Da
ISTOÉ
A obra do pensador Nicolau Maquiavel, nascido em Florença,
na Itália, em 1469, ainda é vista como uma espécie de Bíblia política, que se
adapta muito bem aos tempos atuais. Mesmo assim, determinados setores da
política brasileira parecem ter se esquecido de um de seus clássicos, “O
Príncipe”, que ensina, em lições bem didáticas, que “o líder precisa ser temido
ou querido”. E isso, mais do que nunca, vale para o Brasil. Maquiavel afirma
que um grande governante necessita ainda ser dotado de virtù e fortuna, ou,
melhor, qualidades e sorte. Obviamente, falar em sorte em política atualmente é
ser um tanto ingênuo, mas o fato é que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) tem,
nas últimas semanas, brincado com a própria sorte. Agride quase que diariamente
os deputados, enxovalha-os, maltrata-os, afirmando que eles são responsáveis
por todos os males do Brasil, mas ao mesmo tempo depende deles visceralmente
para aprovar a Reforma da Previdência. Sem ela, seu governo torna-se
ingovernável, como ele mesmo deduziu, depois de ler um artigo do engenheiro
Paulo Portinho, reproduzido em suas redes sociais.
E é justamente nesse cenário de terra arrasada em que a
classe política sente-se como mulher de malandro, que apanha todos os dias e, à
noite, o companheiro ainda quer que ela deite-se com ele, que o Congresso deixa
claro que cansou de ser agredido. E agora mostra sua força. Diversos deputados
defendem nos bastidores que a Câmara e o Senado trabalhem por uma agenda
própria, ignorando o presidente da República e resolvendo os problemas crônicos
do País. Como o governo não demonstra coesão em sua base e nem vontade política
para dinamizar a aprovação da Reforma da Previdência com as correções que os
deputados desejam fazer, os líderes dos principais partidos da Câmara,
especialmente os do “centrão”, reuniram-se na semana passada na casa do
deputado Rodrigo Maia, presidente da Casa, e decidiram redigir um texto
substitutivo para a proposta do governo. “Será a reforma da reforma”, disse um
deputado que participou do encontro. “Não será um texto alternativo, pois a
estrutura do projeto do ministro Paulo Guedes permanecerá, mas vamos
emendá-lo”, explicou o deputado Marcelo Ramos (PR-AM), presidente da Comissão
Especial da Reforma da Previdência, e que lidera esse movimento para fazer as
mudanças que precisam ser feitas, à revelia do presidente. Num País em que a estrutura
política é presidencialista, isso pode até soar mal, mas não tem nada de
golpista. O que há por trás de tudo é que os deputados, que realmente têm a
responsabilidade por aprovar as reformas que salvarão o Brasil do desastre, não
querem mais ser coadjuvantes de um presidente que criminaliza a política o
tempo todo, embora ela lhe seja indispensável para que seu governo não
naufrague. O feitiço virou-se contra o feiticeiro.
A indignação coletiva de deputados e senadores tem aumentado
a cada semana e a cada post do presidente pelas redes sociais. Integrantes de
partidos do centrão, como o PR, o PP, o DEM, entre outros, reclamam da forma
como Bolsonaro refere-se ao Congresso em suas declarações públicas. “Parece que
ele sempre fala com um monte de ladrões”, indigna-se um parlamentar do PP. O
problema é que por trás das declarações atabalhoadas de Bolsonaro está, no
mínimo, a falta de habilidade política para lidar com um Congresso que tem o
seu ritmo próprio de trabalhar. E não se está falando aqui do clássico toma lá
dá cá. Por mais que o presidente diga que os deputados só pensam em cargos,
verbas ou em negociações pouco republicanas, até agora o chefe do Executivo
ainda não apresentou um único caso concreto de um parlamentar que tentou
extorqui-lo.
Nos bastidores do Congresso, o presidente da Câmara, Rodrigo
Maia (DEM-RJ), tem defendido que a Casa tome as rédeas da atual crise política
sob pena de o País caminhar para o completo caos administrativo e financeiro. O
problema é que esse protagonismo de Maia alvoroçou os bolsonaristas mais
radicais, como o assessor da presidência Filipe G. Martins e o filho 02 do
presidente, o vereador Carlos, que enxergam nesse tipo de postura uma forma de
usurpar o poder das mãos do presidente. A ala militar do governo também vê a
movimentação de Maia com ressalvas, mas admite, por outro lado, que não é
momento para se criar novas intrigas e, sim, de somar forças.
O fato é que o Congresso está disposto a simplesmente
ignorar o presidente a partir de agora, conforme ISTOÉ apurou junto a líderes
partidários. A intenção é tocar uma agenda econômica própria, para que o País
volte a crescer. Afinal, em tão pouco tempo o presidente conseguiu mobilizar
milhares de pessoas contra ele, por causa dos cortes na educação, agregando nas
ruas a mambembe oposição e levando ao descrédito empresários que preferem jogar
seus recursos no mercado do dólar, ao invés de investirem na produção. Os
deputados querem ignorar também sua pauta de costumes, deixando em banho-maria
os projetos para a área de segurança pública, principalmente os que ampliam o
direito de porte e posse de armas. Bolsonaro assinou um decreto no último dia
7, estendendo o direito até para caminhoneiros, políticos e jornalistas andarem
armados, mas a Câmara ameaçou rejeitá-lo, por considerá-lo inconstitucional.
Com o protesto da sociedade e de 14 governadores, Bolsonaro voltou atrás na
quarta-feira 22 e fez mudanças no projeto original, que permitia, entre outras
coisas, que um cidadão comum comprasse armas pesadas, como fuzil. A aliados,
Maia tem sinalizado que caberá ao Congresso a vanguarda das reformas que o
Brasil de fato precisa. “Se o governo não ajuda o Brasil, nós vamos ajudar”,
disse ele.
Os líderes do “centrão” se reuniram na casa de Rodrigo Maia
e decidiram apresentar um projeto substitutivo para a Reforma da Previdência
Nova derrota: Coaf na Economia
A primeira ação efetiva desse “parlamentarismo branco” está
na Medida Provisória (MP) 870 que reorganizou a estrutura ministerial do Poder
Executivo, diminuindo o número de pastas em relação ao governo anterior e
redistribuindo atribuições. Durante o governo Temer, eram 29 pastas. Bolsonaro
reduziu essa estrutura para 22. Os deputados ameaçaram não votar essa MP, que
caducaria no próximo dia 3, caso não fosse apreciada pelos parlamentares.
Obrigatoriamente, o governo Bolsonaro seria forçado a conviver com os 29
ministérios. Seria o caos e uma derrota espetacular. Além disso, o governo
desejava que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) fosse
alocado no Ministério da Justiça, do ministro Sergio Moro, pois esse órgão
seria instrumento indispensável no combate à corrupção. Os deputados mostraram
mais uma vez que eles resolveram mesmo dar a volta por cima. Na quarta-feira,
aprovaram a manutenção dos 22 ministérios, mas rejeitaram a transferência do
Coaf para a Justiça. O órgão continuará no Ministério da Economia. Foi uma
grande derrota do governo e, especialmente, do ministro Sergio Moro. A Câmara,
agora empoderada, até cedeu na recriação do Ministério das Cidades, como
desejava o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), mas comemorou a
fragilização de Moro. Os parlamentares consideram-no “inimigo”, uma vez que ele
deseja criminalizar o caixa dois, que atinge meio Congresso. Os deputados
também decidiram tirar a Funai de Damares Alves, passando-a para a Justiça. Uma
no cravo e outra na ferradura. Mas, a medida ainda vai ao Senado, para
posterior sanção presidencial.
“Parece que Bolsonaro sempre fala com um monte de
ladrões”, diz um indignado deputado do PP
Apesar do morde e assopra, era tudo o que o “centrão”
queria. Com a ajuda do PSL, os deputados deram um recado ao presidente: “Aqui,
ou o senhor conversa, ou tomamos o controle”. Afinal, a ameaça dos deputados de
inviabilizar a reforma ministerial deixou o governo em pânico. Obrigou o
ministro Onyx Lorenzoni a correr à Câmara e negociar a solução alternativa que
acabou sendo aprovada. Onyx concordou com a manutenção do Coaf na Economia,
puxando o tapete de Moro. Além dessa MP, há outras sete no Congresso, como cascas
de banana para o chefe do Executivo. Se ele não chamar os parlamentares do
“centrão” para conversar, algo que a sua arrogância não tem permitido, diversas
medidas do governo se inviabilizarão: até mesmo a destinação de R$ 225,7
milhões como socorro para o estado de Roraima, invadido pelos famintos
venezuelanos. Alegando que o presidente só tem governado por MPs, o Congresso
discutiu uma forma de impedir que o governo edite novas medidas provisórias.
Outra ação efetiva do “parlamentarismo branco” está na
principal pauta do governo, a Reforma da Previdência. O relatório final da
Comissão Especial deve ser apresentado no dia 15 de junho, mas com diversas
alterações. As principais delas serão a revisão das mudanças do Benefício de
Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria rural. A expectativa é que esses
itens sejam retirados do texto. O problema é como o governo vai recuperar
perdas da ordem de R$ 200 milhões em dez anos a partir da manutenção das regras
atuais desses dois itens. Na Reforma da Previdência entregue pelo governo, a
idade mínima para a concessão da aposentadoria rural é de 60 anos para homens e
mulheres. Pela regra em vigor, a idade mínima para homens é de 60 anos e para
mulheres, 55. No caso do BPC, pela proposta do governo, somente idosos com 70
anos ou mais teriam direito ao benefício integral de um salário mínimo.
“Se o governo não ajuda o Brasil, nós vamos ajudar” Rodrigo
Maia, presidente da Câmara
Além disso, o próprio Congresso vai tocar uma agenda própria
de reforma tributária. O texto da PEC 45/19, que introduz as mudanças no código
tributário, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da
Câmara na quarta-feira 22 e será analisado em comissão especial a partir dessa
semana. Alguns integrantes da Câmara acreditam que essa proposta tende a ser
aprovada no início do segundo semestre. Ela é baseada nas ideias do economista
Bernard Appy. Em resumo, a intenção é criar um novo tributo de bens e serviços,
uma espécie de Imposto de Valor Agregado (IVA), com a unificação do PIS/Cofins,
IPI, ICMS e ISS, passando um trator por cima do governo. Em resposta a essa
postura da Câmara, Bolsonaro declarou que pretende mandar sua proposta de
reforma tributária para a Câmara tão logo a previdenciária termine. Uma
iniciativa totalmente inútil e descompassada com o novo e vitaminado Congresso.
Afinal, quando a reforma tributária do governo chegar à Câmara, as mudanças
tocadas por Maia já estarão quase prontas. Ciente desse fiasco, Marcos Cintra,
secretário da Receita Federal, disse que o governo vai acabar encampando a
iniciativa dos parlamentares. Para amenizar o clima belicoso com os deputados,
o presidente ainda tentou afagá-los. Disse, na segunda-feira 20, durante evento
de lançamento da campanha publicitária pela Nova Previdência, que ele respeita
o Congresso: “Temos cinco deputados federais entre eles (ministros). Nós
valorizamos o Parlamento brasileiro, que dará a palavra final nessa questão da
Previdência, tão rejeitada nos últimos anos”.
Como ensina Maquiavel: se o presidente não tem
demonstrado qualidades para se manter no cargo, é melhor que ele não conte
com a sorte
O problema é que são poucos os parlamentares que de fato
confiam em Bolsonaro. Nem mesmo os do PSL. E como ensina Maquiavel, se o
presidente não tem demonstrado qualidades para se manter no cargo, é melhor que
ele não conte com a sorte. Dois ex-presidentes (Fernando Collor de Mello e
Dilma Rousseff) fizeram exatamente isso e o resultado foi o que todos
conhecemos: o impeachment. O Brasil não merece assistir o mesmo filme pela
terceira vez em tão pouco tempo.