma, o que está acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro e periferias de São Paulo, em termos de busca de respostas e de autoproteção contra as iniquidades em que essas comunidades vivem, diante do avassalador avanço da pandemia, aponta para uma nova agenda, que não está sendo considerada. A velha agenda social-democrata e social-liberal para a pobreza, ou seja, a focalização dos gastos sociais nos mais pobres e os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por incrível que pareça, está sendo capturada eleitoralmente pelo presidente Jair Bolsonaro.

Primeiro, com a distribuição do auxílio emergencial de R$ 600 aprovado pelo Congresso, que já lhe garantiu uma mudança de base de apoio, conquistando uma parcela do eleitorado de baixa renda do Nordeste, que lhe era hostil e tinha saudades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É gente que não se identificava com Bolsonaro pela via da narrativa ideológica — centrada na família, na fé e na ordem —, mas foi atraída naturalmente, pelo interesse material imediato. Ou seja, a velha agenda da esquerda está tão superada que passou às mãos de Bolsonaro. Como nos governos anteriores, porém, isso não significa uma solução duradoura para a população de baixa renda, porque não garante a superação das desigualdades e, sem outras medidas, a médio prazo, estreita ainda mais os gargalos da economia.

Bookmark and Share

O FALSO MINISTRO DA EDUCAÇÃO

Editorial Folha de S.Paulo

Se finalmente acertou na estratégia, procurando pacificar a área de ensino ao demitir Abraham Weintraub da chefia do Ministério da Educação (MEC) e propor a retomada de diálogo com os secretários municipais e estaduais de Educação para evitar o colapso de um setor estratégico da administração pública em tempos de pandemia, o presidente Jair Bolsonaro errou na escolha de seu sucessor, Carlos Alberto Decotelli.

No mesmo dia em que foi anunciado por Bolsonaro como mestre, doutor e pós-doutor e de contar com experiência no setor por ter presidido o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), surgiram as primeiras suspeitas de que Decotelli teria maquiado seu currículo Lattes. O currículo Lattes é a plataforma do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico sobre a titulação acadêmica dos professores do País. As informações são autodeclaratórias e dispensam a apresentação de documentos. 

A primeira suspeita foi de que Decotelli não teria o título de doutor pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, o que foi confirmado no dia seguinte pelo reitor da instituição, Franco Bartollacci. Reagindo à nota, Decotelli apressou-se em revisar o currículo Lattes. Tentando remediar a situação, ele afirmou que, apesar de ter obtido os créditos para apresentar a tese de doutorado, não o fez por não ter recursos para continuar residindo na Argentina. Segundo o reitor, porém, Decotelli não fez a defesa oral da tese porque ela seria reprovada pelos examinadores. Agravando ainda mais as suspeitas com relação ao seu currículo, a segunda acusação foi de que a dissertação que Decotelli apresentou no término de seu curso de mestrado na Fundação Getúlio Vargas (FGV) seria um plágio. Submetida a um programa de informática elaborado para detectar plágio, verificou-se que trechos inteiros da dissertação são cópias - sem os devidos créditos - de relatórios de órgãos governamentais e de trabalhos acadêmicos, o que é tipificado como crime contra a propriedade intelectual pela legislação penal.

Além do plágio no mestrado e do falso doutorado, Decotelli incluiu no currículo Lattes a informação de que teria feito pós-doutorado na Universidade de Wuppertal, na Alemanha. E, como já ocorrera na Universidade Nacional de Rosário, o reitor da Universidade Wuppertal contestou a informação, afirmando que Decotelli passou três meses na Alemanha como pesquisador e que não adquiriu título algum nesse período. Na área administrativa, Decottelli também foi apontado como um dos responsáveis por um estranho edital de licitação publicado em 2019 pelo FNDE, para a compra de 1,3 milhão de laptops e notebooks para a rede pública de ensino. Ao examinar o edital a Controladoria-Geral da União descobriu que 350 colégios receberiam mais de um laptop por aluno e que a Escola Municipal Laura de Queiroz, de Minas Gerais, seria agraciada com 30.030 laptops para seus 255 estudantes. Decotelli deixou o cargo e o edital foi anulado.

Quando Bolsonaro anunciou Decotelli para o MEC, sua nomeação despertou a esperança de que finalmente o governo poderia definir com os Estados e municípios uma política comum para assegurar o futuro dos estudantes brasileiros, comprometido pelo avanço da covid-19. Cinco dias após sua indicação, porém, fica evidente que ele está longe de ser a pessoa certa para o cargo. Como pode transmitir algo construtivo quem não tem credibilidade nem autoridade moral? Como pode ser levado a sério um ministro da Educação que falsifica currículo? 

Além de informação especializada transmitida com rigor metodológico, educação pressupõe formação moral e intelectual - e isso implica caráter, preparo para cidadania e integridade. Entregar a quem não tem essas virtudes a responsabilidade para conduzir a formação das novas gerações não é apenas um erro político que pode ser tolerado em nome da pacificação na gestão do sistema educacional brasileiro. Acima de tudo, é um crime contra as novas gerações.

Bookmark and Share

100 ANOS DE SOLIDÃO

Carlos José Marques, ISTOÉ

Com o perdão e a licença poética do magnífico Gabriel García Márquez, aqui o enunciado é para classificar esse longo e — aos olhos de todos — interminável interregno. Lá se foram mais de três meses e o isolamento encerra lições que devem, pelo bem ou pelo mal, transformar a humanidade e a maneira como vivemos em sociedade. Em todas as direções. Econômica, política, de relações interpessoais, profissionais, de conduta emocional e de visão de mundo. Nesses tempos de absoluto confinamento para alguns, de descaso com as medidas para outros, de riscos para quem não tem qualquer opção que não a de sair, vivemos o imponderável, o medo do desconhecido e da morte propriamente dita. Diante da ameaça sorrateira as máscaras caíram. De diversos personagens. Talvez de todos.

Haters dissimulados mostraram a autêntica face e encontraram o ambiente ideal para destilar o ódio que acalentavam. Os desprovidos de compaixão assumiram como de fato não reservam qualquer interesse pelo próximo. São eles em primeiro lugar. Seus negócios, sua realidade, a sobrevivência pessoal que importam. Quanto aos outros? Que simplesmente…morram. É da vida. “Faz parte!”, disse aquele líder bananeiro de atitudes tresloucadas.

Governantes do fim do mundo expuseram a carapuça mais sombria e abominável da ausência de caráter e capacidade de liderança. Nesse caso, nenhum deles superou em aberrações e irresponsabilidade o mandatário brasileiro Jair Messias Bolsonaro, um escroque de maldade e intolerância que maquinou afrontas à segurança nacional e crimes de responsabilidade em profusão. Tripudiou do drama alheio andando de jet ski, a cavalo e em aglomerações provocativas que escandalizaram o mundo. Ignorou qualquer gesto de consolo aos familiares destroçados pela doença, enquanto sugeria fazer um bom churrasco, com três mil participantes, para esquecer tudo e zombar das restrições. Vangloriou-se da condição de “atleta” que não cede a uma “gripezinha”. Foi o insensível em estado puro. Nesses 100 dias de solidão, quase 60 mil morreram, mais de um milhão caíram de cama vitimados por uma pandemia implacável. E isso apenas no Brasil, que exibe recordes impensáveis e vergonhosos — boa parte decorrente da imprudência, irresponsabilidade, politicagem tacanha de gestores que não entendem o autêntico sentido da palavra governar. Brasileiros estão aprendendo na marra, e de forma dolorida, o quanto custa e o tamanho do problema que é fazer uma escolha eleitoral errada. O contemplado, em circunstâncias limite, sai movido estritamente pelo propósito da sobrevida nas urnas, abrindo caminhos ideologicamente nefastos e socialmente injustos. Messias Bolsonaro, no hiato dos últimos 100 dias, para além da coleção de peripécias, abusos e desvios de conduta, desde que assumiu há mais de um ano, viu seu mandato se esfarelar. Praticamente virar pó, diante de tantas perversões. No momento encontra-se envolto nas investigações do laranjal do filho zero um, de seus comparsas e do esquema de rachadinha, que já levaram para a cadeia o dileto amigo de 40 anos de relação, Fabrício Queiroz, e colocaram em suspeição o advogado da família, tido como um faz tudo da casa. Abatido, o presidente ainda está precisando lidar com acusações de ter interferido na Polícia Federal e, suprema humilhação, tendo de depor para explicar o inexplicável. Os empresários amigos e políticos aliados foram alvos de batidas policiais e de averiguações em inquéritos que levantam esquemas de financiamento ilegal de fake news e de mobilizações antidemocráticas de ataques aos poderes constituídos. Para completar, o Planalto ainda se enfronha numa mal explicada operação de fuga do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub que saiu às pressas do Brasil, com passaporte diplomático que não poderia usar, para evitar ser pego para julgamento no STF. É uma pororoca de maus presságios que cercam Bolsonaro e um governo que submerge, isolado, solitário, há bem mais de 100 dias. Como tábua de salvação, mistura-se ao que existe de pior na política, o cordão de encalacrados do Centrão que pede verbas e postos em troca de sustentação. Bolsonaro desce ao poço e se pendura na mediocridade administrativa. Não quer que sejam votadas as reformas, administrativa e tributária, para evitar dissabores com eleitores. Disse isso de viva voz. Alegou ser um “desgaste muito grande” o engajamento nessas pautas que ajudariam no desenvolvimento do País. Ele não está preocupado com isso. É um desinteressado das reformas, do combate à corrupção, da luta em prol do bem comum. Na solidão do poder, governa para ele, para os seus, para os apaniguados. A bem mais de 100 dias é assim, em um interregno que não parece mesmo ter fim.

Bookmark and Share

segunda-feira, 29 de junho de 2020

DIREITA VOLVER

Cacá Diegues, O GLOBO

Em política, quando não se tem um projeto claro e preciso para o futuro, o ativista rodopia em torno de um vazio que ele mesmo não consegue admitir. Nada mais angustiante para o ativista do que não poder dizer pelo que luta, para o que serve seu empenho. Aos olhos dele, o conformista é um aliado da desgraça, o esperto finge que não a vê, o homem de ação tenta vencê-la a qualquer preço. E o combatente deve contornar o infortúnio sem descanso, até encontrar o buraco por onde abordar o verdadeiro sentido das coisas, no momento oportuno, avançando mais um passo, mesmo que mínimo, em direção ao paraíso.

Os Bolsonaro têm um projeto. Eles são responsáveis pelo primeiro projeto clara e inapelavelmente de direita neste país. O presidente está à frente de alguma coisa que, mesmo que nem sempre o confesse, corresponde a uma transformação radical de nossas estruturas públicas e até psíquicas. Não se trata de uma mudança, trata-se de uma transformação.

Nunca vi, no Brasil, defesa tão clara da direita como essa dos Bolsonaro e seus aliados. E, para glória deles, nunca vi tanta gente, importante ou não, botando a cabeça de fora para anunciar-se, desde sempre ou convencida por eles, de direita. É como se a chegada de pastores inesperados encontrasse um bando de ovelhas malocadas, adeptos mudos de ideias secretas, novos convertidos ou libertos de longo silêncio culpado. Todos doidos para anunciar o que, até aqui, não tinham coragem de confessar, por falta de convicção e apoio público. Os mais radicais se diziam em luta contra a esquerda corrupta e, claro, contra os comunistas de sempre. Foi essa a desculpa, às vezes sincera, daqueles que fizeram o golpe de estado de 1964.

Hoje, graças aos Bolsonaro, os que se declaram de direita se multiplicam, reforçando o campo ideológico e popular ao qual, antes, não tinham coragem de aderir sem meias palavras. A direita agora tem um projeto e um plano para executá-lo. Mesmo que, de vez em quando, necessite recuar, trocando a imposição do regime por avanços pontuais e discretos, em nome de uma democracia da qual ainda precisa. E, como estamos mesmo num regime democrático e não convém dividir o país (mais do que ele já está dividido), a direita, às vezes, aceita recuar da imposição de suas ideias, para se fortalecer e voltar mais tarde com os mesmos desmandos.

O surgimento de uma direita concebida com certos valores e inteligência pode colaborar com o crescimento do espaço de justa representação política, fortalecendo e enriquecendo as alternativas de uma democracia possível. Ela pode ser até bem-vinda. Mas, no mundo inteiro, essa nova direita ressurge imperial, populista, autoritária e eufórica com suas vitórias nos Estados Unidos, na Itália, na Hungria, no Reino Unido, na Índia, em Israel, na América Latina e no mundo árabe. Além de submissa a circunstâncias incontroláveis em países da África e sobretudo da Ásia. É como se, através de eleições democráticas, a direita estivesse recuperando prestígio junto a povos cansados de tanta desgraça e promessas vãs. Como se lhes faltasse apenas essa opção para experimentar finalmente um pouco de felicidade social.

Quem produz os eleitores medianos da direita, bem longe das chamadas classes desfavorecidas, é o próprio capitalismo financeiro ocidental. Zonzo desde que comemorou o fim da História com a queda do muro de Berlim, e sem ter mais a quem enfrentar como alternativa a si próprio, ele dormiu nos louros e não se importou com o número cada vez maior de cidadãos médios, que não vivem apenas do consumo básico. Um fenômeno social que gerou grossa barriga obesa bem no meio da clássica pirâmide social.

Os populismos de direita, pelo mundo afora, foram beneficiados por tecnologias novas, cujo papel eles foram mais rápidos em descobrir e usar. Seus líderes vêm sendo eleitos graças à internet e, sobretudo, graças à difusão de mentiras organizadas através dela, embolando o meio de campo da politica tradicional. Não estou me referindo apenas às famosas fake news, mas também à forma com que aquelas forças organizam suas campanhas eleitorais. Como disse Steve Bannon, o ideólogo máximo desses novos procedimentos, fato ou ideia difundidos através da internet podem chegar apenas aos eleitores para os quais foram gerados, sem serem checados pela imprensa, a televisão ou o público em geral. Segundo eles, a eficiência dessa milícia digital é protegida pelo anonimato das redes e pelo princípio da liberdade de expressão, base de toda democracia.

A sorte dos democratas é que esses métodos servem para eleger um candidato, mas não garantem um bom governo. Entre os vitoriosos, nesses 20 anos do século XXI, os únicos políticos e partidos que mantêm seu poder sobre a sociedade são aqueles que usam a força para controlar as oposições e a própria população. A questão não se coloca mais entre esquerda e direita, no fundo meio parecidas, resquícios do iluminismo racionalista do século XVIII. Mas na escolha decisiva entre Civilização e Barbárie, onde só existe a trajetória que faremos no caminho que escolhermos, com esperança em nossa felicidade.

Bookmark and Share

A DECLINANTE REPUTAÇÃO DO BRASIL

Hussein Kalout, O Estado de S.Paulo

Já não é segredo que a imagem do Brasil na Europa, América LatinaEstados Unidos e África sofre de crescente desprestígio – não carece aqui mencionar China e Ásia. Os governistas e seus apoiadores mais fanáticos consideram injusto atribuir tal retrato à imagem do país. Culpam a mídia e os adversários políticos “desprovidos de patriotismo”. Toda essa balela se pronuncia sem que se ofereça um único argumento verossímil. 

Da destruição do meio ambiente à negligência no apropriado combate aos efeitos da pandemia da covid-19, passando pelos retrocessos no campo dos direitos fundamentais, a culpa parece ser de todos menos de quem possui a primazia de propor as soluções e para tal foi eleito.

Em mundo competitivo e comandado pela tecnologia, onde o acesso à informação é dinâmico e se dá em tempo real, já não é mais possível para tapar o sol com a peneira e adotar narrativas insustentáveis. Governos estrangeiros, fundos de investimentos, empresas privadas de mídia e organizações de direitos civis atualmente aquilatam a reputação de um país com base em quatro fatores fundamentais: 1) estabilidade política; 2) solidez econômica; 3) arcabouço das garantias e dos direitos; e 4) compromisso com a proteção do meio ambiente e da biodiversidade.

Lamentavelmente, o Brasil não vai bem em nenhuma dessas quatro vertentes. A degradação da imagem do país é, em termos simples, resultado da incapacidade do governo de administrar as crises surgidas – afora as que são geradas de forma endógena por

autoridades boquirrotas que têm mais compromisso com sua claque de extremistas do que com a nação.

No primeiro quesito, estabilidade política, bom, os fatos falam por si. À parte o imobilismo na relação com o Congresso Nacional, o governo não consegue se manter afastado de embates polêmicos com a classe política e com o Poder Judiciário. E isso para não trazer à luz a confrontação com a mídia e com a sociedade civil. A arte de bem governar passa longe do Palácio do Planalto. A confiança fica abalada quando o governo procura dotar minoria para bloquear potencial processo de impeachment, entregando os aneis e os dedos, em vez de buscar organizar maioria para fazer avançar seus projetos no parlamento.

No que diz respeito à robustez econômica, o governo vendeu a si expectativa exageradamente superior aos resultados coletados. O PIB de 2019 foi inferior ao de 2018. A reforma da previdência não catapultou as demais reformas. O capital externo e os investimentos esperados seguem à espreita. Investidores, empresas e governos estrangeiros sabem que o Poder Executivo está sem alavancagem no Congresso.

Estão cientes também de que quem mobilizou e salvou a agenda econômica foi Rodrigo Maia. As demais reformas, como a tributária e administrativa, ainda não fizeram a travessia do Ministério da Economia ao Congresso nacional. O que tramita em matéria de reforma nas duas casas legislativas são projetos dos próprios congressistas. Achar que taxa de juros baixa ou discurso de confiança bastam para que a economia deslanche não passa de autoilusão. O cenário econômico, já nebuloso antes da pandemia, agora ficou mais incerto.

No tocante às garantias e aos direitos, não fica bem para país que pretende se desenvolver e que tem o enorme desafio de reduzir as desigualdades lançar-se à inépcia de bradar nostalgicamente pelo AI-5 ou advogar o armamento da população. Quando a imprudência chega a esse nível, é a segurança jurídica que passa a estar ameaçada.

Afasta-se do cenário em que se casam desejo de investir e ambiente político estável – e, com isso, vai minguando a simpatia de países amigos. Ademais, quando também se tenta, por exemplo, manipular a autonomia universitária e minar a política de cotas por meio de gambiarras burocráticas, atinge-se a democracia e o Estado de Direito, que se tornam mais opacos.

Capital tem sido palco de protestos contra e a favor o governo há semanas  Foto: Adriano Machado/Reuters

No mundo atual, o compromisso de proteção do meio ambiente tornou-se medida inescapável da qualidade da governança de um país, fundamental para que os interesses nacionais se legitimem com o atestado de “boa governança”. Quando o objetivo declarado

passa a ser a mudança das regras do jogo e o afrouxamento da fiscalização (entenda-se: “passar a boiada”), não há narrativa capaz de suavizar seus efeitos deletérios. A política é feita de ações e impressões. Foi o Brasil que desistiu de sediar a Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP25).

O país abriu mão de margem para influenciar as narrativas e o processo decisório na governança de tema ambiental central e, de quebra, delegou sua liderança a terceiros. Foi também o Brasil que ameaçou sair do Acordo de Paris. Quando malogrou a tentativa de macaquear Trump, o governo recuou, ficando com todo o passivo diplomático. Dito isso, ninguém é mais responsável pelo declínio acachapante da imagem do Brasil no mundo do que os atuais donos do poder.

Instituições de mídia como The Economist e Financial Times são insuspeitos da pecha de “comunista”. As publicações nas páginas desses meios são, no fundo, o reflexo daquilo que pensa o leitor empresário, financista e acadêmico. Em verdade, a imagem que se projeta hoje é a de que o Brasil está acéfalo e padece de governança que se possa considerar ao menos regular. Se o governo considera injusta a imagem que atribui ao país no mundo, é preciso então iniciar a mudança de rota. Seria bom começo trabalhar para restaurar a força dos quatro vetores que condicionam a reputação do país.

HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Bookmark and Share